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Herança viva: o papel dos pais na educação sobre nossas raízes africanas

A coluna de hoje aborda como ensinar cultura africana para as crianças para formar uma sociedade antirracista e que respeita sua diversidade cultural

Freepik
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A redação do Enem deste ano trouxe à tona um tema fundamental para a sociedade brasileira: "os desafios para a valorização da herança africana no país". Enquanto muitos jovens de 17 ou 18 anos se dedicaram durante todo o ano a estudar temas como a colonização, a escravidão e as contribuições culturais dos povos africanos, uma questão persiste: será que esses estudantes, além de terem absorvido o conteúdo escolar, conseguem de fato dissertar com profundidade e empatia sobre um assunto tão carregado de história, dor e resistência?

A verdade é que o legado africano no Brasil vai muito além das páginas dos livros didáticos. Ele está presente nas ruas, nas manifestações culturais, nas tradições familiares e, infelizmente, nas feridas abertas deixadas pelo racismo estrutural. Ensinar sobre essa herança nas escolas é um passo importante, mas será suficiente para que as futuras gerações compreendam, respeitem e celebrem essa história de forma genuína?

Para falar mais sobre um assunto tão importante e em referência ao próximo dia 20, quando é celebrado o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a coluna de hoje será dedicado ao tema.

Educação é o caminho

Habitualmente, costumamos levantar assunto importantes de serem debatidos (e combatidos) apenas em datas referência. Entretanto, falar sobre racismo e valorização da cultura negra é urgente não apenas em novembro. É preciso refletir sobre o tema o ano todo. E as escolas têm papel fundamental nesse processo.

De acordo com Dayse Oliveira, Coordenadora de Projetos Pedagógicos da Nova Escola, um dos pilares para a valorização da herança africana no Brasil é a educação. Desde a Educação Infantil, a escola precisa colaborar para que todos reflitam sobre as questões raciais dentro e fora da sala de aula - apesar da Lei 10.639, que obriga o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas, um levantamento feito pela Nova Escola aponta que 1 em cada 4 educadores não conhecem as principais autoras negras, como Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Angela Davis, entre outras. “Os autores negros e a história africana e afro-brasileira precisam ser trabalhados nas escolas para reforçar a representatividade e auxiliar no combate ao racismo. A escola pode ser um dos piores lugares para as crianças negras, que aprendem sobre história vendo os negros chegando ao Brasil como escravos. Mas essa não é a história completa dos povos negros, a representatividade precisa ser contada também de forma positiva para que as crianças se sintam confortáveis com a sua identidade”, comenta.

Outro dado impactante é que 62% dos educadores não se sentem bem-preparados para tratar o tema racial nas salas de aula. A pesquisa também aponta que 94% dos professores conhecem a lei, mas somente 31% afirmam que ela está sendo aplicada de forma abrangente e efetiva, 49% alegam que está sendo aplicada de forma parcial, e 34% dizem que não está sendo aplicada ou não saiu do papel. O questionário foi realizado com 1.847 educadores de todo o Brasil via formulário online em 2023.

Para Flávia Martins, juíza-ouvidora do STF e escritora da Editora Mostarda, falar sobre a resistência e as lutas dos povos africanos com os alunos é importante para que, desde pequenos, eles entendam que somos todos iguais, mas historicamente, fomos e somos tratados de maneiras diferentes em razão da cor, do gênero, da classe social etc. “Com isso, espero contribuir para o desenvolvimento de um pensamento crítico nesses alunos, que possa despertar neles a vontade de transformar a nossa sociedade em um lugar mais saudável para a vida de todos nós, o que só é possível se combatermos as desigualdades”, pontua. Ela diz, ainda, que incentiva os alunos a refletirem e se posicionarem sobre questões raciais e sociais contando histórias. “Conto histórias minhas e de outras pessoas negras que possam despertar esse tipo de reflexão”, acrescenta.

A juíza faz ainda, uma reflexão importante: “A escola tem um papel fundamental, porque é parte do processo de formação dos indivíduos. Mas a escola não pode fazer tudo sozinha. É importante que toda a sociedade esteja engajada na luta contra o racismo e na construção de uma sociedade livre, justa, solidária e igualitária”. E ela está certíssima. Não basta delegar todo o conhecimento à escola. Devemos, como pais e responsáveis, ser os primeiros a introduzir conversas sobre a Consciência Negra, sobre a importância das lutas dos povos africanos e sobre o impacto dessas culturas em nosso cotidiano. São diálogos que devem ir além da data marcada no calendário, como o 20 de novembro, e se tornar parte natural da formação dos nossos filhos. Assim, criamos jovens que não apenas dominam o conteúdo de uma prova, mas que também carregam consigo o entendimento e a sensibilidade necessários para lutar contra o racismo e reconhecer o valor do legado africano no Brasil.

Aimportância da Literatura

Usar a literatura como caminho para abordar o assunto com crianças e adolescentes em sala de aula têm se mostrado muito eficiente. Afinal, como diz Flávia Martins, “os livros nos provocam a pensar e contribuem para ampliar a imaginação e construir um outro imaginário”.

Um bom exemplo de como a literatura pode ser determinante é a estudante Maísa Maria da Silva, de 16 anos, de Paraisópolis. Ela afirma que conseguiu um bom desempenho na redação por conta do que aprendeu na prática com a organização social Pró-Saber SP, que atua há 20 anos com educação. Por meio de contraturno escolar, o Pró incentiva a leitura por meio de contação de histórias, programas educacionais e uma biblioteca infantojuvenil gratuita com mais de 20 mil títulos, entre eles, diversas obras feitas por autores/as negros/as. O espaço também tem sido escolhido por autores e editoras, como a escritora, professora e ativista da educação antirracista Waldete Tristão, que lançou seu livro "O Quintal das Irmãs", ilustrado por Rodrigo Andrade. "Os livros que trazem a perspectiva e a cultura das pessoas negras são ferramentas poderosas para a valorização da herança africana no Brasil. Mais de 55% da população brasileira é negra, e precisa acessar informação sobre qual é o legado que essa ancestralidade africana deixou na história, na música, nas artes, na política, na ciência, entre outras áreas", conta Fernanda Renner, Coordenadora Pedagógica do Pró-Saber SP.

A organização tem em seu documento orientador uma diretriz educacional que contempla a diversidade, incluindo também, as questões raciais. Com as crianças, a temática pode ser vista na representatividade negra do nome dos grupos: Lupita Nyong’ Emicida, Dona Ivone Lara, MC Soffia e Kiusam de Oliveira são algumas das personalidades negras que nomeiam as salas do programa Ler & Brincar, que utiliza a leitura e brincadeira como ferramenta educacional, com foco na alfabetização.

Com os jovens, o programa Pró-Jovens estimula a leitura de autores/as negros/as, o debate sobre o tema, além de passeios para espaços que trabalham com a diversidade e ampliação de repertório cultural, como museus e passeios turísticos. "O contato constante desses jovens com a literatura e a cultura negra por meio dos livros e passeios puderam ajudar a desenvolver um bom trabalho no ENEM. Além disso, são ensinamentos para a vida toda. É possível perceber o quanto eles se tornam mais conscientes sobre a importância da diversidade em todos os espaços", conta Luana Andrade, Coordenadora do Programa Pró-Jovens. Ela também afirma que o trabalho desempenhado com os alunos começou antes, com os professores por meio de formação e letramento específico para trabalhar o tema. Atualmente, a organização possui um Comitê Antirracista, composto por toda equipe, da manutenção, aos educadores.

Para os pequenos que gostam de ler, “O catador de histórias”, do pesquisador, professor e escritor Edmar Neves e publicado pela Editora Jandaíra, reúne três importantes Itans, que são narrativas associadas aos Orixás, e, a partir deles, apresenta para crianças um pouco da cultura afro-brasileira e também importantes ensinamentos sobre escuta, alteridade, respeito e confiança. O autor destaca que quis acrescentar novas camadas de leitura ao livro após notar que a maioria dos títulos que adaptam e referenciam as narrativas dos Orixás não davam abertura para pensar nessas histórias além do viés religioso. Segundo ele, as expressões religiosas também fazem parte da cultura e da história de um povo/comunidade, mas também podem trazer ensinamentos que são capazes de abranger outras vivências, como a importância de saber ouvir e transmitir conhecimentos, de confiar na capacidade das pessoas e de não julgar ninguém pela aparência. Além disso, ele considera interessante introduzir para o público infantil o entendimento de que para a cosmovisão africana – mais especificamente banto-iorubá – não há a distinção maniqueísta de bem e mal, sendo que os elementos de nossa existência possuem aspectos positivos e negativos dentro de si. A busca pela valorização da cultura afro-brasileira está no cerne de toda a obra, inclusive até mesmo na escolha da editora que tem em seu catálogo títulos que buscam apresentar e debater a cultura e a vivência da população negro-brasileira nos seus mais amplos aspectos. Segundo o escritor, seu livro é um lembrete de que mesmo tendo que sobreviver em um ambiente extremamente hostil que ainda busca exterminar sua existência nos mais diversos âmbitos, a população negra do Brasil consegue manter suas tradições e seus traços culturais vindos de várias regiões do território africano vivos, através de sua religiosidade ou de outras práticas cotidianas.

Consciência e valorização por meio da Arte

Não é incomum que crianças e adolescentes se interessem mais sobre um tema e levantem questionamentos após assistir a filmes e peças de teatro e ler livros. E, por isso, contar com “dispositivos” culturais pode ajudar a introduzir o assunto.

“Costumamos tocar no assunto consciência negra e racismo apenas quando chega novembro, mas é preciso falar sobre isso o ano todo. E uma das formas de conversar com as crianças sobre o tema é exatamente levando atrações infantis para elas. E é por isso que sempre busco para a plataforma opções que buscam discutir o assunto e enaltecer a cultura preta”, comenta Grasiela Camargo, sócia do Clubinho de Ofertas.

Uma das atrações do Clubinho que estão em cartaz é musical infantil “A Menina do Meio do Mundo – Elza Soares para Crianças”, que reúne grandes sucessos imortalizados na voz de Elza Soares em uma história lúdica, emocionante e divertida sobre a força da mulher negra. O espetáculo volta no tempo e começa quando Elza era criança e nunca havia saído da favela de Moça Bonita (hoje Vila Vintém), no Rio de Janeiro. Ela acreditava que as luzes das casas, carros e tudo mais lá embaixo eram estrelas. A menina carioca via seu morro cercado de estrelas por todos os lados, e era doida para descer e conhecer os astros de pertinho. A peça leva aos palcos a relação afetuosa entre Elza e sua mãe Rosária, os desafios na criação de uma criança com poucos recursos financeiros, a importância do afeto entre as pessoas, a finitude da vida e, principalmente, a valorização da mulher negra em uma sociedade regida por homens brancos.

Já “Maria Felipa para Crianças” conta uma história que celebra a vida de uma heroína pouco conhecida da nossa história: Maria Felipa, que queimou quarenta navios durante a Independência da Bahia, em 1823, contribuindo para a luta pela independência do Brasil. O espetáculo nasceu a partir do questionamento da autora e narradora Paty Lopes: "Como essa história não chegou antes para mim?". Desde então, Paty atravessa diversas formas de arte para apresentar essa figura histórica ao público, especialmente para as crianças, utilizando uma linguagem lúdica e interativa. A contação combina teatro de animação com personagens, como Dona Arraia e Peixe Riobaldo, que acompanham a heroína em sua jornada. A personagem de Maria Felipa ganha vida através da interpretação de Lucciana Laura. A autora destaca a importância de uma literatura antirracista, defendendo a necessidade de combater o racismo, inclusive nos conteúdos destinados ao público infantil. O espetáculo também faz uso de figurinos e bonecos sustentáveis, criados por Ricardo Rocha, reforçando o compromisso com a preservação ambiental. Além disso, as crianças são convidadas a cantar músicas de roda e interagir com os personagens, promovendo uma vivência lúdica que alia entretenimento e reflexão.

Para os que gostam de gadgets, a nova série animada "Vovó Tatá" afirma a negritude na tela, oferecendo um espaço de representatividade para as crianças. Estrelada por Elisa Lucinda, que empresta sua voz à carismática Vovó Tatá, a série é uma coprodução entre Raccord Produções e Gloobinho. A série acompanha a história dos irmãos gêmeos Juca e Keka, que mal podem esperar para passar os finais de semana na casa de sua avó, a enérgica e divertida Vovó Tatá. Com ela, eles mergulham no Brinca-mundo, um universo mágico onde a imaginação ganha asas e novas aventuras surgem a cada instante. Com Box, uma criatura atrapalhada e divertida, o trio enfrenta desafios, resolve mistérios e explora a importância da amizade, dos laços familiares e da criatividade. Com um tom leve e encantador, "Vovó Tatá" traz para a tela a vivência de uma família preta brasileira, promovendo a representatividade de forma natural e inspiradora para as crianças. A série, ao apresentar personagens e histórias com os quais o público infantil pode se identificar, se torna um espaço de inclusão e celebração cultural, valorizando a diversidade e incentivando a imaginação. Como afirma Estevão Ribeiro, co-criador e roteirista da série “Vovó Tatá é um convite à celebração da ancestralidade imediata, o resgate do conhecimento passado de geração para geração de forma lúdica e brincante”. “Vovó Tatá já foi uma utopia minha, ou ao menos um sonho distante. Quando eu era criança, não havia desenhos como este – uma família preta, cheia de energia e propondo aventuras educativas e criativas. Ao contrário, os heróis eram sempre brancos, e os personagens pretos eram representados de forma estereotipada”, reflete Elisa.

Direto ao Ponto

Abordar o assunto em sala de aula, como falamos acima, é essencial. Abaixo, Flávia Martins aprofunda algumas questões importantes.

Aventuras Maternas - Qual a importância de abordar sobre Consciência Negra e culturas africanas em sala de aula?

Flávia Martins - Pessoas negras deram importantes contribuições para o desenvolvimento do nosso país. Mas isso não é o que costumava ser contado, na medida em que essas pessoas apareciam sempre em condição de escravizados e com o discurso de que eram naturalmente aptos para esse tipo de exploração da força física. O racismo invisibilizou essas contribuições que se deram em todas as áreas. Agora, com o Dia da Consciência Negra e o estudo da cultura afro em sala de aula, temos a oportunidade de reparar essa violência histórica de omissão das nossas contribuições, também chamada de epistemicídio.

Aventuras Maternas - Você acha que o currículo escolar oferece uma abordagem suficiente sobre a história e a cultura afro-brasileira? O que precisa ser feito?

Flávia Martins - A legislação prevê essa diversidade cultural em sala de aula, mas ainda há um déficit muito grande, seja porque a equipe que atua nas escolas ainda não possui capacitação suficiente para ministrar as aulas, seja porque não há fiscalização quanto ao cumprimento da lei, ou, ainda, porque o racismo ainda impede a ampliação do estudo da cultura negra de forma mais efetiva. Há muito ainda a ser feito.

Aventuras Maternas - Como você lida com situações de racismo ou preconceito que surgem entre os alunos?

Flávia Martins - Minhas aulas, de um modo geral, são para jovens e adultos, já que sou professora universitária. E para esse público, costumo ministrar palestras sobre questões raciais que evidenciam os prejuízos que a desigualdade racial traz ao nosso país. Para o público infanto juvenil, tenho trabalhado com a literatura, por meio dos meus livros. Além disso, acredito que o fato de eu ser uma mulher negra em posição de poder, por si só, já contribui para a construção de um outro imaginário sobre pessoas negras, diferente daquele em que sempre estivemos em condição de subalternidade.