Maria da Penha batizou lei que condena crimes contra os direitos humanos das mulheres em reconhecimento pela sua luta; saiba o que mudou desde então
Publicado em 10/08/2024, às 15h00
O mês batizado como Agosto Lilás marca a conscientização pelo fim da violência doméstica. Este ano, a lei 11.340/06, criada em 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, completa 18 anos. Sua sanção é um marco para a luta pelos direitos humanos das mulheres, por adicionar a qualificadora de ‘violência doméstica’ nos crimes de lesões corporais, previstos no Código Penal. Maria dá nome à lei em reconhecimento pela sua batalha por justiça pelo crime de duplo homicídio cometido por seu parceiro contra ela.
O caso de Maria da Penha representa a violência doméstica pela qual centenas de mulheres são submetidas diariamente. Nascida em Fortaleza, no Ceará, Maria é formada em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal do Ceará em 1966. Em 1977, concluiu o mestrado em Parasitologia em Análises Clínicas na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo.
Autora do livro ‘Sobrevivi… posso contar’, publicado em 1994, conheceu Marco Antonio Heredia Viveros, colombiano, em 1974, na mesma instituição onde iniciou o mestrado em São Paulo. Ele cursava pós-graduação em Economia. No início do relacionamento, como é típico de relações abusivas, Marco se mostrava amoroso e atencioso.
Maria e Marco se casaram em 1976. Após o nascimento da primeira filha, eles se mudaram para Fortaleza, onde nasceram as outras duas filhas do casal. Foi a partir desse momento que a história de Maria da Penha com a violência doméstica começou. O comportamento agressivo de Antonio atingia não apenas a esposa, mas também suas filhas. Formou-se assim o ciclo de violência dos relacionamentos abusivos: tensão, agressão, arrependimento e ‘lua de mel’.
O crime aconteceu em 1983, quando Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio. Marco deu um tiro nas costas de Maria enquanto ela dormia. Para a polícia, ele alegou uma tentativa de assalto — versão desmentida pela perícia mais tarde. Maria passou por duas cirurgias e, em decorrência dos ferimentos, ficou paraplégica. Quatro meses depois, enquanto se recuperava, ele a manteve em cárcere privado por 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho.
Com a ajuda de sua rede de apoio, Maria da Penha conseguiu sair de casa sem que isso configurasse abandono de lar, o que acarretaria a perda da guarda de suas filhas. Desde então, a trajetória de Maria foi marcada pela batalha que travou na justiça durante 19 anos e seis meses. O primeiro julgamento aconteceu apenas em 1991: o agressor foi condenado a 15 anos de detenção, mas os recursos da defesa fizeram com que Marco saísse livre do fórum.
Em 1996 aconteceu um segundo julgamento e Marco foi condenado a dez anos e seis meses de prisão. Contudo, novamente, alegando irregularidades processuais por parte dos advogados de defesa, o agressor permaneceu livre. Em 2002, faltando poucos meses para a prescrição do crime, Marco foi condenado e cumpriu dois anos de reclusão.
Antes da Lei Maria da Penha começar a ser aplicada, um dos maiores problemas a serem enfrentados era o contexto da agressão não se traduzir em uma figura penal, ou seja, a violência contra a mulher não era encarada como crime. Por isso, muitas vezes era necessário convencer a própria vítima de que os comportamentos violentos dos agressores deveriam ser punidos.
Com o passar do tempo, a violência doméstica contra a mulher passou a ser amparada pela Lei 9099/95 que regula crimes de menor potencial ofensivo, os quais são julgados pelos JECRIM — juizado especial criminal.
“O aspecto positivo foi que a sociedade passou a entender que a violência doméstica contra mulher é crime. No entanto, por se tratar de crimes de menor potencial ofensivo, a punição era muito branda. Quase sempre a pena do agressor era convertida em prestação de serviços à comunidade”, explica Mayra Cardozo, sócia da Martins Cardozo Advogados e advogada especialista em Direitos Humanos e Penal à AnaMaria.
A especialista destaca que, desde sua implementação, a Lei Maria da Penha tem sido crucial na luta contra a violência doméstica, assegurando a proteção e o bem-estar das mulheres. Além de fortalecer as punições aos agressores, a lei também prevê medidas de proteção, como o afastamento do agressor da residência da vítima, a proibição de contato com ela ou seus familiares e o suporte jurídico e social necessário.
Embora ainda haja um longo caminho na luta pelos direitos das mulheres, a Lei Maria da Penha é um passo fundamental rumo a uma sociedade mais justa e igualitária. Ao longo dos anos, a lei passou por importantes aprimoramentos. Entre eles, a Lei 13.505, que prioriza o atendimento por policiais e peritos do sexo feminino para mulheres em situação de violência doméstica; a Lei 13.641, que criminaliza o descumprimento de medidas protetivas de urgência; e, mais recentemente, a alteração que permite o afastamento imediato do agressor do local de convivência com a vítima, mesmo antes de uma decisão judicial.
Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma decisão histórica ao afirmar que a Lei Maria da Penha também se aplica a mulheres transgêneros. O Ministério Público Federal defendeu que mulheres transexuais têm direito às medidas protetivas garantidas pela lei, independentemente de terem realizado a cirurgia de transgenitalização.
“Essa decisão do STJ é um marco não apenas para a luta das mulheres trans, mas também para o alinhamento do Brasil com os padrões internacionais de Direitos Humanos. Além de ser uma vitória significativa para os direitos humanos, esse posicionamento coloca o Brasil em consonância com as diretrizes internacionais”, ressalta a advogada.
Apesar de a Lei Maria da Penha ser um marco incontestável na luta pelo direito das mulheres, ainda enfrentamos um desafio profundo, enraizado na nossa cultura e estrutura social, que a legislação, por si só, não consegue resolver: a dificuldade das vítimas em denunciar a violência que sofrem e identificar seus agressores.
O medo de represálias, o constrangimento, a dependência financeira, a falta de preparo dos profissionais e a descrença da sociedade são alguns dos fatores que contribuem para a subnotificação dos casos. Mayra destaca que a ausência de dados precisos sobre as agressões dificulta o combate eficaz à violência doméstica, e, embora a Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, ofereça mecanismos robustos de proteção, a mudança social necessária para erradicar esse problema vai além da legislação.
“Apesar de sua eficácia teórica, o grande desafio que enfrentamos é a implementação prática da lei. O principal problema reside na ausência de políticas públicas robustas que garantam sua aplicação plena e eficaz. Sem essas políticas, a lei, embora bem elaborada, muitas vezes não consegue tirar as mulheres do ciclo de violência”, acrescenta Mayra.
A advogada finaliza dizendo que o ciclo da violência é uma realidade complexa, onde a mulher passa por fases de tensão, explosão de violência e, em seguida, uma aparente reconciliação, que perpetua o abuso e dificulta a ruptura com o agressor.
Além disso, há um aumento preocupante nos casos de feminicídio, refletindo a ineficácia de medidas preventivas e a falta de suporte contínuo às vítimas. Precisamos urgentemente fortalecer o viés educativo da Lei Maria da Penha, investindo em campanhas de conscientização, como o Agosto Lilás, campanhas de reeducação para agressores e suporte para vítimas de abuso.
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