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O preço da excelência: a toxicidade no esporte infantil

História de Jade Barbosa desperta o debate sobre a toxicidade na prática esportiva e os perigos para crianças e adolescentes

Jade Barbosa - Foto: Reprodução/Instagram
Jade Barbosa - Foto: Reprodução/Instagram

Nas últimas semanas, por causa das Olimpíadas de Paris, veio à tona uma história sobre a ginasta Jade Barbosa que contou, em entrevistas, como era a relação com a antiga treinadora, que a proibia até mesmo de beber água. A medalhista de bronze compartilhou como enfrentou uma pressão imensa que muitas vezes superava o prazer pelo esporte, ao longo de sua adolescência. Ela relatou não só a constante cobrança por resultados, mas também como esse estresse exacerbado levou a problemas de saúde física, incluindo pedras nos rins. A combinação de exigências extremas e um ambiente competitivo prejudicou tanto seu bem-estar emocional quanto físico. E a experiência de Jade destaca como a busca incessante por sucesso pode transformar a prática esportiva em uma fonte de estresse e ansiedade, além de impactar seriamente a saúde dos jovens atletas, sublinhando a necessidade urgente de reformar a toxicidade no ambiente esportivo.

Se por um lado, a prática de esportes de alto rendimento pode significar a realização de sonhos e vitórias, onde medalhas e troféus são o objetivo, por outro, nem sempre há espaço para a alegria que as atividades físicas de alto rendimento deveriam proporcionar. Crianças e adolescentes, impulsionados pelo desejo de se destacar, podem acabar se tornando prisioneiros em uma rede de expectativas desmedidas, seja pela pressão de treinadores abusivos, a cobrança incessante dos pais ou o ambiente excessivamente competitivo. Essa realidade tóxica, que muitas vezes permanece oculta sob a fachada do sucesso, pode deixar marcas profundas na vida desses jovens atletas, transformando o que deveria ser uma experiência de crescimento e diversão em uma jornada de ansiedade e desgaste emocional. E aí, fica a pergunta: Como podemos proteger nossas crianças e adolescentes do lado sombrio do esporte?

Na coluna de hoje, vamos trazer algumas questões importantes sobre o tema, para que pais e filhos possam usufruir de tudo que os esportes podem proporcionar (independentemente do objetivo ser profissional ou não), mas sem os problemas que o excesso de cobrança desmedida podem gerar.

Pais precisam ter atenção

Na casa de Eliza*, mãe de Fábio*, de 15 anos, a cobrança por resultado chegou ao limite do aceitável quando o menino foi obrigado pelo técnico, mesmo com a perna luxada, a jogar basquete. “Ele estava com a atadura móvel e dizia que queria ir ao treino apenas para assistir, pois não poderia jogar por estar com a pena dessa forma. Achava estranho ele chegar sempre de cabelo molhado, porque normalmente ele tomava banho apenas ao chegar em casa dos treinos. Até que um dia eu peguei ele chorando e confessou que estava com dor por estar jogando, pois o técnico da escola havia dito que, se não jogasse, perderia a vaga. É inadmissível que alguém que pagamos para ensinar aos nossos filhos afetem sua saúde física e mental dessa forma”, conta.

Essa pressão psicológica, é claro, tem consequências. A psicóloga clínica Thais Sech Ribas explica que, muitas vezes, o excesso de pressão que envolve cobranças, autocobranças, lesões, dores, pensar no adversário, na competição, lidar com críticas, com o possível vencer ou perder, incertezas, ficar distante da família, continuidade dos estudos e suas próprias superações podem ser fatores geradores de estresse, ansiedade, depressão e distúrbios do sono de forma geral. “Considerando que um pequeno atleta ainda está em fase sensível de desenvolvimento, estes poderão apresentar maiores dificuldades em controlar suas emoções e reações. Pressões constantes por parte do treinador diante de um indivíduo que ainda está aprendendo a lidar com seu organismo e com sua estrutura afetivo-emocional podem resultar mais facilmente em um desequilíbrio emocional. É importante que treinadores saibam lidar/controlar suas expectativas para não ”despejá-las” no pequeno atleta. Quando o treinador consegue fazer com que a prática esportiva aconteça de forma coerente com as condições, características e estágio de desenvolvimento do atleta - a fim de tornar esta prática uma experiência saudável e equilibrada - tem grandes chances de minimizar danos à saúde mental. Outro ponto que impacta na relação treinador e atleta é a comunicação. É importante que a comunicação ocorra de forma não ameaçadora, não enfatizando apenas o resultado”, esclarece.

O também psicólogo Filipe Colombini, CEO da Equipe AT, comenta, ainda, que os impactos do excesso de pressão e competitividade exacerbada são inúmeros e varia de atleta para atleta. “Independentemente da idade/experiência, caso não haja o cuidado com a saúde mental, isso pode provocar diversos impactos negativos, como ansiedade exacerbada, que prejudica a concentração e a execução de movimentos importantes para o esporte; impacto nas funções executivas, na qual o atleta pode perder o senso de planejamento e organização de sua rotina de treinos e competições; sensação constante de culpa e pensamentos autodepreciativos, prejudicando a autoestima, autoimagem e a sensação de realização; desregulação emocional, na qual o atleta tem dificuldade de reconhecer e manejar os seus sentimentos e sensações; estresse profissional (burnout), na qual o atleta não consegue equilibrar as áreas importantes da sua vida (lazer, família, relacionamento, alimentação, sono…); e desenvolvimento de transtornos psiquiátricos”, detalha. E ele faz um alerta importante: “É completamente errado falar/considerar que o técnico pode ser também o psicólogo do atleta. As estratégias psicológicas precisam ser desenvolvidas por um profissional da área da saúde mental e especializado em esporte. No caso, a Psicologia do Esporte”.

Vale lembrar, porém, que é possível criar algumas estratégias para ajudar os jovens atletas a lidarem com a ansiedade e o estresse relacionados ao esporte. “Estudos mostram que práticas de relaxamento, respiração e meditação tem forte influência na redução do estresse e ansiedade. Recomendaria, também, acompanhamento contínuo por um profissional da área da saúde mental, isso deveria ser uma condição para poder se tornar atleta. Nós, psicólogos, podemos ajudar também na regulação emocional, que é a base para o atleta conseguir identificar e lidar com situações que gerem raiva, alegria, tristeza, frustração, medo, para que aprenda a pedir ajuda, respeitar o próprio tempo, impor limites. A psicoterapia também é um espaço de acolhimento, um espaço para que possam falar de forma segura sobre todos seus medos, inseguranças, dificuldades, um apoio importante. Essas são questões que, se trabalhadas e acompanhadas, diminuiriam, e muito, o adoecimento mental”, pontua Thais. Além disso, analisa Colombini, é necessário uma avaliação comportamental ampla e contínua do comportamento do atleta, seja em competições, seja no treino, seja em seu dia a dia. “As estratégias envolvem o treinamento comportamental de uma série de habilidades antes, durante e após as atividades esportivas, como regulação emocional, com a identificação, nomeação e manejo das sensações/sentimentos; técnicas de relaxamento, respiração e atenção plena, promovendo um manejo das sensações corporais; técnicas de concentração e visualização prévia das atividades treinadas; e acionamento da rede de suporte: família e pessoas relevantes na vida do atleta”.

Direto ao ponto

O acompanhamento psicológico é fundamental para nossos filhos que enveredam para esse lado dos esportes. E essa é a parte que está “em nossas mãos”. Mas o que as academias e técnicos podem fazer para tornar esse ambiente menos estressante? Abaixo, conversamos com Bruno Marostica, bacharel em Educação Física e instrutor de esportes nas unidades Competition Oscar Freire e Paulista.

Aventuras Maternas: Quais práticas você adota para garantir um ambiente saudável e seguro para seus atletas?

Bruno Marostica: Um bom relacionamento interpessoal com os pais e com os atletas fora do campo é fundamental. Precisamos entender essa parte externa primeiramente para depois focar no interior. As conversas diárias ou trimestrais com os pais e com meus alunos aqui da Competition são importantes. Eu vejo todos os dias e sempre converso com eles fora do campo para saber como está, se tudo está bem na escola, se há algo acontecendo. Acho que isso é importante para manter um ambiente mais leve durante o treino e para desenvolver tanto a formação íntegra do atleta quanto a diversão através do esporte, que é o que acredito ser o melhor caminho.

Aventuras Maternas: Como você lida com a pressão para obter resultados sem comprometer o bem-estar dos jovens atletas?

Bruno Marostica: A pressão faz parte do desenvolvimento de qualquer atleta, e cabe ao treinador gerenciar isso, garantindo que os atletas estejam bem dentro e fora de campo. Dependendo da faixa etária, não devemos avaliar a criança pelos resultados, acho que precisamos superar essa mentalidade resultadista que acredita que, com pressão externa ou interna, o resultado será sempre positivo. A pressão faz parte do desenvolvimento e pode ser benéfica até certo ponto, mas o treinador, que é o principal líder dessa faixa etária, deve enfatizar a importância de desenvolver aspectos sociais, culturais, técnicos e táticos. Ganhar e perder fazem parte do processo, e devemos ser a referência das crianças, explicando e acompanhando-as tanto nas vitórias quanto nas derrotas. Principalmente nas derrotas, pois é onde conseguimos entender melhor o processo. Acredito que a pressão deve ser gerida pelo treinador, e os pais devem estar conectados para o melhor desenvolvimento do filho.

Aventuras Maternas: Que sinais você observa para identificar se um atleta pode estar enfrentando estresse ou pressão excessiva?

Bruno Marostica: O olhar, a concentração, o cabisbaixo são sinais que, sem um sorriso, um ‘boa tarde’, um ‘boa noite’ ou um ‘bom dia’, indicam que algo não está bem naquele dia. Acredito que captar esses sinais é de extrema importância, especialmente no início da primeira conversa, no treino ou na aula. É importante verificar como foi o dia anterior, como estão os pais, e como está o processo. Ou se o atleta teve um treino ruim no dia anterior, ele precisa entender o que está acontecendo. Tudo faz parte desse olhar e da conversa. Acho que perceber e entender esses sinais e o atleta são funções essenciais do treinador e educador. Devemos entender o porquê ele se sente pressionado e mostrar os caminhos e variáveis necessárias para desenvolver o melhor dele, extraindo o melhor através do desenvolvimento lúdico, pedagógico ou esportivo dentro do campo. Isso deve ser discutido. Acho que a conversa entre o treinador e os familiares pode melhorar esses aspectos de estresse ou pressão excessiva.

Aventuras Maternas: Uma vez que observe esses sinais de estresse, quais medidas são tomadas para “aliviar” a pressão desse atleta?

Bruno Marostica: A gente precisa entender primeiro o que os pais entendem sobre a relação entre esporte e lazer, e até que ponto a competitividade dos pais influencia a pressão desnecessária que eles podem passar para os filhos. A primeira medida é sempre ouvir os pais e, em seguida, ouvir a criança para entender o processo dela. O processo pedagógico é fundamental na formação da criança. Se houver uma pressão excessiva externamente, a base de tudo é uma boa conversa, com clareza nos pontos. A conexão entre pais e treinadores é fundamental para o desenvolvimento da criança e do atleta, independentemente da faixa etária, desde o sub-7 até os 22 anos, porque essa conexão é importante para o desenvolvimento do aluno ou atleta ao longo de toda a vida. Eu acredito nisso. E, às vezes, se há um atleta com pressão interna e um desenvolvimento individual que precisa ser melhorado, uma conversa para entender o processo, mostrar o que deve ser feito, o que está sendo aplicado e a metodologia utilizada, dependendo do clube ou da estratégia, são os melhores caminhos para desviar o foco do resultado e da pressão.

“A base de todas as informações é o treinador. O treinador é fundamental para todo o conceito pedagógico e formativo da criança, tanto aos 7 quanto aos 18 anos. Às vezes, há fatores externos difíceis, e o treinador é a base que estabelece o elo de confiança entre os pais e a criança para o melhor desenvolvimento dela. Isso é o que eu faço aqui na Competition hoje. Eu trabalho com o Sub-9 e mantenho um forte vínculo com os pais. Acredito que o desenvolvimento dos meninos reflete no campo. O elo de confiança que eu estabeleço com as crianças do Sub-9 abrange aspectos técnicos, táticos e sociais. Acreditamos muito na formação íntegra do aluno, do atleta e do cidadão. Isso é importante para melhorar nossa cultura esportiva e encontrar a melhor maneira de formar o atleta, mesmo que ele não siga a carreira profissional. Queremos formar um cidadão de caráter, bem-estar, consciência social e humildade, buscando o melhor do esporte nessa parte educacional e formativa”, conclui Bruno.