O tédio desempenha papel fundamental na criatividade, imaginação e capacidade de resolver problemas
*Priscila Correia, do Aventuras Maternas, colunista de AnaMaria Digital Publicado em 23/06/2023, às 08h00
Em um mundo acelerado e constantemente conectado, onde as telas brilhantes capturam nossa atenção a cada segundo, o tédio pode parecer um inimigo a ser combatido. No entanto, por trás desse sentimento aparentemente desinteressante, esconde-se uma poderosa oportunidade para o crescimento e desenvolvimento das crianças. Acredite ou não, o tédio desempenha um papel fundamental em nutrir a criatividade, a imaginação e a capacidade de resolver problemas de nossos pequenos.
Segundo um estudo realizado nos Estados Unidos, independentemente da educação, renda ou raça, os pais acreditam que crianças entediadas devem ser matriculadas em atividades extracurriculares. Esse dado, especificamente, traz uma informação importante: existe uma espécie de “preconceito” cultural que as pessoas normalmente associam ao tédio, como se fosse algo negativo “ficar à toa”. Para Erin Westgate, psicóloga que estuda sobre o tédio na Universidade da Flórida, a realidade é que o tédio é normal, natural e saudável. Ela diz ainda que, em doses moderadas, o tédio pode oferecer uma excelente oportunidade de aprendizado para os pequenos, seja estimulando a criatividade, na resolução de problemas ou motivando-as a encontrar atividades que sejam significativas para elas.
À medida que exploramos a importância de dar espaço para o tédio na vida das crianças, descobrimos um universo de possibilidades. Enquanto os adultos tendem a fugir dele, as crianças têm uma capacidade inata de transformar momentos monótonos em verdadeiras aventuras. E é nessa capacidade de se entediar que se encontra a base para habilidades essenciais que irão beneficiá-las ao longo de toda a vida. Na coluna de hoje, vamos falar mais sobre como o tédio pode ser benéfico para o desenvolvimento infantil.
Todos nós nos deparamos com momentos ou situações em que ficamos entediados. Com as crianças, é claro, isso não é diferente. Nesse contexto, os pais podem entender o tédio como algo negativo, tendo em vista a rotina corrida e a perspectiva de que o nosso dia a dia deve ser produtivo. Entretanto, ele pode ajudar no desenvolvimento infantil.
Para começar, é muito importante entender o contexto da palavra tédio. “Quando olhamos no contexto de uma coisa chata, prolixa, realmente é algo que despende energia. Quando olhamos o tédio por algo que nos faz parar e observar, porém, percebemos que, acima de tudo, essa capacidade de parar nos possibilita um maior senso de observação e de desenvolvimento dessa habilidade que é muito importante para todas as pessoas, inclusive para as crianças”, explica Luciana Brites, psicopedagoga e CEO do Instituto Neurosaber.
Segundo Brites, os momentos tediosos podem ser benéficos para a criança, pois o tédio estimula a criatividade e imaginação. “Quando os pequenos estão entediados ou não possuem uma companhia para brincar, eles são naturalmente estimulados a usar a imaginação e criatividade para encontrar meios de se divertirem”, pontua.
E realmente acontece isso. Quantas vezes você não viu seu filho brincando sozinho, mesmo que sem telas, vídeo games ou brinquedos? Sim, é comum que os pais procurem atividades para entreter os pequenos quando está sem fazer nada, mas é preciso entender que é benéfico que eles tenham espaços de tempo para imaginarem e criarem formas de se divertirem. Os pais podem incentivá-los a usar a criatividade, por exemplo, sugerindo uma brincadeira de caça ao tesouro. “Além disso, disponibilize brinquedos não tecnológicos. Brinquedos que não possuem tecnologia estimulam mais a criatividade”, lembra Luciana.
Ao enfrentar momentos de tédio, uma das habilidades importantes é ter atenção. E quando colocamos atenção, é como se a gente colocasse vida. “Então, quando trabalhamos esses momentos de tédio no sentido de parar e ter um prolongamento da nossa capacidade, do nosso estágio emocional, nos possibilita olhar as coisas de uma forma mais vagarosa. Quando a gente observa, conseguimos ver mais detalhes e ter um senso de observação e percepção maior. Seja uma percepção maior do ambiente quando falamos em capacidade auditiva, capacidade visual, capacidade degustativa ou olfativa", diz. Como a criança, nos primeiros anos de vida, é extremamente sensorial, essas percepções acabam sendo melhor trabalhadas quando esse processamento é feito de maneira demorada e devagar. "A gente só consegue processar aquilo que conseguimos experienciar de uma forma pausada”, avalia.
O tédio pode ser, ainda, um excelente aliado no desenvolvimento de habilidades em resolver problemas. “Quando são expostos a situações difíceis, eles esperam que seus responsáveis resolvam a situação. Durante o tédio, ele pode desenvolver essa habilidade, pois terá que confiar em si mesmo para enfrentar o desafio do tédio e isso poderá ser aplicado em futuras questões rotineiras”, esclarece. Além disso, o tédio pode aumentar a confiança do seu filho, que terá a oportunidade de criar e imaginar coisas novas.
“Quando ele percebe que foi capaz de desenvolver sozinho alguma atividade para distraí-lo, ficará feliz consigo mesmo e terá sua autoestima aumentada”, complementa.
Outro benefício é a capacidade de aumentar a confiança e autoestima das crianças. Nesse contexto de ter um tempo para processar e sair dessa rotina louca, que muitos estão inseridos, o tédio ajuda muito na confiança e pode auxiliar e colaborar na autoestima, principalmente, porque faz ter mais consciência das coisas. “Quando eu consigo contemplar, consigo estar mais consciente e mais presente e, dessa forma, consigo ter mais responsabilidade, consigo tomar mais decisões assertivas. Mas vale lembrar que tédio dentro de um olhar pode ser uma patologia. Aqui estamos falando dele como tempo que a criança tem para parar, contemplar e observar ela e o ambiente que está”, lembra Luciana.
E tem mais: o tédio também melhora a saúde mental. Geralmente, as pessoas estão tão ocupadas e sempre produzindo ou trabalhando em algo, restando pouco tempo para ficarem quietas ou simplesmente deixarem os pensamentos fluírem. Assim, o tempo para o indivíduo pensar e refletir é fundamental para que ele se conheça melhor e para a manutenção de sua saúde mental. “Quanto mais tempo a gente vive, menos no automático a gente fica. Se fazemos as coisas no automático, acabamos reagindo e não agindo. Ter esse tempo para parar e pensar possibilita um processo de melhor consciência e melhor clareza do que está acontecendo, das ações e das reações. Com isso, as crianças conseguem ter mais confiança e diminuição da ansiedade. Porque a ansiedade é o medo de algo que está para acontecer. E se a criança está presa no futuro e no que vai acontecer, esse tédio traz a criança para o momento presente e a faz vivenciar as experiências do presente, evitando essa questão da ansiedade, da preocupação e dos medos”, pontua a psicopedagoga.
Se, por um lado, o tédio geralmente surge quando as crianças se sentem desestimuladas com dificuldade de encontrar atividades interessantes para realizar, a falta de estímulos adequados pode levar ao surgimento de sentimentos de frustração. Afinal, quando as crianças se encontram entediadas por longos períodos, elas podem começar a se sentir inquietas e insatisfeitas com o ambiente ao seu redor. A ausência de estímulos pode gerar um sentimento de monotonia e descontentamento, levando a uma sensação de frustração. E essa frustração pode se manifestar por meio de comportamentos irritadiços, agitação ou até mesmo birras.
Ensinar uma criança a lidar com frustrações é fundamental para o seu desenvolvimento. Afinal, a frustração é uma emoção comum que todas as pessoas experimentam ao longo da vida. Mas lidar com ela nem sempre é fácil, principalmente para as crianças. “A infância é uma fase de descobertas, aprendizado e desenvolvimento, em que estão constantemente enfrentando novos desafios e aprendendo a conviver com suas limitações, o que muitas vezes podem levar a momentos de frustração”, comenta Helen Mavichian, psicoterapeuta especializada em crianças e adolescentes e mestre em Distúrbios do Desenvolvimento.
Helen explica que existem várias situações que podem causar esse amargo sentimento em crianças. Em geral, isso ocorre quando elas tentam realizar uma tarefa e não conseguem, como, por exemplo ao amarrar os sapatos, montar um quebra-cabeça ou escrever seu nome. "Os pequenos podem ficar frustrados quando são incapazes de expressar suas necessidades ou desejos de forma adequada, são rejeitadas por seus colegas de escola, acham que não conseguem alcançar as expectativas dos pais ou perdem um jogo ou uma brincadeira. Situações como mudança de professores na escola, amigos vão morar em outra cidade, parentes doentes e outras “perdas” também podem desencadear frustrações”, exemplifica.
Ela comenta ainda que, na rotina de consultório, percebe que muitos problemas são causados por momentos em que as crianças tiveram que experienciar como é uma frustração. “Por não saberem como expressar esse sentimento, alguns se comportam de forma inadequada, revelando essa emoção por meio de birras, manhas, choros ou atitudes agressivas, enquanto outras podem se retrair e se tornar mais reservadas. É importante lembrar que a maneira de externar pode variar de criança para criança e depende totalmente de sua personalidade, temperamento e habilidades de comunicação”, complementa.
É preciso ressaltar, ainda, que ensinar as crianças a encararem frustrações e perdas é um processo contínuo que requer paciência, empatia e apoio emocional. “Ao fornecer essas ferramentas importantes, você pode ajudar a criança a se tornar mais resiliente e capaz para enfrentar os desafios da vida de maneira saudável e positiva. Mas não se esqueça que cada pessoa é única e irá lidar com as emoções de uma maneira diferente”, enfatiza. Afinal, lidar com frustrações é uma habilidade primordial para o convívio em sociedade e, quando é exercitada e aprendida desde a infância, facilita o amadurecimento emocional e dá leveza às etapas seguintes da vida.
Abaixo, Helen pontua algumas sugestões para ajudar as crianças a vivenciar frustrações:
Um levantamento publicado no Canadian Journal of Psychiatry acompanhou mais de 3,8 mil voluntários, entre 12 e 16 anos, ao longo de quatro anos. O resultado mostrou que, quanto mais longo o período de exposição às redes sociais, TV ou computador, maior a incidência de quadros de ansiedade. E esse dado merece muita atenção. Assim como ocorre com grande parte das obrigações de crianças e adolescentes, também o ócio não é natural nessas idades. No que depender deles, qualquer tempo livre será gasto no celular - esse, aliás, é um fenômeno que não se restringe à infância e adolescência, mas acomete também boa parcela dos adultos.
O entretenimento fácil oferecido pela internet costuma ser uma tentação. E cabe aos pais, então, conduzir os filhos aos momentos necessários de ócio. “Não é fácil, mas é muito importante estimular que eles se disponham a enfrentar sensações como o tédio, que serve para limpar a mente, relaxar e, de fato, descansar os sentidos”, comenta Giselle Bailo Uflacker, assessora de Educação dos colégios do Grupo Positivo. E continua: “É preciso incentivar a criança a perceber o ambiente em que está inserida. Em uma praça, um parque ou até mesmo no jardim de casa, observar o céu, a grama, as estrelas ou o movimento das plantas ajuda a suscitar reflexões que são fundamentais para o desenvolvimento humano.”
Mas como os pais podem, na prática, incentivar a criatividade e imaginação dos filhos durante os momentos de tédio? Para Brites, eles podem auxiliar passando por esses momentos com os filhos e, principalmente, vivendo esses momentos junto. “Em momentos que a criança não está fazendo nada, procure conversar para que ela consiga, nesses momentos de não estar fazendo nada, se possibilitar a perguntas que a coloquem a perceber e contextualizar o que está sentindo e vivendo. Lembre-se que é importante que o cuidador valorize e propicie que criança tenha esses momentos de nada para fazer”, conclui.