“Lembro de ver essas capas de revista em que as meninas eram pele e osso. Ninguém falou com a gente sobre aquilo, que era um ensaio fotográfico. Apenas recebíamos a informação como verdade, sem ver que aquela imagem não era real, mas ficção. Só que era o que consumiamos”, relembra a atriz Juliana Lourenção sobre as capas de revistas nos anos 2000.
Intérprete de Bruna na série da HBO Max ‘Vale dos Esquecidos’, ela revela que sofreu muitas pressões estéticas e desenvolveu transtornos alimentares – como bulimia e anorexia – por ter passado sua adolescência vendo como padrão estético a magreza extrema, algo que voltou a estar “na moda” em 2022. Entre a infância e a adolescência, Juliana ainda fez balé, o que agravou sua situação.
“Precisei emagrecer, porque era o padrão que exigiam. Eu tinha menstruado e, devido aos hormônios, o quadril cresceu e perdi o corpo de criança. Aí fiz umas dietas doidas, consegui emagrecer e fui ovacionada, me aplaudiram muito. Foi quando comecei a entender que magreza era sinônimo de reconhecimento, de amor e de acolhimento.”
O ambiente em que Juliana vivia também ajudava a reforçar esse padrão. Tanto que as bailarinas, segundo a atriz, chegavam a maquiar os ossos para parecerem ainda mais magras, ressaltando cada vértebra da coluna com sombras escuras. Somava-se a isso as capas de revista que sempre apresentavam mulheres magérrimas – e com o corpo editado por Photoshop. Para a atriz, a maior dificuldade de ter passado pelos anos 2000 foi justamente a fase de vida na qual se encontrava.
ADOLESCÊNCIA: O BERÇO DO TRANSTORNO
O psiquiatra Alexandre Valverde, especialista em comportamento e doenças psíquicas, ressalta que os padrões de beleza têm um grande impacto na adolescência, especialmente das garotas. “Em uma fase em que a pessoa está fazendo a afirmação de si mesma, se há essa imposição de que, para ela ser aceita, amada e reconhecida por um grupo, precisa ter um certo padrão de corpo, ela vai se esforçar para poder participar daquele grupo e isso pode, sim, acarretar num distúrbio alimentar”, explica.
Deste período de sua vida, a atriz lembra que, além das pressões sofridas no balé, haviam conversas muito tóxicas em seu grupo de amigas sobre dietas e emagrecimento. “Eu não conseguia nem entender o que estava acontecendo no meu corpo, ninguém me explicou, e só mandaram parar de comer e voltar para um corpo de criança”, relembra Juliana.
ESCONDENDO A DOENÇA
Ela, então, foi tendo outras referências na internet, com a proliferação de blogs chamados “Ana” e “Mia” – uma forma de esconder as palavras “anorexia” e “bulimia”. “Surgiam uns absurdos no Google e os pais não tinham noção de limitar o acesso, então você achava tudo”, relembra Juliana. Inclusive, ela encontrava dicas de como ficar dias sem comer, como regurgitar sem chamar a atenção e como induzir o vômito.
Valverde observa que muitas meninas que sofrem transtornos alimentares buscam disfarçar também dos médicos sua condição, com técnicas que, geralmente, aprendem nestes mesmos blogs. “Mas existem sinais impossíveis de esconder, como o desgaste dos esmaltes dos dentes, manchinhas de sangue dentro da boca, se a menina emagreceu muito rápido ou parou de menstruar. Têm uma série de questões que são sinais de alerta”, destaca o psiquiatra.
Uma das técnicas para emagrecer bastante usadas em casos assim é contar as calorias dos alimentos. Segundo o psiquiatra, isso é um sinal importante de que a pessoa pode estar desenvolvendo bulimia e anorexia. Juliana conta que tinha até uma amiga que era sua “parceira de contar calorias”.
No recreio, em vez de tomar picolé de chocolate – seu favorito – a atriz tomava o sabor limão, por conter aproximadamente 60 calorias a menos que o outro. “Chegou uma época que era quase ficção científica, eu abria a geladeira e parecia pular uns números em cima dos alimentos, pois sabia exatamente quantas calorias tinha cada um”, diz.
DIETAS, DIETAS E MAIS DIETAS
Outra técnica utilizada por Juliana eram dietas dos mais diversos tipos. Já na vida adulta, antes de passar por testes para conseguir algum papel em produções, a atriz caprichava nos exercícios físicos em jejum, além de tomar remédios para que seus esforços tivessem mais efeitos, mudando drasticamente a alimentação.
No entanto, dietas não são sinônimos de emagrecimento, como aponta a nutricionista e pós-graduanda em Neurociência comportamental Thaisa Leal. “No caso da dieta do ovo ou dieta da maçã, por exemplo, em que você faz uma monotonia alimentar, estamos restringindo coisas que tínhamos que comer”, ressalta.
Na prática, isso significa que a pessoa deixa de consumir macronutrientes importantes, como carboidratos, proteínas e a gordura em si, todos imprescindíveis para o bom funcionamento do organismo. “O carboidrato dá energia, então se você fizer uma dieta da proteína, você não tem energia nem para metabolizar o que você está comendo. Então, na verdade, cada classe de alimentos é importante nas devidas proporções”, alerta.
Sobre o jejum intermitente, bastante em alta nos últimos anos, a especialista diz que ele pode ter o efeito contrário ao desejado, engordando a pessoa: “Você não vai aguentar mais de fome e, no momento em que for comer, acabará comendo muito. Existem poucas aplicabilidades do jejum, que deve ser feito com o acompanhamento de um profissional”.
PERIGOS À SAÚDE
Apesar de ser considerado um problema de saúde em si, os transtornos alimentares ainda podem levar a novas enfermidades, sejam elas físicas ou psicológicas.
“Além de desnutrição e da desidratação, tem também a dificuldade de absorção, o desgaste dentário por conta do suco gástrico – que volta para o esôfago e não foi feito para voltar – e pode até prejudicar a nossa mucosa, gerando problemas de deglutição”, observa a nutricionista. A falta de nutrientes decorrente do vômito bulímico pode levar a um desequilíbrio eletrolítico que, por sua vez, pode acarretar a um desequilíbrio cardíaco. Em casos mais extremos, a consequência pode ser a morte.
Do lado psiquiátrico, Valverde explica que, assim como pode ser gerado por outros problemas, como a ansiedade, o transtorno alimentar também pode ser a causa deles: “Não tem nada estanque na psiquiatria, então você vai encontrar um pouco de ansiedade e depressão nos transtornos alimentares, e vice-versa. E as pessoas podem ir de um polo para o outro: apresentarem um comportamento anoréxico em uma fase da vida, que depois evolui para um comportamento bulímico.”
Sobre a relação entre transtornos alimentares e depressão, o psiquiatra destaca que é comum pessoas com comportamentos assim praticarem a automutilação ou terem pensamentos suicidas – como ocorreu com Juliana em sua adolescência.
“É importante lembrarmos que os transtornos alimentares estão intimamente relacionados a uma dificuldade de controle de impulso. Assim, aquela pessoa acaba se cortando muito, porque está muito aflita ou angustiada, e sente a necessidade de se cortar para sentir um certo alívio”, informa. O especialista ainda explica que o uso excessivo de substâncias, internet, jogos, libido e até compras, por exemplo, podem ser indícios deste descontrole.
TRATANDO O TRANSTORNO
Depois de algum tempo, o pai de Juliana começou a perceber o comportamento e decidiu levá-la a um psicólogo. “É uma coisa muito absurda, pois, enquanto ele dizia coisas doidas para mim sobre magreza e elegância, ele foi o primeiro a me estender a mão”, observa a atriz.
Contudo, após um ano, ela deixou a terapia, pois acreditava estar curada. Mas voltou a ter o comportamento de antes – tomando diurético, laxante e fazendo dietas absurdas – só que sem vomitar. Somente anos mais tarde, em 2020, que a artista percebeu precisar de ajuda, indo atrás de especialistas.
“Na pandemia, a ansiedade subiu nas alturas, pois minha mãe é enfermeira e estava na linha de frente. Assim, voltei a vomitar com força total. E isso te escancara que algo está errado”, conta Juliana.
Foi a deixa para ela retomar a terapia. Com um tratamento multidisciplinar comportamental e nutricional, ela passou a ter um acompanhamento semanal tanto com uma psicóloga quanto com uma nutricionista especializada em transtornos. Com algumas técnicas, como comer o que tem vontade e ver o contorno de seu próprio corpo desenhado no chão – que ela mal reconhecia por se enxergar maior do que realmente era – Juliana foi mudando sua relação com a comida.
“Hoje, eu tenho um prazer imenso em cozinhar, como quando tenho fome e sou disciplinada. Tomo café da manhã, almoço, faço um lanchinho, janto, e não passo fome. Se na TPM eu fico com mais fome, como mais e não tem problema. Aceito meu corpo e está tudo bem. Consigo ver as flutuações dele com outro tipo de acolhimento”, revela. “Diria que hoje estou com o meu corpo dos sonhos, porque ele é saudável, é funcional, é forte, e estou conseguindo me olhar no espelho sem me julgar”, diz.
CUIDADOS E ALERTAS
Ainda assim, a atriz lembra que não existe cura para os transtornos alimentares, deixando ela sempre alerta sobre a necessidade de cuidar da saúde. “Hoje consigo entender os meus gatilhos, o que me deixa insegura e me faz começar a julgar meu corpo para querer fazer alguma loucura”, ressalta. “Quando vou fazer um teste, o primeiro pensamento ainda é: ‘Ai meu Deus, será que está tudo bem? Ou preciso regular um pouquinho na comida?’ Esse foi o padrão na minha carreira inteira”, exemplifica.
Alexandre Valverde concorda e afirma que as pessoas no entorno deste paciente também precisam estar sempre atentos aos sinais de que alguém esteja desenvolvendo bulimia ou anorexia, apesar de tentar disfarçar os sintomas. Anote alguns:
- A pessoa vai ao banheiro e, logo, já se ouve o barulho do chuveiro ligado;
- Tentativas de forçar o vômito;
- Ir sempre ao banheiro logo após a refeição;
- Dizer que não está com muito apetite na hora da refeição, especialmente para não aceitar comida.
“É preciso ficar atento a esses pequenos sinais. E, principalmente, orientar a menina para que ela não tenha medo. Faz parte do tratamento o paciente encarar a situação”, informa o psiquiatra.