Na última quinta-feira (8), os cinemas brasileiros receberam o aguardado filme ‘É Assim Que Acaba’, uma adaptação do best-seller homônimo de Colleen Hoover. Desde o seu lançamento, a produção vem gerando polêmicas e dividindo opiniões, especialmente quanto à forma como aborda o delicado tema da violência doméstica.
O enredo conta a história de Lily Bloom, uma jovem empreendedora que, após anos de superação pessoal, se vê envolvida em um relacionamento com Ryle Kincaid, um neurocirurgião carismático e apaixonante. A princípio, o romance entre eles parece ser o que Lily sempre sonhou, mas conforme a trama se desenvolve, o relacionamento revela sua verdadeira face: um ciclo de abuso e violência.
O filme, assim como o livro, representa o que muitas mulheres enfrentam em relacionamentos abusivos. A narrativa ilustra como o abuso pode começar de maneira sutil e insidiosa, evoluindo gradualmente até que a vítima esteja presa em uma situação de violência. A obra de Hoover mostra a complexidade dos relacionamentos abusivos, onde a vítima muitas vezes se sente dividida entre o amor e o medo, entre o desejo de perdoar e a necessidade de se proteger.
Glamourização da violência? ‘É Assim Que Acaba’ dividiu opiniões
Apesar da intenção da autora de mostrar a dualidade dos relacionamentos abusivos, o filme foi alvo de críticas por parte do público. Mayra Cardozo, advogada especialista em gênero, analisa a trama e as diferentes reações que o filme gerou. “Muitas pessoas alegam que a abordagem de conto de fadas no início, uma escolha narrativa que dá a impressão de ser artificial e distante, dificulta a conexão com a realidade da violência doméstica”, diz a especialista à AnaMaria.
Mayra Cardozo aponta que essa forma de conduzir a história tem um motivo. A trama consegue envolver o espectador na mesma dinâmica emocional vivida por muitas vítimas de abuso, que inicialmente se apaixonam e confiam no parceiro, sem perceber os sinais de alerta que surgem ao longo do tempo. Essa ‘vivência sensorial do ciclo do abuso’, como descreve Mayra, permite que o público experimente, ainda que do outro lado da tela, o dilema enfrentado por muitas mulheres que, apesar de amarem seus parceiros, acabam presas em um ciclo de violência.
A crítica mais contundente dos espectadores à adaptação é justamente sobre como a história poderia dar margem à romantização do abuso. Algumas opiniões destacam que a apresentação inicial do relacionamento como algo idealizado pode levar algumas pessoas a minimizarem os primeiros sinais de violência, acreditando que o amor verdadeiro pode superar qualquer obstáculo, inclusive o abuso.
“O filme não glamouriza a violência, mas sim, proporciona uma experiência sensorial do ciclo do abuso”, destaca Mayra. Essa distinção é crucial para compreendermos o propósito da obra. Ao tornar o abusador um personagem carismático e inicialmente irresistível, a produção nos faz refletir sobre como é fácil cair nas armadilhas de um relacionamento abusivo. A complexidade desse tipo de relação, onde o agressor pode ser alguém que a vítima ama e em quem confia, é um dos pontos centrais tanto do livro quanto do filme.
No entanto, é justamente essa complexidade que gera tanto desconforto entre os espectadores. Para muitos, assistir ao filme e perceber que, em algum momento, torceram pelo casal ou sentiram empatia pelo abusador, é uma experiência perturbadora. Isso porque, ao contrário de muitos filmes que retratam o agressor como um vilão absoluto, ‘É Assim Que Acaba’ nos apresenta um personagem multifacetado, alguém que, apesar de suas falhas, também possui qualidades redentoras. Esse tipo de narrativa nos força a encarar a realidade de que qualquer pessoa, em qualquer momento, pode se encontrar em um relacionamento abusivo.
A reação do público à trama é uma prova da eficácia do filme em trazer à tona questões difíceis e incômodas sobre a violência doméstica. Enquanto alguns elogiam a humanização dos personagens e como a história ilustra as nuances de um relacionamento abusivo, outros criticam a adaptação por não capturar o mesmo impacto emocional do livro e por sua abordagem menos realista dos temas de abuso. Críticas à parte, o filme cumpre o papel de iniciar conversas importantes sobre um tema que muitas vezes é silenciado.
O retrato do agressor na ficção
A advogada explica que filmes que retratam o agressor como um vilão absoluto distanciam a sociedade da empatia pela vítima, que acaba sendo julgada por não sair da relação. “Talvez a abordagem tenha incomodado tanto porque, por um momento, você torceu pelo casal, assim como a vítima, que ama, tem uma família e acredita na mudança do parceiro”, diz ela.
“Colocar o agressor como um monstro dificulta nossa compreensão e nos afasta da capacidade de ajudar. Entender que você também poderia se envolver em um relacionamento assim nos aproxima da realidade das vítimas e nos faz perceber que ninguém está imune a viver um relacionamento abusivo. Isso nos leva a questionar nossos próprios relacionamentos e a refletir sobre o que já vivemos, identificando se houve, ou há, sinais de abuso”, complementa.
Em suma, ‘É Assim Que Acaba’ é mais do que um romance ou um drama sobre violência doméstica; é uma forma de discutirmos e entendermos as camadas profundas de um relacionamento abusivo. A polêmica em torno do filme reflete a dificuldade que temos em lidar com essas questões de maneira aberta e honesta, e a necessidade de continuar falando sobre elas, seja através da arte, da literatura ou da análise especializada.
A reflexão proposta por Mayra Cardozo é um ponto de partida para repensarmos o impacto de histórias como essa e como enxergamos o tema da violência doméstica e dos relacionamentos abusivos. “Nada é preto ou branco; os relacionamentos são complexos, o ciclo da violência é complexo, e a dificuldade da vítima em deixar o agressor também é”, finaliza Mayra.
Leia também:
‘É Assim Que Acaba’: quais são as fases de um relacionamento abusivo?
A volta por cima: Como perceber que está em um relacionamento abusivo e sair dessa situação
‘É assim que acaba’: a adaptação do livro de Colleen Hoover chega aos cinemas