A liberdade de expressão é um dos pilares da democracia e está garantida pela Constituição Federal. No entanto, quando se trata do universo digital, as regras se tornam mais complexas. No mundo virtual, onde opiniões são compartilhadas com facilidade e rapidez, questões como fake news, discursos de ódio e difamação ganham uma nova dimensão, exigindo um equilíbrio delicado entre o direito de se expressar e o dever de respeitar os limites impostos pelas leis.
Casos como o das cientistas Ana Bonassa e Laura Marise, processadas por desmentirem informações falsas sobre diabetes, mostram como essa linha pode ser tênue. A liberdade de expressão na internet é, sim, garantida, mas existem restrições que visam proteger a integridade de outros indivíduos e da sociedade.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a condenação de Ana Bonassa, bióloga, e Laura Marise, farmacêutica, que haviam desmentido uma fake news divulgada por um nutricionista sobre a diabetes. O profissional afirmava que a doença seria causada por vermes, vendendo um tratamento sem qualquer respaldo científico.
As duas cientistas, que mantêm o canal ‘NuncaVi1Cientista’, publicaram um vídeo criticando as informações falsas e exibiram prints do perfil público do nutricionista. Mesmo assim, foram processadas por danos morais e condenadas pela Justiça de São Paulo. O ministro Dias Toffoli, porém, suspendeu a condenação e destacou a importância da liberdade de expressão na defesa da verdade científica. O caso acendeu um debate sobre até onde vai a liberdade de expressão na internet e como ela se encontra com a responsabilidade civil.
O impacto das fake news na segurança online
Segundo Lucas Galvão, especialista em Cibersegurança e CEO da Open Cybersecurity, as fake news não são apenas um problema de desinformação, mas também um risco à segurança digital. “A proliferação de desinformação não é um fenômeno isolado — é um vetor de risco que fragiliza os pilares da cibersegurança e expõe a arquitetura de proteção de dados a ataques contínuos”, comenta.
Em tempos de eleições, a disseminação de notícias falsas nas redes sociais pode manipular debates públicos e confundir os eleitores, criando uma atmosfera de desconfiança. Para Galvão, o PL 2338/2023, que visa regular o uso de algoritmos para combater a desinformação, surge como uma tentativa de estabelecer diretrizes para equilibrar liberdade de expressão e segurança. No entanto, ele adverte que “se mal conduzido, pode transformar a promessa de ‘proteção’ em uma perigosa ferramenta de controle e censura”.
Nesse contexto, o uso de inteligência artificial e algoritmos de machine learning — aprendizado de máquina — tem se tornado uma prática comum nas plataformas digitais para identificar e conter a circulação de fake news. Embora essas ferramentas possam ajudar a proteger os usuários, surge uma questão crítica: quem decide o que deve ser considerado informação válida? “O controle desses algoritmos, se não for meticulosamente auditado, pode facilmente se converter em um instrumento de censura preventiva”, alerta Galvão, ressaltando a importância de transparência nos processos.
Limites da liberdade de expressão: até onde podemos ir?
Luciana Padilla Guardia, advogada do escritório Martins Cardozo Advogados Associados, explica que a liberdade de expressão, apesar de garantida pela Constituição, não é um direito absoluto.
“O principal limite da liberdade de expressão será sempre o respeito ao direito do outro. A propagação de ideias que incitem violência ou discriminação, bem como crimes contra a honra, como calúnia e difamação, são algumas das barreiras que não podemos ultrapassar”, afirma a advogada.
Nesse sentido, discursos de ódio, que incitam violência contra indivíduos ou grupos, são amplamente condenados pela lei brasileira, sendo enquadrados em crimes previstos no Código Penal.
Além disso, a disseminação de fake news também é uma área que enfrenta cada vez mais regulamentação. “O Projeto de Lei nº 2630/2020, conhecido como Lei das Fake News, visa instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, estabelecendo normas para coibir a desinformação”, destaca Luciana. A legislação pretende criar mecanismos de responsabilização para as plataformas que falharem no combate à propagação de informações falsas, além de impor sanções para quem as divulga.
Quando a liberdade vira crime?
“A liberdade de expressão não cobre manifestações revestidas de crimes, como racismo ou ataques pessoais que ferem a honra de outra pessoa”, explica Marina Lucena, advogada especialista em Direito Digital. A especialista reforça que, embora críticas e opiniões sejam protegidas pela Constituição, elas não podem incitar a violência ou promover discriminação.
Ela também lembra que, caso alguém se sinta prejudicado por uma publicação online, há meios legais para buscar reparação. “Uma pessoa pode acionar a Justiça tanto na esfera cível, para solicitar a remoção do conteúdo e pedir indenização por danos morais, quanto na esfera criminal, se houver crime contra a honra”, diz. Além disso, a notificação extrajudicial ao autor da publicação ou à plataforma também é uma alternativa para a remoção de conteúdos ofensivos.
Avanços no direito digital no Brasil:
De acordo com Luiza de Almeida, advogada especialista em Direito Digital e em Direito de Startup, alguns avanços normativos importantes na área incluem:
- A Lei n. 13.834, que trouxe a previsão de crime para instauração de inquérito policial por atribuição falsa de crime a terceiro;
- O PL das Fake News, que tem como foco as big techs e traz algumas medidas para o combate às fake news;
- A proposta do novo Código Civil, que garante a remoção de links e mecanismos de busca de conteúdos que tragam imagens pessoais íntimas, pornografia falsa, e conteúdos envolvendo crianças e adolescentes. Também cria a possibilidade de indenizações por danos sofridos em ambiente virtual;
- A Resolução n. 23.732 de 2024 do Tribunal Superior Eleitoral, que trouxe a vedação de fake news em propagandas eleitorais.
Além disso, temos a constante discussão sobre a responsabilidade das plataformas digitais pela disponibilização de conteúdos ilegais na internet, em conformidade com o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI).
Privacidade e responsabilidade na era digital
No entanto, a questão da liberdade de expressão na internet não se limita apenas ao conteúdo postado. A privacidade dos usuários também é um ponto delicado quando falamos em responsabilização. Lucas ressalta que é possível garantir a privacidade ao mesmo tempo em que se responsabilizam aqueles que cometem crimes online.
Ele explica que “a criptografia de ponta a ponta pode coexistir com mecanismos de rastreamento de atividades ilícitas, desde que operemos com ‘controles compensatórios’ e ‘princípios de necessidade e proporcionalidade’”. Isso permite que haja uma “trilha de auditoria digital” sem comprometer a privacidade massiva dos usuários, desde que o acesso aos dados siga processos judiciais adequados.
Assim, a liberdade de expressão na internet, embora seja um direito fundamental, está longe de ser ilimitada. Casos como o das cientistas Ana Bonassa e Laura Marise mostram que, embora o direito à expressão seja protegido, ele encontra fronteiras no respeito à verdade, à honra alheia e à segurança digital. No fim das contas, a liberdade de expressão online deve ser equilibrada com responsabilidade e respeito às leis, garantindo um ambiente digital saudável e democrático.
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