O ano de 2018 teve cerca de 66 mil vítimas de estupro no Brasil, de acordo com o 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que conta com dados de todos os estados e o Distrito Federal. O número corresponde a cerca de 180 casos por dia.
Foi justamente naquele ano que Mariana Ferrer prestou queixa em Florianópolis (SC). Seu caso ganhou um novo capítulo após imagens da audiência serem vazadas pelo site ‘The Intercept Brasil‘, em 3 de novembro. Ela acusa o empresário André de Camargo Aranha do crime.
As gravações chamaram a atenção principalmente por mostrarem o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, representante do réu, humilhando a vítima ao exibir fotos feitas pela jovem durante um trabalho como modelo. Visivelmente abalada, Ferrer implora por respeito, mas os demais participantes do julgamento não interferem nas colocações do representante de Aranha.
O réu, que havia sido denunciado por estupro de vulnerável anteriormente, foi absolvido após o promotor afirmar que não havia como o empresário saber que Mariana não estava em condições de consentir a relação, não existindo, portanto, intenção de estuprar. No entanto, existem vídeos logo após o ocorrido mostrando a jovem desnorteada enquanto sobe uma escada com a ajuda de André.
Após a divulgação, milhares de pessoas usaram as redes sociais para fazer publicações pedindo justiça por Ferrer e repudiando a atitude do defensor e a sentença. Um abaixo-assinado, que já conta com mais de 3 milhões de assinaturas até a publicação desta reportagem, foi criado para pressionar Ministério Público de Santa Catarina a investigar de forma devida o caso.
Mas você já parou para pensar qual é a importância de uma comoção social assim para o combate à violência contra a mulher? AnaMaria Digital conversou com especialistas para entender as questões jurídicas e seu impacto na saúde mental da vítima.
IMPORTÂNCIA FUNDAMENTAL
“A jovem Mariana foi muito corajosa ao dar publicidade à sua dor, devemos acolher e estimular todas as mulheres que passam por igual situação. A veiculação do vídeo da audiência dela foi fundamental para a comoção social e as manifestações de entidades de classe, exigindo explicações e apurações dos fatos”, avalia Luzia Paula Cantal, advogada e membro da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão da Mulher da OAB-SP.
Apesar disso, a advogada deixa claro que o defensor do réu praticou terror psicológico com a vítima, além de grande violência emocional e humilhação.
A Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional também manifestou seu repúdio ao que aconteceu durante o processo.
“Os números mostram que 75% das vítimas de crimes sexuais em nosso país não denunciam. E, por mais que sejam feitas campanhas estimulando que as mulheres façam isso, esse número não mudará enquanto o sistema de justiça brasileiro não mudar estruturalmente como atua no julgamento dos crimes sexuais”, afirma o comunicado oficial do órgão.
Mas será que esse tipo de atitude é comum? De acordo com Marjory Hirata, advogada do direito da família, não. “A conduta dos integrantes de uma audiência, sejam eles advogados, juízes ou promotores, é disciplinada pelos respectivos Códigos de Ética e, em todos, há o dever de manter o respeito”, explica.
MARIANA PODERIA TER FEITO ALGO?
Hirata explica que a pessoa que tem o dever de intervir e impedir atos de humilhação a uma das partes é o juiz, que conduz a audiência e mantém a ordem.
“Mariana fez exatamente o que estava ao seu alcance fazer, ou seja, pedir ao juiz que ordenasse ao advogado que parasse de proferir insultos pessoais”, diz do.
O QUE PODE ACONTECER COM O ADVOGADO DO RÉU?
Caso seja apurada infração ética, ele sofrerá sanções disciplinares, que podem ser de censura, multa, suspensão do exercício da advocacia de 30 dias até 12 meses, ou a exclusão do infrator dos quadros da OAB, impedindo-o de advogar.
No entanto, Marjory explica que a punição pela má conduta do advogado em audiência não afeta o resultado do julgamento.
SEGURANÇA PARA FALAR
O psicólogo Alexander Bez ressalta que o apoio popular em casos assim é algo extremamente positivo. “A partir do momento em que o tema da violência de gênero entra na agenda da imprensa e do judiciário, iniciam-se debates, correntes e comoção das pessoas. Isso deixa as mulheres mais seguras para falar, o que estimula a denúncia”, afirma.
A sentença de absolvição, porém, é considerada uma derrota pelo especialista. “Essa impunidade irá destacar o medo de represália por parte do agressor (que é geralmente conhecido da vítima) e o descrédito nas instituições policiais e de Justiça”, ressalta.
Para Bez, o caso ainda abre precedentes até mesmo para que outros homens se sintam impulsionados para o crime, ressaltando ainda que “existe uma enorme baixa nas denúncias que podem acabar piorando”.
Ele avalia que o debate vai muito além de criação de leis, pois essa discussão deve estar presente na educação e ser sempre levantada pelo interesse público: “As manifestações escancaram que devemos falar e lutar sobre o tema, e o principal, mostrar que a vítima nunca será a culpada”.
SAÚDE MENTAL APÓS A VIOLÊNCIA
O estupro atinge de uma forma profunda a vítima no âmbito psicológico, físico, mental e sexual. “Pode acabar com as condições futuras de felicidade conjugal, impondo uma reclusão relacional. Poucas situações agridem tão fortemente o psicológico como o estupro”, esclarece o psicólogo.