O sorriso no rosto não mostra as marcas internas de uma das sobreviventes do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, há dez anos. A gaúcha Cristiane Clavé, de 36 anos, estava na casa noturna para comemorar um aniversário e, na dramática noite, perdeu 15 amigos. Sem cicatrizes visíveis, Cristiane não precisou ser internada, mas uma tosse persistente a fez procurar atendimento médico dois dias depois da tragédia.
“Fiz exames porque minha tosse não passava e, com isso, ficou constatada uma queimadura interna, no pulmão. Foi assim que comecei o tratamento no Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (Ciava) e até hoje faço acompanhamento com o pneumologista. Fiz fisioterapia até o final do ano passado, agora estou conseguindo fazer natação e outras atividades físicas”, conta Cristiane. “O tratamento será para o resto da vida. A cada três meses, volto ao centro para uma série de exames.”
O Ciava é um núcleo do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), criado após a tragédia na Boate Kiss. O hospital foi o primeiro ponto de atendimento e entendeu que precisaria reunir diversos profissionais para que o tratamento fosse adequado às vítimas. O centro atendeu 602 vítimas do incêndio em um conjunto multidisciplinar com pneumologistas, psiquiatras, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e outros. Atualmente, 25 pacientes que estavam na boate na noite do incêndio são acompanhados pelo centro.
Segundo Cristiane, os profissionais do Ciava prestam um atendimento cuidadoso e fraternal com os pacientes. Na avaliação dela, muitos médicos foram aprendendo a lidar com situação das vítimas e ajustando o tratamento às necessidades individuais.
“Os primeiros profissionais que me atenderam me tratavam como filha. Uma das médicas explicava tudo o que estava acontecendo comigo, quais procedimentos estavam sendo feitos. Eles me falavam que o que acontecia era algo complicado também para eles porque, até então, ninguém havia passado por situação semelhante. Até a medicação foi sendo adaptada ao longo do tempo, pois fazíamos testes, muitos exames, raios x – tudo para avaliar se havia necessidade de alterar a dose de alguma medicação”, lembra Cristiane.
DRAMA
Ela conta que estava em frente ao palco onde a banda tocava e, pouco antes do início do incêndio da Boate Kiss, saiu para ir ao banheiro com uma amiga. Ao voltar, viu fumaça e o que imaginava ser uma confusão. Quando entendeu a gravidade da situação, tentou sair da casa noturna tampando olhos, boca e nariz, mas a fumaça tóxica atingiu seu pulmão.
“Não imaginei que fosse fogo, parecia uma briga. Logo em seguida, vi o palco pegando fogo e um rapaz tentando apagá-lo com um extintor. Enquanto eu ia até a porta, a fumaça entrou pelo sistema de ar condicionado e chegou até a porta antes de nós. Então, quando chegamos à porta de saída, a fumaça já estava lá. Era uma fumaça preta e quente, e foi isso que atingiu meu pulmão, porque não tinha fogo [por onde passei]”, lembra. “Fiquei pouco tempo [envolvida] na fumaça, apenas no trajeto entre o palco e a porta de saída, mesmo assim o dano foi grave.”
Para a gaúcha, o trauma psicológico é um dos maiores pesos da noite do incêndio. A tragédia provocou a morte de 242 pessoas e até hoje nenhum réu foi responsabilizado. “Ao meu lado estavam cinco meninas, chamadas de cinderelas. Todas morreram. Eu faço tratamento com psicólogo e psiquiatra, mas não consigo esquecer. Não tem um dia que eu não lembre o que passei. Agora, por exemplo, mesmo que eu não olhe para o calendário, meu corpo parece saber que está chegando [a data]. Há três semanas, eu tenho acordado todos os dias no mesmo horário, sem despertador. É no horário que o incêndio estava acontecendo”, descreveu. “Eu perdi muito a memória, o que me atrapalha no dia a dia, mas, daquele dia, eu lembro de tudo, de cada passo que eu dei”, acrescentou.
Cristiane diz que mantém a lembrança do que aconteceu em homenagem aos amigos que perderam a vida e que fala sobre o assunto para alertar as autoridades a não permitirem outro acidente dessa forma.
“Hoje eu falo para dar voz a quem não pode mais falar. Eu tenho um pulmão e um coração machucados. Muitas vezes, eu mal consigo caminhar porque me dá falta de ar, mas o pior é o sentimento. A tristeza de ter perdido pessoas e a sensação de não ter conseguido voltar e salvar um amigo que foi herói, ele já tinha saído e voltou para ajudar outras pessoas. Foi difícil, mas as pessoas têm que aprender para que isso não se repita.”
ATENDIMENTO
A fisioterapeuta Anna Ourique chegou a Santa Maria três meses após a tragédia para ajudar no atendimento das vítimas do incêndio e, dez anos depois, continua trabalhando no centro. Naquela ocasião, o hospital começou a receber os pacientes que voltavam da internação em Porto Alegre, principalmente os queimados, já que aqui na cidade não havia centro de atendimento de vítimas de queimaduras. “Esses pacientes precisavam continuar a reabilitação, muitos tinham problemas por ter inalado fumaça e questões respiratórias graves. Além disso, tínhamos aqueles com sequelas de queimaduras e, sabemos que, quando não tratadas, aderem à pele e impedem os movimentos das pessoas tirando toda funcionalidade”, explicou.
O volume de trabalho e a quantidade de pacientes eram desafiadores para os profissionais da linha de frente no atendimento. A demanda fez com que a equipe buscasse meios de atender a situação crítica.
“Em um primeiro momento após a tragédia, eu já sabia que teria um trabalho muito desafiador porque eram muitos pacientes para atender. Em hospitais, recebemos muitos pacientes, mas nunca ao mesmo tempo, mas, naquela situação, cada vez recebíamos mais pacientes e tendo que atender todos eles ao mesmo tempo. Foi uma experiência tanto profissional quanto pessoal que nos trouxe bastante crescimento. Tivemos que estudar muito”, ressaltou.
Segundo a fisioterapeuta, o aspecto emocional também é impactante para os profissionais de saúde. “Os pacientes vieram com uma carga psicológica bem intensa. Houve vítimas que foram com amigos para a boate e estes morreram. Outros perderam irmãos. O fisioterapeuta é o profissional mais próximo, porque atende o paciente mais vezes. Muitas vezes, aquela vítima conversa mais conosco do que com outros profissionais da equipe. Então, foi um desafio porque tínhamos que manter a firmeza para dar o suporte para esses pacientes, todos muito jovens”, disse Anna.
LEGADO
Na avaliação do superintendente do Hospital Universitário de Santa Maria, Humberto Palma, o Ciava é um legado do drama vivenciado pela população de Santa Maria. O centro ajudou no atendimento das vítimas do ataque à creche Gente Inocente, em Janaúba, em Minas Gerais, e de incêndios em Portugal.
“Não tem como apagar a dor. Não tem como apagar o sentimento. Mesmo que a gente não tenha um vínculo direto, um parente, sente essa dor. Porém, a partir disso, conseguimos criar algo que pudesse ajudar as pessoas, e o Ciava faz essa função, e esse foi o grande mérito que o hospital conseguiu: ter a força de colaborar com a sociedade”, enfatiza Palma.
Com dois livros publicados, o centro divulga os protocolos adotados com os pacientes para outros estados e realiza treinamentos online e presenciais. Segundo Palma, a perspectiva é que o conhecimento adquirido pelo centro seja repassado para outros hospitais universitários administrados pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), do qual o Hospital Universitário faz parte.
“A ideia é que o Hospital Universitário de Santa Maria transfira o conhecimento para que outros hospitais universitários possam ter equipes com know-how suficiente para não ter que correr atrás naquele momento [pós-acidente], para que estejam preparados e em condições – tanto técnicas quanto emocionais, além de recursos físicos – para dar o suporte necessário. Acidentes, infelizmente, tragicamente, acontecem, e nós, dentro da função do atendimento em saúde, temos que estar preparados”, afirma.