Quando alguém deixa uma herança, é comum que surjam disputas pelos bens. Esse atrito acontece especialmente quando o patrimônio envolve algum item com valor sentimental, como objetos que estão na família há várias gerações ou o imóvel onde os herdeiros passaram a infância.
AnaMaria conversou com Daniel Oitaven, coordenador do programa de pós-graduação em direito da Universidade Federal da Bahia (UFBa) e sócio do escritório de advocacia Oitaven & Pearce, para entender como funciona a partilha de bens no Brasil quando há conflitos entre os herdeiros.
COMO FUNCIONA A PARTILHA DE BENS NO BRASIL?
O Código de Processo Civil estabelece três critérios considerados pelos juízes para determinar, na partilha litigiosa — não amigável —, quem ficará com bens específicos, caso essa questão não tenha sido resolvida antecipadamente pela pessoa que deixou a herança. Os critérios são os seguintes:
Máxima igualdade possível quanto ao valor, à natureza e à qualidade dos bens: significa que o juiz tentará distribuir os bens de forma justa, considerando não apenas o valor monetário, mas também a natureza e a qualidade dos bens envolvidos. Esse critério visa garantir que a partilha de bens seja o mais equitativa possível entre os herdeiros.
Prevenção de disputa judicial futura: o objetivo aqui é evitar futuros conflitos entre os herdeiros. O juiz deve tomar decisões que minimizem a possibilidade de disputas legais adicionais relacionadas à herança.
Máxima comodidade dos coerdeiros, do cônjuge ou do companheiro: garante que a partilha dos bens cause o mínimo de desconforto ou transtorno possível para os herdeiros, cônjuge ou companheiro.
Após cada interessado solicitar sua cota da herança, se houver disputa por um bem de valor sentimental, o juiz não poderá designar que ele fique com algum dos interessados se o valor desse bem ultrapassar a parte que couber a um herdeiro específico.
“Imagine, por exemplo, que a pessoa não deixou testamento, e tinha um patrimônio líquido de 10 milhões, sendo metade desse valor relativo a uma obra de arte, e seus quatro herdeiros são seus filhos. Nesse cenário, caberá a cada um deles um quinhão de 2,5 milhões.”, exemplifica.
“Supondo que dois desses filhos entrem em disputa pela obra de arte por razões sentimentais, será impossível que qualquer um deles fique com a obra sem que isso signifique levar vantagem em relação ao percentual que cabe a cada um dos quatro herdeiros na herança”, completa Daniel.
É o que se chama de “bem insuscetível de divisão cômoda”, ou seja, um bem que não pode ser dividido de forma prática ou conveniente para um só herdeiro. Nesse cenário, se não houver acordo, caberá ao juiz determinar que o bem seja leiloado entre os interessados ou vendido judicialmente, partilhando o valor apurado entre os herdeiros.
Daniel dá outro exemplo prático: imagine que a matriarca de uma família morreu e deixou um único bem de valor relevante, a casa onde os quatro filhos foram criados. Suponha que três dos filhos querem manter a propriedade do bem por razões sentimentais, mas o quarto filho não quer ter uma propriedade conjunta com os seus irmãos.
Nessa situação, se os três filhos não tiverem dinheiro para comprar a parte da casa que caberia ao quarto filho, a única solução que atenderá aos critérios previstos pelo Código de Processo Civil será a venda do imóvel, repartindo o valor resultante da venda entre os quatro irmãos. Segundo o especialista, esse é um processo recorrente em tribunais brasileiros.
COMO PROTEGER OS BENS COM VALOR SENTIMENTAL?
A maneira mais segura de proteger um bem com valor sentimental é o testamento. Nele, o testador pode destacar um bem específico (com ou sem valor sentimental), indicando quem deverá se tornar proprietário dele após a sua morte. Contudo, o valor desse bem não pode ultrapassar o da chamada “legítima”, ou seja, o valor de 50% do patrimônio do testador.
De acordo com o Código Civil, esses 50% são destinados aos herdeiros necessários: descendentes, ascendentes e cônjuge. Os outros 50% constituem a chamada “parte disponível”, sobre a qual a pessoa pode dispor livremente em seu testamento, inclusive privilegiando alguns filhos em detrimento de outros ou deixando essa parte da herança para pessoas externas à família.
“Outra alternativa interessante para evitar disputas por bens de valor sentimental é a realização da partilha em vida, prevista no art. 2018 do Código Civil. Trata-se de medida de planejamento sucessório que simplifica a partilha ao não deixar margem para dúvidas sobre a ‘vontade do testador’, critério estabelecido pelo art. 1899 do Código Civil para solucionar controvérsias sobre a interpretação de cláusulas do testamento. De todo modo, a partilha em vida também precisa respeitar a legítima.”, destaca Daniel.
E OS ANIMAIS DOMÉSTICOS?
Atualmente, na legislação brasileira, não há distinção significativa entre animais de estimação e outros tipos de animais, como cavalos ou bovinos, quando se trata de direitos sucessórios. Porém, a proposta de reforma do Código Civil em tramitação no Senado Federal prevê que os animais não mais serão tratados como bens, e sim como “seres sencientes”. Essa mudança implica em uma nova abordagem em relação aos direitos dos animais, especialmente no que diz respeito à sucessão.
Enquanto não houver uma lei específica para regulamentar essa nova condição dos animais, a proposta prevê que eles sejam tratados provisoriamente como sujeitos de direito, aplicando-se a eles a legislação dos bens naquilo que for compatível com sua natureza.
Outra inovação da proposta é a regulação da custódia compartilhada dos animais em caso de divórcio. Situação parecida, inclusive, já foi abordada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao reconhecer o direito de conviver com um cachorro (durante feriados, fins de semana, festas de final de ano e idas ao veterinário) após a separação de união estável.
“Por fim, em resposta à questão central: no Brasil, seria possível que alguém privilegiasse qualquer pessoa — herdeira necessária ou não — mediante realização de partilha em vida, de doação ou de legado dos cavalos premiados, desde que o valor dos cavalos não excedesse a parte disponível, nem, portanto, invadisse a legítima.”, finaliza Oitaven.
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