Quando uma novela faz muito sucesso, dá para perceber por pequenos momentos no cotidiano. Algumas vezes, os acessórios que viram moda, como a pulseira de Jade, de ‘O Clone’, e a capinha de celular em formato de soco inglês, usada pela delegada Helô em ‘Salve Jorge’ – coincidentemente, as duas personagens foram interpretadas por Giovanna Antonelli, que também deu vida a Clara, de ‘Em Família’, dona de um esmalte azul que fez febre entre as mulheres na época. Em outras, são os bordões – como o “eu sou chique, bem!”, justificativa que Marcia (Drica Moraes) dava para tudo em ‘Chocolate com Pimenta’ – que tomam às ruas. Mas há situações em que os temas mais sérios abordados nos folhetins – o chamado “merchandising social” – assumem protagonismo também fora das telinhas, afetando os rumos do Brasil.
No dia que as telenovelas completam 70 anos de uma história muito bem-sucedida no País, ao ponto em que praticamente qualquer brasileiro já acompanhou algum folhetim (até porque a exibição em TV aberta facilita com que praticamente todas as regiões tenham acesso a este tipo de produto), AnaMaria Digital separou alguns desses momentos; confira!
1. ‘Explode Coração’ e o reencontro entre mãe e filho
Entre um núcleo com uma cultura diferente – neste caso, os ciganos – e as danças no salão da Estudantina, tradicionais nos folhetins de Glória Perez, uma das tramas paralelas de ‘Explode Coração’ era protagonizada por Odaísa (Isadora Ribeiro), que procurava o filho Gugu (Luiz Claudio Júnior), sequestrado por bandidos que queriam vendê-lo a um casal de estrangeiros.
O drama da mãe em busca do filho perdido repercutiu intensamente: durante toda a exibição da novela, jornais, revistas e programas de TV faziam pautas sobre o tema – o ‘Fantástico’, inclusive, chegou a fazer uma campanha para mobilizar a população na busca pelas crianças. Na época, 64 pessoas foram encontradas graças às caricaturas e fotografias de desaparecidos exibidas no final de cada um dos capítulos. Uma história, porém, ganhou às páginas do jornal ‘O Globo’ e emocionou Glória Perez.
Célio de Almeida Garcia Júnior foi separado da mãe, Rosemary Pedrosa Araújo, aos três anos, após ser levado pelo próprio pai, Celso de Almeida Garcia, enquanto a mãe fazia um tratamento médico no Rio de Janeiro. Agressivo, o comerciante vendeu a casa onde moravam e levou o pequeno para Nova Xavantina, em Mato Grosso, sem deixar nenhuma pista para a esposa, que se surpreendeu quando voltou para Brasília, onde a família morava. Para o filho, Célio mentiu que a mãe estava morta.
O primeiro dia da campanha de Explode Coração achou a primeira crianças desaparecidas pic.twitter.com/gIXvafZTv6
— Gloria Perez (@gloriafperez) May 14, 2017
Uma foto do menino foi exibida no capítulo de 9 de janeiro de 1996, quando as Mães da Cinelândia – grupo de mães que se reuniam semanalmente na Cinelândia (praça no Centro do Rio de Janeiro, RJ), para buscar os filhos; antes da novela mencionar o tema, eram vinte mães; depois de apenas onze dias, segundo dados da Folha de S. Paulo, viraram 35 – faziam um protesto silencioso, segurando cartazes com fotos de desaparecidos. Uma parente do pai reconheceu a criança e telefonou para o Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, denunciando onde pai e filho estavam.
Na época, Rosemary tentou conseguir uma ordem judicial para levar o menino para o Rio de Janeiro. Ainda assim, ela tinha consciência da situação em que se encontrava:
Ficar dez anos sem notícias do meu filho foi muito doloroso. Sei que pode ser um choque muito grande para ele descobrir, agora, que tem mãe. Mesmo que, num primeiro momento, meu filho não queira ficar comigo, já ficarei feliz em, de agora em diante, passar as festas de fim de ano, as férias e outras datas na companhia dele. O melhor de tudo é que ele vai saber que eu existo. Consigo conquistar o amor dele aos pouquinhos.
2. ‘Laços de Família’ e o recorde de doação de medula óssea
Quando a leucemia de Camila (Carolina DIeckmann) começou a ser um tema recorrente em ‘Laços de Família’, de Manoel Carlos, o público se compadeceu. No folhetim, a filha de Helena (Vera Fisher) precisou de um transplante de médula óssea, mas não conseguiu encontrar doadores compatíveis nem entre a família, nem entre os doadores do Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME).
Além de emocionados com a situação da personagem – que teve de esperar a rival, Íris (Deborah Secco), fazer o teste de compatibilidade de doar a medula -, o público também foi munido de informações sobre o tema. Muitos imaginavam que este órgão só poderia ser extraído por meio de uma cirurgia. A solução do autor foi fazer com que Edu (Reynaldo Gianecchini), médico e noivo da jovem, explicasse como funciona o processo.
Desde que o tema começou a ser abordado, as doações saltaram de 20 por mês, em novembro de 2000, para 900, em janeiro de 2001. Um surpreendente aumento de 4 400%! Fora o número de registros de doadores: até o ano 2000, de acordo com dados do Instituto Nacional do Câncer, o REDOME contabilizava 3,5 mil doadores. Um ano depois, com o sucesso de Laços de Família, foram registrados 6,2 mil novos cadastros. Hoje, com 5,2 milhões de doadores, o REDOME é o terceiro maior registro de doadores de medula do mundo.
“Não abro mão de incluir temas na minha novela que possam motivar o público e levá-lo a exercer atos de generosidade. Obviamente, quando a novela acaba, esse exercício vai minguando até sumir, mas o que se consegue durante aqueles oito meses no ar já tem grande significado e é gratificante”, afirmou Manuel Carlos, em depoimento ao livro ‘A Seguir, Cenas do Próximo Capítulo’.
3. ‘Mulheres Apaixonadas’ e o Estatuto do Idoso
A grosseria de Dóris (Regiane Alves) com os avós, Flora (Carmem Silva) e Leopoldo (Oswaldo Louzada), deixou os espectadores de ‘Mulheres Apaixonadas’ no mínimo perturbados. Ela gritava e maltratava os idosos, afirmava constantemente que os dois eram “pesos” na sua vida e até furtava dinheiro do casal.
O ódio coletivo foi tanto que cena em que a vilã leva uma surra do pai, Carlão (Marcos Caruso), fez o público vibrar – tanto que até hoje existem comentários nas redes sociais a respeito, especialmente com a reexibição da trama no Canal Viva.
No período que o folhetim foi ao ar originalmente, em 2003, o deputado Paulo Paim (PT/RS) propôs um Projeto de Lei (PL) sobre o Estatuto do Idoso. O texto estabelece que nenhum idoso pode ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão. As penas para quem for condenado podem chegar a 12 anos de prisão.
Durante a tramitação do PL pelo Senado, parte do elenco se movimentou para que o projeto fosse aprovado. Regiane, Carmem e Oswaldo (os avós fictícios) chegaram a ir para Brasília fazer um discurso – motivo de muito orgulho para a intérprete da vilã. No fim, o Estatuto do Idoso foi sancionado por Luís Inácio Lula da Silva (PT), o Lula, em outubro de 2003.
“Ninguém sabia bem o melhor jeito de agir nessa situação. Aí na novela apareceu uma adolescente inconformada por ter que dividir o seu espaço falando barbaridades. Todo mundo começou a tocar no assunto, que era velado”, relembrou Regiane, em entrevista para a colunista Patrícia Kogut, do jornal ‘O Globo’.
4. ‘A Favorita’ e as denúncias contra violência doméstica
Catarina (Lilia Cabral) sofreu muito nas mãos do marido, Léo (Jackson Antunes), em ‘A Favorita’. As agressões começaram morais e psicológicas, mas, no decorrer da trama, chegaram a ser físicas também. A filha do casal, Mariana (Clarice Falcão), também era alvo de humilhações.
No decorrer da trama, Catarina conseguiu se abrir com uma amiga, Stela (Paula Burlamaqui), e reconhecer a violência pela qual passava. Quando Léo, bêbado, partiu para cima das duas enquanto almoçavam em um restaurante, a personagem de Lilia Cabral deu um basta. Ela chegou em casa, recolheu suas coisas e foi embora. Claro que o inferno não parou por aí: o ex-marido perseguiu a personagem, bateu nos homens que se interessaram por ela e, no último capítulo, chegou a tentar violentar Stela. Flagrado pela própria Catarina, o homem foi preso e, quando deixou a cadeia, até tentou pedir o perdão da filha, mas foi desprezado. A ex-esposa, porém, vai viajar ao lado da amiga.
Na época, Jackson Antunes chegou a ser agredido por causa do personagem. Em entrevista para Patrícia Kogut, do jornal ‘O Globo’, o ator recordou da situação: enquanto andava pelas ruas do Rio de Janeiro, um espectador raivoso surgiu “do nada” e o empurrou com força. A situação causou uma trombose na perna do artista, que ficava a maior parte do tempo em uma cadeira de rodas para aguentar gravar as cenas da novela.
Durante o período de exibição da novela, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM) registrou aumento de 22,3% nos relatos de violência recebidos pela Central de Atendimento à Mulher em relação ao ano anterior. A própria Maria da Penha sugeriu, durante entrevista à Folha de S. Paulo, que João Emanuel Carneiro poderia dar mais detalhes sobre a lei que leva seu nome no folhetim:
Seria interessante se o autor da novela ‘A Favorita’ mostrasse os caminhos que a personagem Catarina tem para denunciar os maus tratos que sofre do marido. Uma boa oportunidade de mostrar como a lei é aplicada.
5. ‘Salve Jorge’ e a operação internacional contra o tráfico sexual de mulheres
Em fevereiro de 2013, o Fantástico exibiu uma matéria sobre a mãe de uma vítima só se deu conta que a filha passou por uma situação de tráfico sexual quando percebeu que a história de Morena (Nanda Costa), levada para se prostituir na Turquia graças a um golpe orquestrado por Lívia Moreno (Claudia Raia), se assemelhava a de sua menina. Prontamente, fez uma denúncia para a Polícia Federal brasileira, que, junto da correspondente espanhola, coordenou uma ação conjunta para descobrir detalhes sobre o esquema e tentar tirar outras mulheres desta condição.
No folhetim, Morena, moradora do complexo do Alemão, está em graves problemas financeiros quando conhece Wanda (Totia Meireles), suposta assessora de uma agenciadora de talentos artísticos, que lhe oferece uma “oportunidade esplêndida” de trabalho no exterior, com garantia de dinheiro rápido, que mudaria a vida das meninas que aceitassem seu convite. Só que Wanda, na verdade, era braço direito de Lívia, mulher sofisticada que preparava todos os trâmites para traficar mulheres e prostitui-las no exterior, desde a contratação de olheiros até as falsificações necessárias para viabilizar a viagem das vítimas. No país estrangeiro, as mulheres tentam fugir da boate em que foram confinadas e voltar para o Brasil a qualquer custo.
Segundo o colunista Ancelmo Gois, do jornal ‘O Globo’, as ligações para o serviço “Ligue 180”, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, aumentaram muito durante a exibição do folhetim, embora dados oficiais não tenham sido divulgados. Em sua coluna na Folha de S. Paulo, a procuradora de justiça Luiza Nagib Eluf, por sua vez, reconheceu que a novela contribuiu na disseminação do tema por causa do tratamento didático ofertado por Glória Perez.