O ano de 2023 está sendo de puro sucesso para Clara Serrão. Isso porque a atriz, de 22 anos, está na série ‘Todo Dia a Mesma Noite’, na Netflix, interpretando Daiane, uma das sobreviventes do incêndio da Boate Kiss, em 2013; e no sucesso de ‘Vai na Fé, novela que terminou semana passada na Globo. Lá, viveu a personagem Isabela – uma jovem perseverante que, por meio do estudo, busca melhores oportunidades na vida, além de trazer à tona a discussão sobre questões raciais e se colocar numa posição de repensar sua identidade enquanto uma mulher preta.
Tais questões geram identificação com a artista, que garante ter passado pelo mesmo questionamento na vida real: “Vivi esse processo um pouco mais cedo, no ensino médio, em que tive acesso a um letramento racial. Acredito que a experiência no ambiente estudantil é um catalisador para essa transformação, mas, mesmo que esse acesso não seja uma realidade para todas, muito dessa transformação vem também na vivência, na relação consigo mesma, com a autoestima”, diz.
Na visão de Clara, muito da nossa subjetividade vem à tona nesse período de entrada na vida adulta, quando precisamos entender nossos gostos, identidade se objetivos. Não à toa, vem colhendo os frutos de sua força e talento: “Me sinto privilegiada de ter estado em um projeto tão especial [novela global das 19h]. Uma atriz preta que anseia por produtos que valorizem nossas narrativas e nos coloquem em lugares de destaque, com personagens humanizados, histórias reais, longe dos estereótipos”. Veja a entrevista completa!
Como você se sente por ter estado em um projeto tão especial neste momento inicial da carreira como atriz, interpretando Isabela, em ‘Vai na Fé’?
Me sinto muito agraciada. Esse momento é a materialização de um grande sonho e, portanto, não
poderia ser mais especial. Estar em uma novela revolucionária, potente, enviando mensagens fundamentais para o público, convivendo com pessoas incríveis e por quem tenho uma admiração gigante, com a oportunidade de aprender com um elenco brilhante e extremamente generoso é, de fato, para se considerar um presente. Estou vivendo cada segundo como se fosse o último! Só alegria.
A Isabela se colocava numa posição de repensar sua identidade enquanto uma jovem preta, buscando compreender sua autoestima e postura em relação às outras pessoas. Acredita que muitas meninas pretas atravessaram esse momento na vida?
Com certeza! Aliás, posso dizer isso com lugar de fala. Eu vivi esse processo um pouco mais cedo, no ensino médio, onde eu tive acesso a um letramento racial. Acredito que a experiência no ambiente estudantil é um catalisador para essa transformação, mas, mesmo que esse acesso não seja uma realidade para todas, muito dessa transformação vem também na vivência, na relação consigo mesma, com a autoestima. Muito da nossa subjetividade vem à tona nesse período de entrada na vida adulta, quando geralmente temos que caminhar para a independência e entender nossos gostos, manias,
identidade e objetivos por conta própria.
Você já passou por esses conflitos em relação à própria identidade? Já se sentiu ‘desconfortável’
em lugares que não costuma frequentar?
Muitas vezes! Apesar de a minha família não ter ótimas condições financeiras, fiz o ensino fundamental inteiro em escola particular, curso de inglês na zona sul e ainda estudei teatro no Tablado – lugares onde pretos sempre eram minoria numericamente. Depois que entrei no ensino médio em um colégio
federal, encontrando pessoas das mais diversas realidades, comecei a perceber com mais nitidez essas limitações presentes na minha bolha social, até que passei a sentir a necessidade de encontrar outras possibilidades de lugares, onde eu pudesse ver pessoas parecidas comigo, com vivências mais
próximas da minha.
Em que a Clara se assemelha com a personagem Isabela? E o que as difere completamente?
Bella e Clara são gentis, tranquilas. Acho que a diferença maior é o otimismo. A Bella era um pouco
pessimista e eu já me considero bem otimista. Por outro lado, me considero uma pessoa tímida como ela, e também já passei por conflitos em relação à minha própria identidade quando me vi em ambientes diferentes daqueles que costumo frequentar, além da trajetória de florescimento da autoestima – algo inerente a quase toda menina preta.
Você tem vivências parecidas com as de outras figuras da ficção. Na vida real, você é neta de uma mulher que vende quentinhas em Santa Teresa. Como foi fazer parte de um projeto profissional em que
pode ‘experimentar’ muito de sua realidade?
É incrível! Amo essa sensação de proximidade com a história da novela. É um sentimento familiar mesmo. Minha mãe, quando era jovem, ia com frequência aos bailes (ela e meu tio são formados em Direito). Fora minha avó, que vende as quentinhas e também é atriz. Me sinto profundamente íntima da história, das personagens. Era uma delícia.
Aliás, o ano de 2023 começou produtivo para você, com as estreias de ‘Todo Dia a Mesma Noite’, ‘Vai na Fé’ e ‘Cenas de Um Crime’. Quais são as semelhanças entre esses trabalhos e a lição que já pode tirar de cada um deles?
Os três são trabalhos honrosos que transmitem mensagens muito significativas, fundamentais ao público. Posso dizer que sinto muito orgulho de fazer parte desses trabalhos e de ter contribuído para as abordagens de questões que precisam ser faladas, debatidas, reparadas, cada uma em seu contexto. Cada um desses projetos agregou (e ainda agrega) algo para o meu crescimento como pessoa e como atriz.
‘Todo Dia a Mesma Noite’ aborda um momento muito doloroso na vida de muitas famílias. Como foi conhecer essa história e reviver o drama daqueles jovens?
Foi duro revisitar esse episódio e entender o que de fato aconteceu. Quando aconteceu o incêndio, eu era muito nova e vi só o que passava nos noticiários – e nem disso eu lembrava mais. Para fazer a série, li o livro da Daniela Arbex e o roteiro seguia com certa fidelidade o que era descrito na obra. A tristeza, a revolta e o luto ficaram muito latentes. Todo mundo do elenco ficou um pouco abalado. Mas isso também fez a gente entender o quanto era importante contar aquela história e ajudar as famílias que lutam até hoje por justiça a terem visibilidade.
Comente sua forte ligação também com o Carnaval…
O Carnaval faz parte da minha vida desde sempre. Minha mãe foi da comissão de frente da Beija-Flor durante dois anos e passista por quase 20. Minha avó foi costureira de barracão, eu também desfilei alguns anos como passista, mas comecei mesmo ainda pequena nas escolas mirins. Cheguei a fazer oficina para ser porta-bandeira na infância, mas me encontrei mesmo no samba no pé. Passei muitos anos vendo minha casa encher de fantasias quando chegava a época do Carnaval. Sempre desfilávamos em grupo com familiares e amigos. Hoje, minha família não desfila mais, mas somos eternos apaixonados. Eu amo assistir aos desfiles das escolas de samba, ficar até o amanhecer – costumo frequentar os barracões desde quando tinha 1 ano. E também tenho vontade de voltar a desfilar na Sapucaí.
É vaidosa? Como é sua relação com o espelho?
Tenho momentos. A única coisa que cuido com mais regularidade é o cabelo. As outras coisas ficam à
mercê do meu humor [risos], mas, ultimamente, com as demandas do trabalho, tenho curtido mais fazer as unhas, me maquiar. Antes, gostava muito de improvisar nos looks, personalizar, colocar expressividade nas roupas. Com o tempo, perdi um pouco isso, mas estou correndo atrás
para recuperar essa força. Moda e estilo são coisas que eu sempre gostei de entender e explorar.
Agora nos conte: tem uma mania? E um medo?
Ah, sim! Tenho a mania de sofrer por antecedência, de racionalizar as coisas e já pensar em possíveis problemas sem a coisa nem ter acontecido ainda. Tenho muito medo de perder boas oportunidades.
Um motivo para ser grata e uma razão para rodar a baiana… A presença e o apoio da minha
família é motivo de muita gratidão. Eles são meu alicerce. O que me tira realmente do sério são
situações injustas e pessoas que têm dois pesos, duas medidas, sabe como é? Não suporto!