Como nem sempre a vida imita a arte, nem toda madrasta é como nas histórias infantis. Em vez de maçãs envenenadas e conflitos, a vida real pode surpreender com relações de afeto, parceria e cuidado entre mães e madrastas. Como exemplo disso, a atriz Maria Ribeiro fez um relato que recentemente viralizou nas redes sociais ao compartilhar a relação especial que construiu com a também atriz Luísa Arraes, madrasta de seu filho, o Bento. “Minha comadre, minha amiga, minha parceira de uma história para a qual ainda não inventaram nenhum nome, mas que podemos chamar de amor,” escreveu Maria em uma homenagem que emocionou a muitos.
É fato que essa relação entre as atrizes não é uma realidade para todas as famílias. Entretanto, não precisa, necessariamente, ser um problema. “Muitas vezes é um desafio. Além das dinâmicas familiares – mesmo entre pessoas do mesmo núcleo – nutrirem todas as emoções que um ser humano pode experienciar, as madrastas já iniciam a relação com um déficit que não foi ela quem causou e sim a cultura onde estamos inseridos. Afinal, quem aqui não aprendeu através dos filmes infantis e das novelas que a madrasta é uma bruxa má? Ou seja, antes mesmo de conhecermos a pessoa e sabermos se ela é legal, o título “madrasta” tende a chegar na frente trazendo um estereótipo de desconfiança e preocupação. Aí, a mulher com o “título” que lute para desfazer a cultural crença de que ela é uma bruxa má. Além do cultural, a forma como essa madrasta chega à família também impacta na maneira como a relação com a mãe e com o filho/enteado se dará nos primeiros momentos”, explica a neuropsicóloga Aline Gomes.
E essa nova perspectiva de convivência, em que madrastas e mães jogam no mesmo time, inspira nossa matéria da semana. Vamos falar sobre como essas relações, muitas vezes vistas como complicadas, podem se transformar em laços de amizade e companheirismo. Assim como Maria agradeceu a parceria de Luísa, reconhecendo-a como “a melhor madrasta do mundo,” nossa sociedade começa a entender que o amor não precisa de rótulos tradicionais para crescer em sua forma mais pura.
Um início delicado, mas com ‘final feliz’ possível
Normalmente, o início da relação entre mães e madrastas é bastante delicado. Afinal, a pessoa que chega após o fim de um casamento, ainda que este tenha sido sem brigas, é sempre vista, em um primeiro momento, com pés atrás, especialmente quando essa nova pessoa terá contato com nossos filhos.
Laura*, mãe de três crianças que hoje são adultas, conta que quando se separou, a mais nova tinha apenas dois anos e que o ex-marido, agora casado novamente, não incluía os filhos em sua rotina. “Quando me separei, foi muito doloroso. Ele casou novamente pouco depois. Então, pensar que meus filhos teriam contato com ela era muito desgastante. Mas não tinha jeito. Então, depois que ele casou, achei que fosse levar nossos filhos para a nova casa nos finais de semana intercalados, mas isso não aconteceu. Até que, certo dia, peguei os três e bati na porta dele. Ela abriu, me identifiquei, como se precisasse, e disse que como agora ela era a nova família dele, teria que conviver com meus filhos, que eram responsabilidade dele também, e que a partir daquele momento, a cada 15 dias eles passariam o final de semana lá. Ela foi extremamente gentil, abriu e porta e eles ficaram bem. A partir de então, passaram a conviver bem, e meus filhos sempre foram tratados como filhos, até depois que o filho dela nasceu, que por sinal também passou a frequentar a minha casa. Hoje, não posso dizer que somos amigas, mas convivemos bem”, conta.
Para a psicanalista Ana Lisboa, a ideia de que a relação entre mães e madrastas é sempre problemática está enraizada em muitos aspectos culturais e históricos. No entanto, essa generalização nem sempre reflete a realidade. “Cada relação é única e depende muito das dinâmicas familiares, do contexto em que a madrasta entrou na vida da criança e das atitudes de todas as partes envolvidas. É possível que surjam conflitos, sim, mas isso não é uma regra. Em muitos casos, é possível desenvolver relações harmoniosas e de cooperação, desde que haja respeito, comunicação aberta e um esforço genuíno para o bem-estar da criança”, comenta. Ela diz, ainda, que uma relação saudável entre mãe e madrasta pode proporcionar um ambiente familiar mais estável e seguro para a criança. “Quando há respeito e cooperação, a criança sente-se amada e apoiada por todos os lados, o que contribui para seu desenvolvimento emocional e psicológico. Além disso, a criança aprende sobre tolerância, respeito às diferenças e como lidar de forma construtiva com situações complexas, como as que envolvem famílias reconstruídas. Esse tipo de convivência harmoniosa pode fortalecer os vínculos familiares e proporcionar uma rede de suporte mais ampla e segura para a criança”.
Aline Gomes lembra, ainda, que o fato da mãe e da madrasta terem uma relação saudável certamente é bom não apenas para as crianças. “Mãe, madrasta, filho/enteado e, também, pai/parceiro saem ganhando quando a relação é saudável. Aumentam as chances da criança de receber afeto, ombro e orientações. A criança aprende sobre relacionamento interpessoal, negociações, diversidade de valores e pensamentos. Neste sentido, aprende também sobre agregar ao invés de excluir. Muitas vezes, a madrasta pode complementar com aquilo que a mãe não está conseguindo fazer, como aquela maquete para entregar em tal prazo no colégio, ou aquele penteado diferente e demorado”, pontua.
Mas, atenção, ainda que algumas madrastas tenham intimidade com as crianças e as amem, mãe só tem uma. “Quando uma madrasta conhece uma criança desde muito jovem, é natural que ela desenvolva um vínculo afetivo forte e, em alguns casos, queira assumir um papel semelhante ao de uma segunda mãe. No entanto, é fundamental que a madrasta reconheça e respeite o lugar da mãe biológica. A madrasta pode ser uma figura de apoio e carinho, mas tentar substituir ou competir com a mãe biológica pode gerar confusão emocional para a criança e tensão na família. O equilíbrio é essencial: a madrasta deve construir sua própria relação com a criança, sem tentar ocupar um espaço que já está preenchido”, enfatiza Ana.
As dificuldades – e impossibilidades – da relação
Embora o ideal seja uma boa relação entre mães e madrastas, nem sempre isso acontece. E as razões para isso acontecer, as vezes, não necessariamente são culpa de uma ou de outra – a dificuldade da relação pode ter diversas causas, como a maneira como a madrasta foi apresentada à família; as personalidades dessas mulheres; a interpretação que se faz sobre “a madrasta” e a inflexibilidade para ressignificar estereótipos etc.
Independentemente do motivo, muitas mães, por se sentirem inseguras, acabam afastando os filhos das madrastas. Essa insegurança inicial é comum, já que algumas mulheres acham que sua maternidade ficará ameaçada pois interpretam que haverá uma outra mulher para avaliar sua forma de educar e cuidar. “A questão está quando essa mãe, mesmo passados os momentos iniciais, nem se permite abrir para entender e saber quem é a outra mulher. Se fecha com seus julgamentos e apresentam aos filhos suas impressões pessoais. Sendo possível, se aproximar da madrasta para conhecer, saber quais são os valores e a forma como enxerga a vida, ajudará a mãe a entender quem é essa outra pessoa que ficará tantas horas com o seu filho, especialmente se for menor de idade”, avalia Aline. Para Ana, é compreensível que algumas mães possam sentir-se inseguras quando uma nova figura feminina entra na vida de seus filhos. Entretanto, é importante que a mãe trabalhe essas inseguranças para que não haja um afastamento forçado e prejudicial entre a criança e a madrasta. “Em vez de ver a madrasta como uma ameaça, é possível vê-la como uma aliada na criação e no cuidado com a criança. Isso requer maturidade emocional e um esforço consciente para evitar que sentimentos de posse ou ciúmes prejudiquem a dinâmica familiar”, avalia.
Mas atenção: Se a relação não for boa, ainda que haja uma vontade de impedir o pai de ficar com o filho caso a madrasta esteja junto, o ideal é a mãe ponderar racionalmente, pois a criança será a parte mais afetada. “Nessa dinâmica, a criança aprende – mesmo que de forma velada – sobre rejeição, exclusão e, inevitavelmente, a relação com o pai fica limitada”, diz Aline. Além disso, é importante que o filho não vivencie essa relação problemática entre essas duas mulheres. Afinal, como normalmente os pequenos tendem a escutar mais a mãe, essa não aprovação da nova parceira do ex-marido fará a criança perpetuar tais reprovações por lealdade à figura materna.
Outra situação comum que pode acontecer quando há conflitos entre mães e madrastas é a criança sentir-se dividida, culpada por gostar de ambas, ou ser forçada a tomar partido em conflitos que não são seus. “Esse ambiente de tensão pode gerar estresse, ansiedade e até problemas de comportamento na criança. Além disso, conflitos frequentes entre mãe e madrasta podem minar a estabilidade emocional da criança e criar um ambiente familiar disfuncional, o que pode ter consequências duradouras para seu desenvolvimento”, sinaliza Ana.
Ou seja, é importante reconhecer que as famílias contemporâneas são diversas e complexas. A relação entre mães, madrastas e crianças exige cuidado, empatia e, acima de tudo, uma postura voltada para o bem-estar emocional dos pequenos. “Cada membro da família desempenha um papel vital na construção de um ambiente saudável e amoroso. Buscar ajuda profissional, como terapia familiar ou aconselhamento, pode ser extremamente útil para mediar conflitos e criar uma convivência mais harmoniosa”, conclui Ana Lisboa.
Direto ao ponto
Que relações entre mães e madrastas podem ter um caminho inverso aos dos contos de fadas, nós já sabemos. Entretanto, muitas vezes, a boa convivência não acontece. Mas e a criança? Como fica nessas situações?
Para falar um pouco mais sobre o “lado legal” dessa relação, conversamos com a advogada feminista Rachel Serodio, especialista em Direito das Famílias.
Aventuras Maternas: Uma madrasta tem algum papel legal em relação ao filho do companheiro/companheira?
Rachel Serodio: Eu entendo que a letra fria da lei, do artigo 1636 do Código Civil, ao afirmar que o “pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro”, traz um viés moralizante de que madrastas estão obrigatoriamente afastadas das decisões dentro de novos arranjos familliares, com afastabilidade rígida, como se novas relações não pudessem ser construídas e dentro delas houvesse espaço para deliberações em conjunto. Mas a madrasta faz parte dessa nova configuração familiar do pai (ou da outra mãe). Então, dentro deste novo arranjo familiar entendo que não há problema se ela for numa reunião de escola caso pai e mãe não possa ir, levar em alguma festa ou até mesmo tomar algum tipo de decisão como levar correndo a um hospital ou medicar se estiver com febre enquanto a criança esteja aos cuidados dela. Claro que sem imposições e através de um bom diálogo que coloque a criança/adolescente no protagonismo dessas decisões, ou seja, buscando sempre o melhor para eles. Qual o sentido que exista apenas uma pessoa que não possa ter voz. Então, eu vejo a disposição do Código Civil com um marcador muito profundo de marginalização dessas figuras, e acho isso muito importante ser trazido. Como cercear a atuação dessa mulher, dentro daquele ambiente familiar que agora ela faz parte? Como a pessoa vai lidar na própria casa, dentro da sua relação familiar com o filho, que não é biologicamente seu? Precisamos debater muito esse tema. É preciso, ainda, sair um pouco do maniqueísmo e dessa dualidade, como se fosse uma briga entre mães e madrastas, sem esquecer que são as mulheres que estão em sua maioria exercendo o cuidado A gente não pode reproduzir a todo custo e a todo tempo os estereótipos que colocam a madrasta nesse lugar de pessoa perversa, de pessoa que quer mal para os filhos do companheiro, que quer acabar com a relação do pai com aquelas crianças ou até mesmo de que quer roubar o filho da mãe e quer que o filho seja dela. Por isso que é muito importante no Direito, tirando as questões legais, o entrelaçamento com o serviço social e com a psicologia para o melhor desenvolvimento dessa criança/adolescente.
Aventuras Maternas: Caso não aconteça uma boa relação entre mãe e madrasta, a mãe pode impedir o pai de ficar com o filho caso a madrasta esteja junto?
Rachel Serodio: São muitas questões quando a gente fala dessa relação. Mas, antes de tudo, é preciso entender um primeiro marcador: madrasta e padrasto são esposa e marido, companheira ou companheiro; ou seja, não é a namorada(o). É preciso entender, antes de tudo, quem é essa pessoa, qual é o papel dela no contexto familiar. Outro ponto importante é que a gente tem um marcador do preconceito sobre madrastas. Padrastos não são mal-vistos socialmente como as madrastas. Padrastos estupram, são violentos, mas, falando de uma forma muito subjetiva, a sociedade tem problemas é com a madrasta. Se pensarmos bem, desde muito cedo somos socializadas entendendo de que elas são perigosas e um problema. As próprias histórias da Disney colocam madrastas sempre no lugar muito cruel, desqualificador e marginalizado. Mas, vamos lá: uma vez que se entende que essa mulher é parte da família do pai, ela fará parte da vida dessa criança e não pode ser impedida disso simplesmente porque a mãe não gosta dela ou da relação que sua cria com ela criou Aqui, veja bem, não estamos falando sobre violências ou maus tratos, mas sobre alguém querer impedir que haja uma relação extensa emocionalmente viável. E é aí que começam algumas questões a serem debatidas. A mãe ter um problema com a madrasta é da ordem subjetiva da mãe. Tem problema por quê? Isso é uma questão extremamente importante de se dizer, porque se essa madrasta trata muito bem, se essa madrasta tem uma relação de afeto, se essa madrasta faz parte dessa recomposição da família paterna, a mãe precisa cuidar de sua saúde mental para compreender suas subjetividadesté mesmo porque essa madrasta, muitas vezes (e na, maioria das vezes, quando falamos de um país patriarcal, estamos falando sobre mulheres exercendo cuidados, ou seja, em algum momento essa madrasta vai ser uma cuidadora dessa criança de fato), não estará ali como uma espectadora apenas. Isso significa que a determinação e a decisão dessa madrasta é relevante ou vai ser considerada? Não, necessariamente. Porém, pela nova construção familiar, ela não pode ser vista apenas como uma mera espectadora. Ela não pode ser afastada da criança sem qualquer justificativa, unicamente porque a mãe não se dá bem com ela. O que é motivo legítimo de afastamento, que são os casos que a gente vê na mídia, que a gente vê na prática da advocacia, são violências. Violências, sim, com toda certeza.
Aventuras Maternas: Entendendo que haja uma boa relação entre mãe/madrasta/criança, em caso de falecimento da mãe, essa madrasta pode “adotar” essa criança?
Rachel Serodio: Em caso de falecimento da mãe, se essa madrasta constrói com essa criança o exercício da maternidade, entendo que não há problema algum dela “ser mãe” também dessa criança através do que chamamos de multiparentalidade ou maternidade socioafetiva E isso não ocorre somente em casos de falecimento, mas quando as mães e os pais estão vivos também. A adoção, por sua vez, é uma retirada do assento de nascimento do nome da mãe e um apagamento da ancestralidade dessa criança. Então, precisa ser analisado na prática, porque a mãe falecer não significa que a criança não teve uma relação de afeto com ela construída. Vai então perder o nome daquela mãe do assento de nascimento?Isso também tem que ser analisado caso a caso, mas eu entendo que, de início, a alternativa jurídica ideal em situações de que a madrasta ou o padrasto exerçam de fato a maternidade é a multiparentalidade. A adoção, penso, seria um caso da criança não conhecer a mãe de fato, de abandono, de não querer buscar a ancestralidade, o que pode ocorrer até na maioridade.
Aventuras Maternas: Nos últimos anos, não foram raros os casos de madrastas sendo violentas com enteados (até mesmo com morte). Como a mãe pode resguardar o filho caso aconteça algo que acenda seu alerta?
Rachel Serodio: Em casos de violências é importante que se busque as delegacias de atendimento a crianças e adolescentes para registro. Para além disso, considero importante a formalização com o pai do que vem sendo percebido, até mesmo porque existem vários tipos de violências e nem sempre ocorre violência física. É importante também, se possível, que a criança seja acompanhada por profissional da área da psicologia para poder se fortalecer neste cenário. E tudo isso sem dúvidas precisa ser levado ao sistema de justiça para um pedido de afastamento, para garantir o que chamamos de princípio integral da proteção da criança e do adolescente. Então, sim, afastar essa criança da convivência com essa madrasta.
Nem sempre a boa relação não acontece por “culpa” da mãe. Nos últimos anos, inclusive, não foram raros os casos de madrastas sendo violentas com enteados, até mesmo com morte. Afinal, quais sinais a mãe deve ficar de olho para evitar o pior?
“Os principais sinais vem da própria criança. Claro que conhecer a madrasta e ficar atenta a este novo membro da família é importante. Contudo, avalie se a criança muda de humor depois de passar algum tempo com a madrasta; se há alteração de apetite; olhe os desenhos que a criança cria e repare quais mensagens estão contidas ali; se a criança está socializando menos por estar mais introvertida; e se há um desejo empolgante para ir para a casa do pai”, sugere a neuropsicóloga Aline Gomes.
Para evitar situações extremas, as mães devem estar atentas a sinais de mudança no comportamento da criança, como retraimento, medo inexplicável, agressividade ou relutância em ficar com a madrasta. Além disso, pontua Ana, sinais físicos de violência, como hematomas ou lesões inexplicáveis, devem ser investigados imediatamente. “É fundamental que as mães mantenham uma comunicação aberta e de confiança com seus filhos, para que eles se sintam seguros em compartilhar qualquer situação de desconforto ou abuso. A prevenção, através do monitoramento atento e de diálogos francos, é a melhor estratégia para evitar tragédias”, alerta a psicanalista.