Recém-aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o milheto é um grão com alto teor de fibras alimentares e proteínas que pode ser usado em alimentos integrais, como farinhas, biscoitos e salgadinhos. É o sexto cereal mais produzido do mundo (atrás do milho, trigo, arroz, soja e cevada), mas, no Brasil, até então era usado apenas para alimentação do gado ou como forma de auxiliar os agricultores na rotação de cultura – técnica que visa preservar o solo ao alternar espécies vegetais ao longo do tempo. Com a Resolução de Diretoria Colegiada nº 493/2021, porém, o grão poderá ser usado na alimentação humana a partir de 2022.
Quem apresentou um pedido para a agência inserir o milheto como ingrediente em produtos integrais foi Amanda Dias-Martins, pesquisadora, mestre e doutora em ciência e tecnologia de alimentos. Ela também foi responsável por escrever um artigo internacional investigando as propriedades do grão – entre elas, ela cita estudos que sugerem que o cereal possua baixo índice glicêmico e não tenha glúten, possibilitando que ele seja base para opções voltada ao público celíaco ou como alimento alternativo para controle de peso e redução do risco de doenças crônicas, como diabetes.
Além disso, como a pesquisadora afirmou em seu artigo, é importante conhecer opções para a produção alimentar – afinal, o crescente aumento da temperatura, devido ao aquecimento global, e a redução da disponibilidade de água, vide a recente crise hídrica no país, podem afetar a oferta de comida, aumentando os preços nos mercados. Aí entra o milheto: o grão pode resistir tanto ao calor quanto à seca; por isso, é um dos cereais básicos (equivalente ao nosso arroz) de vários países africanos ou asiáticos.
NA ALIMENTAÇÃO
O milheto é tão nutritivo que contém mais fibra que o arroz, uma quantidade de lipídios semelhante ao do milho e maior teor de aminoácidos essenciais (leucina, isoleucina e lisina) do que outros cereais tradicionais, como trigo e centeio. De acordo com a nutricionista Edvânia Soares, pós-graduada em nutrição clínica esportiva e vigilância sanitária, o grão também contribui para o controle glicêmico – essencial para quem tem risco de desenvolver diabetes – já que possui menor concentração de carboidratos e maior teor proteico.
E não é só isso: “o cereal auxilia no controle de peso (já que é rico em triptofano, que ajuda na redução de apetite), melhora a saúde digestiva, pois contém fibras, e colabora no fortalecimento dos ossos pela concentração de fósforo e manganês presentes no grão”, explica a nutricionista.
Assim como a maioria dos grãos, o milheto pode ser moído, descascado, germinado (colhido no início da plantação, quando as sementes estão começando a formar a planta), fermentado (processo natural em que o alimento é alterado pela ação de bactérias, probióticos e micro-organismos), cozido e extrusado (cortado em fatias, assim como é feito o macarrão). Dessa forma, ele pode dar origem a farinhas, biscoitos, salgadinhos, pipocas, mingais, doces, massas e bebidas. “Além disso, sua farinha integral pode ser usada como ingrediente para substituição parcial de gordura animal em almôndegas, hambúrgueres e outros produtos cárneos”, conta a pesquisadora Amanda Dias-Martins.
Pipoca feita com milheto | Senac Pernambuco
Inclusive, duas alunas que Amanda co-orientou, Flávia Andrade e Anna Carolline da Fonseca, do curso de Engenharia de Alimentos da Universidade Federal de São João del-Rei, em Minas Gerais, desenvolveram almôndegas de frango com teor reduzido de gordura. No estudo, orientado também pelos professores Douglas Guimarães e Felipe Trombete, os grãos de milheto foram pré-cozidos e, depois, desidratados e moídos, virando uma farinha integral pré-cozida. O alimento produzido dessa forma teve uma redução de 17% em gorduras totais, contribuindo para uma alimentação mais saudável dos consumidores.
POR QUE SÓ AGORA?
É importante ressaltar que, até então, não havia nada que comunicasse que o cereal era proibido. Por outro lado, quando um alimento não possui histórico de consumo no país ou não é contemplado em algum regulamento técnico da Anvisa, ele deve ser avaliado pela agência, que decide se pode ou não ser comercializado para alimentação humana no país.
Como já mencionado, os grãos de milheto já são produzidos no Brasil há mais de 50 anos, mas com outros fins. Na opinião da pesquisadora, a aprovação veio apenas agora porque não havia muitos estudos que abordassem o potencial nutricional e tecnológico do alimento. A tese de doutorado de Amanda, publicada em 2015, foi a primeira a investigar o cereal como fonte de nutrição para os brasileiros.
Em primeiro lugar, representantes da agência e de empresas, junto de estudiosos, discutiram quais os requisitos para que um alimento pudesse ser declarado como integral na embalagem. Em 2020, Amanda solicitou, em uma Consulta Pública, que o milheto fosse contemplado na lista dos ingredientes deste tipo de produto (que, até então, continha apenas arroz, aveia, milho, teff e painço). Como justificativa, ela enviou seu estudo dos potenciais do milheto. Assim, a Anvisa atualizou um artigo da resolução, seguindo a contribuição da pesquisadora.
AO REDOR DO MUNDO
Apesar do milheto ser novo aqui, ele é bastante utilizado para a produção de alimentos tradicionais em outros países. “Doces conhecidos como ladoo e dakuwa são preparados com farinhas de grãos de milheto torrados e comumente consumidos na Índia e Nigéria, respectivamente. O chapati (rotti ou rotla), um pão achatado sem glúten semelhante a panqueca, é muito consumido na Índia e pode ser feito com farinha de milheto e água morna. Esses pães achatados são cozidos na chapa quente (tawa) ou fogão a lenha e servidos nas refeições, geralmente com molhos picantes”, afirma Amanda.
Como é de se esperar, a Índia é classificado como o maior produtor mundial de milheto, seguida da República do Níger, China e Nigéria. Em outros países africanos, como o Senegal e o Mali, grãos de milheto polidos são usados para a produção do famoso ‘coucous marroquino’ em uma versão sem glúten. Além disso, o cereal costuma ser consumido puro, junto de vegetais e iogurte.
Snack feito com milheto | Senac Pernambuco
MERCADO
Com a entrada da nova resolução da Anvisa, as empresas preveem que o milheto ganhe valorização no mercado. “Com a entrada em vigor da nova legislação em 2022, o valor agregado dos grãos de milheto tende a aumentar, havendo uma valorização no mercado, além do aumento da rentabilidade no campo”, explica a doutora em ciência e tecnologias de alimentos.
A ATTO Sementes, líder na produção de sementes de milheto no Brasil, promete novidades para o próximo ano. De acordo com José Antonio Matielo, diretor comercial da empresa, a aderência da cultura pelo agricultor está aumentando. Por isso, a produção das sementes está crescendo. “Os híbridos de milheto trazem uma excelente renda para o produtor com baixo risco, de maneira que não é mais viável plantar o milho. Acreditamos que todos esses benefícios se somam para que o Brasil se torne também um grande produtor de milheto”, explica.
No momento, a empresa visa apresentar o milheto como opção para a rotação de culturas, especialmente por meio da ‘PlantUP’ – plataforma da empresa que visa orientar e contribuir com a tomada de decisão do agricultor. Lá, através do filtro ‘Cultura Antecessora’, ele pode analisar o aumento da produtividade caso cultive o grão antes da soja ou algodão. No futuro, com a ampliação do plantio, é esperado que a plataforma contemple dados que possam contribuir, ainda mais, para a difusão deste cereal pelos alimentos integrais do país.