Ter o novo coronavírus é uma experiência muito individual em todos os quesitos. E não saber como o vírus irá se manifestar dentro de seu próprio corpo cria uma atmosfera de profunda imersão e expectativa. No meu caso, a cada amanhecer desde o dia 19 de novembro de 2020, reparava algo de novo, fosse um sintoma ou oscilação.
Depois de me consultar no médico e descobrir que meu pulmão estava aparentemente saudável, principal preocupação de todos na época, passei a identificar algumas mudanças sutis nos aromas e sabores que me rodeavam. A perda do cheiro e do gosto de determinados alimentos era tão fraca que cheguei a celebrar o fato do sintoma ainda ser muito pouco perceptível e não impactar na minha alimentação: “Já pensou ficar confinada com Covid e ainda por cima não conseguir comer nada de gostoso?”, refleti na época.
Curada da doença em casa mesmo, sem grandes sustos, não imaginava que algumas semanas depois os sintomas tomariam uma proporção extrema. Em 4 de janeiro deste ano, notei uma alteração drástica no meu paladar. O marmitex, composto por arroz, bife acebolado, feijão e salada estava todo com o mesmo gosto.
PÃOZINHO INDIGESTO
Os dias foram se passando e, pouco a pouco, reparei que cada vez mais aquele sabor estranho, difícil de definir ou comparar com qualquer outra coisa, se tornava ainda mais recorrente. A bomba estourou de vez quando fiquei frente a frente com um belo pãozinho francês. Pena que ele tinha um cheiro podre! Notei que ovo, iogurte natural, café, leite, arroz, e todos os tipos de carne estavam com o mesmo problema.
Foto: arquivo pessoal
Com isso, comer se tornou uma tarefa cansativa. Amante de um bom e velho churrasco, aboli totalmente o consumo de carnes por mais de um mês. Com exceção dos doces, todos os sabores e aromas que tanto gostava estavam desaparecendo. Parece besteira chamar atenção para algo do tipo, mas só percebi o toque de cor que a comida e os cheiros dão à vida quando isso tudo havia se tornado cinzento.
Preocupada com a falta de vitaminas e curiosa pela persistência dos sintomas, procurei os otorrinolaringologistas Fábio Pinna e Maura Neves, especialistas no assunto, para me ajudar a compreender o que estava acontecendo com meu corpo.
Arte: AnaMaria Digital
POR QUE PERDEMOS OS SENTIDOS?
Segundo o médico, a perda do olfato se dá devido a uma ligação do vírus SARS- COV 2 com receptores que ficam na mucosa olfatória do nariz. Acontece que essa ligação gera uma inflamação muito potente, que pode acabar lesionando os receptores olfatórios.
Isso explica o motivo dos pacientes com Covid-19 permanecerem com o sintoma por muito mais tempo do que quando estão com uma simples gripe, por exemplo.
Pinna me contou ainda que, mesmo existindo a possibilidade do vírus causar lesão direta nas papilas gustativas, a perda do olfato também impacta diretamente na sensação do paladar. Por essa razão, as pessoas que apresentam perda ou alteração nos sentidos costumam fazer tratamentos focados no olfato.
De acordo com Maura, qualquer tipo de infecção causada por um vírus pode causar uma alteração na região do nervo olfatório. O que irá mudar a extensão do sintoma será o tipo de vírus, intensidade da infecção e também alguns fatores individuais que não se tem conhecimento. É por esse motivo que a perda do olfato e paladar pode ser parcial ou total.
Além disso, a médica assegurou que a anosmia (perda total do olfato) pode ocorrer em qualquer etapa da doença, seja ela o primeiro sintoma ou iniciar após alguns dias. Também me explicou que ela pode apresentar intensidade diferente e piorar ou mudar após o período considerado de cura da Covid-19.
COMO TRAZÊ-LOS DE VOLTA?
Ansiosa para saber como poderia melhorar a minha situação, quis saber mais a respeito dos supostos exercícios que prometem trazer o olfato de volta. Pinna informou que, de fato, cheirar diferentes odores e alimentos pode ajudar a recuperar o sentido.
Ressaltou, porém, a importância de realizar um acompanhamento médico para que o tratamento seja específico para o caso de cada indivíduo, levando em conta antecedentes e também a realização de exames. “Não possui grandes efeitos colaterais, mas precisa ser avaliado periodicamente até para uma correta avaliação do progresso clínico do paciente”, relembrou ele.
Já Maura me disse que há tratamento farmacológico para o caso, mas destacou que o treinamento olfativo é muito importante e, às vezes, se sobrepõe aos medicamentos. A médica indicou uma listinha de itens bastante fáceis de encontrar para vender. Por sorte, já tinha todos em casa e, portanto, iniciei rapidamente os exercícios. A otorrinolaringologista, que é colunista aqui do site de AnaMaria, já havia ensinado como fazer esse treinamento em casa. Está facinho copiar.
Em uma semana de testes olfativos, pude ver grandes mudanças na percepção dos aromas.
- Pasta de dente: no primeiro dia de exercício, percebi menos de 65% do cheiro da pasta. Depois disso, o odor mentolado passou a ser mais identificável. Ainda assim, nos dias três e quatro esse odor ainda era muito suave. Somente no sétimo dia de testes que ele passou a remeter exatamente ao cheiro da pasta de dente.
Foto: arquivo pessoal
- Café: no dia um o cheiro estava bastante diferenciado, lembrando principalmente um odor terroso. Já no segundo, essa sensação foi se reduzindo lentamente, e surgiu a percepção do café. No dia quatro já notei uma grande mudança no odor e, no sétimo dia, o cheiro já estava totalmente recuperado.
Foto: arquivo pessoal
- Suco de tangerina: durante o primeiro dia de tentativas, o cheiro do suco lembrava o do sabão, mas chamou atenção por ter um odor açucarado bem forte. No segundo, um fundinho de laranja passou a aparecer, mas o cheiro adocicado permaneceu forte até o dia cinco. Depois disso, o odor da laranja se destacou até a recuperação de 95% do cheiro.
Foto: arquivo pessoal
- Cravo: este foi o cheiro mais diferenciado e que demorou mais tempo para ser recuperado. O aroma me remeteu muito ao odor de incenso e madeira. Isso permaneceu igual até o dia quatro, quando mudanças sutis passaram a ocorrer. No sexto dia de exercícios, algo que caminhava para cravo surgiu, mas foi somente no dia sete que a identificação do aroma foi mais intensa. Acredito que ainda demandará algumas tentativas até que o odor seja 100% recuperado.
Foto: arquivo pessoal
Conclui que o exercício é bastante simples e eficiente. Os produtos necessários são de fácil acesso e, desde que comecei a realizar a atividade, percebi mudanças diretas no meu paladar. Um exemplo disso foi o fato de conseguir consumir carnes. Ainda assim, acredito que o olfato e paladar estejam oscilando, já que tive perdas e ganhos. Refrigerantes à base de cola e guaraná, os quais conseguia beber antes, passaram a ter um gosto bastante diferente e suspendi o consumo desde então.
ANTECEDENTES AGRAVANTES
Pessoas que possuem o histórico de obstrução nasal crônica têm uma maior dificuldade na hora de recuperar o olfato, uma vez que já apresentavam uma inflamação na mucosa nasal. “Isso pode acabar atrapalhando a chegada de moléculas odoríferas na mucosa olfatória, que é a grande responsável pela detecção do olfato”, explicou o médico.
Além disso, Pinna relatou que as mulheres naturalmente têm uma capacidade olfativa mais aguçada do que os homens e que, por isso, percebem mais a perda do olfato.
O otorrinolaringologista disse ainda que, em média, a recuperação do olfato deve ocorrer no prazo de 30 dias, o que pode ser uma boa notícia para você, caro leitor/leitora que está acompanhando este relato, mas não foi para mim, que em março completarei o terceiro mês de olfato e paladar estremecidos.
No entanto, me despeço com a mensagem positiva de ter apresentado apenas as sequelas mais brandas da doença, além da esperança de que, com sorte e persistência nos exercícios olfativos, não estarei dentro daqueles 5% que não apresentaram mais melhoras nos sintomas. E, finalmente, consegui comer meu pãozinho francês em paz (mas o de hot dog ainda não).