No romance de terror ‘Frankenstein’, da britânica Mary Shelley, o estudante de ciências naturais Victor Frankenstein “constrói” uma criatura humanoide com restos de cadáveres. Guardadas as devidas proporções, às vezes, também brincamos de doutor Frankenstein, “construindo” pessoas que não existem, a partir de alguma referência de carne e osso.
Acontece mais ou menos assim: a gente conhece alguém, se interessa pela embalagem e por algumas informações que constam no rótulo. E, a partir daí, em vez de ler nas letras pequenas os ingredientes que compõem o produto e tentar saber se não tem nada ali que faça mal à saúde, criamos o personagem com base em referências de “pessoa ideal” e somamos nossas mais seletas expectativas românticas. E está feita a merda.
Obviamente, qualquer começo de relacionamento que se preze é pura sedução. Queremos parecer interessantes, inteligentes e cheios de bom senso, além de darmos aquela disfarçada nas imperfeiçõezinhas. Nada condenável: a prática de parecer melhor do que se é para atrair o parceiro faz parte da dança do acasalamento em muitas espécies na natureza. Quando o namoro segue, porém, o tempo funciona como uma grande lente da verdade, que vai mostrando quem é quem, independentemente da pose. E é nesse momento, quando as cartas estão na mesa, que temos a oportunidade de enxergar a real sobre quem está ali.
No entanto, neste ponto o relacionamento, está tão legal aquilo de namorar. Além disso, ter alguém ao lado traz uma sensação aconchegante e fazemos vistas grossas para os defeitos e delitos do outro. E a mente criativa começa a trabalhar arduamente: vamos etiquetando o eleito com qualidades que constam exclusivamente em nossa lista de namorado ideal e que não necessariamente são traços daquela personalidade desavisada.
O próximo capítulo desta novela é previsível: a decepção. Parece piada, mas conseguimos a proeza de nos frustrarmos com algo que nunca existiu. “Ele era tão carinhoso” (nunca foi); “gostava de viajar” (só ia porque não tinha como se esquivar); “curtia cinema” (curtia mesmo o futebol); “trabalhador” (era nada, sempre foi encostado); “prezava a família” (visitava a mãe uma vez por ano); “era responsável com dinheiro” (gostava de ostentar comprando o que não cabia no orçamento) e assim por diante. E o que sempre foi daquele jeito ganha status de “mudou para pior”.
CILADA
Alguns sofrimentos vêm sem aviso prévio e sem chances de serem evitados, mas outros escolhemos a dedo. São ciladas que já chegam com placa de “roubada”, só que fechamos os olhos e nos jogamos. E não adianta dizer que se apaixonou, não teve culpa.
Quando alguma amiga conhece o sapo e, ciente de todas as características do sapo, bate no peito e diz que ama o sapo, tem meu respeito. Ela sabe que o sujeito vai deixar a toalha molhada em cima da cama, vai esquecer todas as datas comemorativas, não vai reparar se ela cortou o cabelo e vai reparar – muito – nas bundas das transeuntes. E tudo bem: ele é assim e assim será amado. Agora, pegar o mesmo sapo e tentar enfeitá-lo de príncipe? Meio caminho andado para esse relacionamento ir para o brejo.
*WAL REIS é jornalista, profissional de comunicação corporativa e escreve sobre comportamento e coisas da vida. Blog: www.walreisemoutraspalavras.com.br