Dai, de 22 anos, é uma menina criativa, sensível e tagarela, que trabalha como nail artist, fazendo pinturas elaboradas nas unhas das clientes. Desde os tempos da escola, inspirava outras pessoas por meio dos seus cabelos pintados em cores marcantes, makes descoladas, acessórios personalizados e unhas diferentonas. Foi assim, inclusive, que ela escolheu sua profissão. Antenada, começou a usar as redes sociais para orientar as clientes em relação a maquiagens e esmaltes. Além disso, também fala sobre autoestima e aceitação do próprio corpo.
Acontece que Dai não é uma pessoa ‘real’, como você que está lendo esta matéria, mas sim uma animação 3D, produzida para representar a marca de cosméticos Dailus nas redes sociais. Junto dela, somam-se outros nomes conhecidos: a Magalu, da Magazine Luiza; Emili, da Mili; Nat, da Natura; e a Bia, inteligência artificial do Bradesco. Recentemente, esta última ganhou até um comercial próprio, exibido nas grandes emissoras do país, em que se posicionava contra o assédio sexual de alguns clientes da instituição financeira.
A inteligência artificial do banco não chega a ser uma mascote: Bia não tem características físicas ou psicológicas como as outras, que geram identificação. Basicamente, é uma voz feminina que te ajuda a solucionar problemas e dúvidas em relação às suas transações bancárias. Ainda assim, recebe ‘cantadas’, ofensas e palavras de baixo calão – foram 95 mil comentários deste tipo apenas em 2020. E é por isso que essas produções da tecnologia não são tão ‘objetivas’ quanto costuma-se pensar: elas estão intimamente relacionadas com a sociedade.
Mariana Menezes, mestre pelo programa de pós-graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia e participante do grupo de pesquisa Comunicação, Consumo e Identidade da Universidade Federal do Pará (UFPA), afirma que a tecnologia é baseada em aspectos culturais e sociais porque é feita por e para pessoas. Afinal, nossas relações são intermediadas pelos meios digitais. Até o simples acesso a determinados tipos de tecnologias – como escolher ter uma rede social ou não – define como você vai ser percebido pelas outras pessoas.
Para se ter ideia de como a tecnologia é impactada pela sociedade: no Japão, desenvolvedores e engenheiros criaram um bordel robótico, o ‘LumiDolls’, para vender bonecas robôs personalizadas na tentativa de atender o ‘gosto’ dos clientes com diversas categorias de mulheres.
ESTRATÉGIA DA CONEXÃO
Antes de mais nada, é preciso entender que a criação das mascotes faz parte de um processo do marketing chamado de ‘humanização das marcas’. A ideia, como o próprio nome diz, é fazer com que as empresas pareçam menos frias e burocráticas, se aproximando dos clientes de maneira mais amigável, transparente e personalizada. Todo esse processo está relacionado ao mundo da internet, em que os consumidores estão em contato cada vez mais interativo e constante com suas marcas favoritas.
A estratégia dá resultados. Desde que a Mili (empresa conhecida principalmente pelos papéis toalha e higiênico) aderiu a uma mascote, a Emili, suas redes sociais já tiveram um aumento de 20% do número de seguidores. As informações são de Renata Gomes Maciel, Gerente de Marketing e Trade Marketing da empresa: “A espontaneidade é algo importante para a presença online da marca, mostrando ao cliente seu lado humano. É importante que todos os pontos de contato da personagem com os clientes estejam coerentes com quem ela é: a forma como se movimenta, fala e se posiciona.”
Nat, a representante da Natura, chegou de fininho nas redes sociais da marca, mas gerou tanta aceitação e identificação que acabou assumindo totalmente o perfil da empresa no Twitter. Julia Franchella, diretora de conteúdo, mídia e comunicação da Natura, define a personagem, hoje, como ‘consultora de beleza, influenciadora digital e porta-voz da marca na rede’.
MAS PORQUE NÃO HOMENS?
Até agora, todas as mascotes citadas são mulheres. E, se você pensar em todas que conhece, a maioria delas são do gênero feminino. De certa forma, é uma questão estratégica – a maior parte do público consumidor da Natura, Mili e Dailus são mulheres. Por outro lado, alguns pesquisadores levantam hipóteses diferentes.
Em 2005, antes mesmo da onda de mascotes, Clifford Nass, um professor de comunicação da Universidade Stanford (EUA), escreveu o livro “Wired for Speech: How Voice Activates and Advances the Human-Computer Relationship” [Conectado por discurso: como a voz ativa e avança a relação humano-computador, em tradução livre], em que faz uma análise sobre os elementos psicológicos e de design das interfaces de voz.
Durante a pesquisa, ele chegou a uma conclusão relacionada com a cultura e a sociedade: a voz sintética feminina é percebida como capaz de nos ajudar a resolver nossos próprios problemas, enquanto a masculina é vista como figura de autoridade que nos dá respostas. Afinal, quantas figuras de autoridade mulheres você conhece? Por outro lado, quantas assistentes pessoais ou secretárias?
“Mais uma vez, dentro do universo publicitário, as mulheres não ganham protagonismo” | Imagem: Nayara Bardin/AnaMaria Digital
Além disso, a voz feminina é relacionada ao caloroso, uma “professora de amor e relacionamentos” – mas não tão boa para explicar assuntos técnicos. “Dentro da sociedade patriarcal e machista, as mulheres devem ser sempre cuidadoras, atenciosas, prestativas, resolutivas, serviçais, calmas e tantos outros adjetivos que parecem preencher os requisitos de bons e efetivos assistentes ou mascotes virtuais. O que também acho curioso é que mais uma vez, dentro do universo publicitário, as mulheres não ganham protagonismo, mas são literalmente assistentes e mascotes”, afirma Mariana.
Nos últimos anos, porém, esse percurso tem mudado. Elson Santos, mestre pelo programa de pós-graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA), e também membro do grupo de pesquisa Comunicação, Consumo e Identidade, cita uma iniciativa: “A Dailus fez uma enquete para o público votar e escolher a futura influenciadora digital da marca, trazendo nas mascotes estereótipos da nossa realidade como as pessoas gordas, negras e com deficiência. Isso é muito interessante porque atravessam e ressignificam outros tipos de debates.”
Gerente de marketing e marca, Júlia Ribeiro Villa conta que a ideia era exatamente romper com os padrões sugeridos pela sociedade. E não só na aparência: as atitudes e a linguagem, também. “Nada melhor do que criar três lindas opções de personagens que traduzam de forma clara a maneira que nós enxergamos a beleza: de maneira verdadeiramente democrática. Envolver as consumidoras na escolha da Dai é muito especial, tanto para nós, quanto para o público, que teve a oportunidade de votar e eleger a representante com quem mais teve identificação”, conta.
REPRESENTATIVIDADE
A Dai é gorda; a Nat, negra. Ambas fogem do padrão de beleza europeu, que norteou a publicidade nos últimos anos: mulheres brancas, magras e loiras, lidas como a ‘beleza perfeita’. Assim, há cada vez mais identificação com o consumidor, que se sente representado por personagens que refletem, de fato, o real. “A Dai surge, nesse momento, para que a consumidora se sinta ainda mais percebida e acolhida”, declara Júlia Ribeiro.
Dai e Nat simbolizam um percurso de maior representatividade na publicidade e nas mascotes 3D | Imagem: Nayara Bardin/AnaMaria Digital
No processo de construção de sua personagem, a Natura se preocupou em levantar discussões sobre temas raciais, especialmente em postagens no Twitter. Já foram abordadas questões como a importância da autoestima, da representatividade étnico-racial e de gênero, além de conteúdos de combate à violência de gênero.
Para legitimar a voz da Nat, a empresa optou por apostar na representatividade. “Temos uma equipe composta de mulheres pretas que cuidam de toda estratégia, conteúdo e interações, junto de uma consultoria de etnia de quatro mulheres negras colaboradoras Natura, que participam para agregar conhecimento e levantar discussões sobre temas raciais, além de aprovar suas roupas, penteados e acessórios”, explica Julia Franchella.
NEM A MULHER VIRTUAL ESCAPA
A campanha ‘Bia contra o Assédio Moral, Sexual e Virtual’, que chegou ao meio de comunicação mais visualizado do Brasil, a TV, apresenta um passo importante na luta contra a representação de uma voz feminina mais firme. No site da iniciativa, a Bradesco afirma que a personagem recebe ofensas e importunação sexual desde que começou a atender os clientes, em 2018. De acordo com a empresa, a ideia é “dar exemplo para construir um futuro com mais respeito”.
Esse posicionamento, porém, é algo recente. Até alguns anos atrás, as mascotes e assistentes virtuais – como a Siri, do aparelhos IOS, e o Google Assistente, do Android – emitiam respostas tolerantes e passivas quando passavam por situações de assédio. Algumas reagiam com humor; outras simplesmente não eram programadas para entender.
O cenário começou a mudar em janeiro de 2020, quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) se juntou ao movimento “Hey, Uptade My Voice!” [“Ei, atualize minha voz!”, em tradução livre], que promove o combate ao preconceito de gênero e o assédio a inteligências artificiais, dando visibilidade ao assédio virtual sofrido por mulheres reais. A Nat foi uma das mascotes que aderiu ao movimento, junto da Mara, assistente da Amaro, a Lu do Magazine Luiza, a Ully da Ultragaz, a Aura da Vivo e a Ângela da Avon.
Mara, assistente da Amaro, Ully, da Ultragaz, e Ângela, da Avon, são algumas mascotes que se juntaram ao movimento “Ei, atualize minha voz!” | Imagem: Nayara Bardin/AnaMaria Digital
“Precisamos considerar que há uma intenção mercadológica clara neste tipo de estratégia: as marcas se posicionam porque isso vende. Ao mesmo tempo, isso mostra o avanço no entendimento deste tipo de debate e mais ainda, a relevância de fazer com que discussões como estas aconteçam”, explica a mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura.
Mariana e Elson se juntaram a Manuela Corral, doutora em Antropologia e líder do grupo Comunicação, Consumo e Identidade, para analisar alguns comentários em uma postagem da Magalu no Facebook. Na época – início de 2019 – a empresa declarou, na voz da mascote: “Sobre receber ‘cantadas’ desrespeitosas. Gente, tô chateada com algumas cantadas pesadas que estou recebendo nas minhas redes sociais. E olha que sou virtual! Fico imaginando as mulheres reais que passam por isso todos os dias”.
Os pesquisadores concluíram que a maioria das pessoas era neutra, e não se posicionava sobre uma prática tão grave quanto o assédio. Além disso, nem todas as mulheres concordavam com a Magalu: uma delas, inclusive, culpou o decote da mascote. Por outro lado, 92,8% dos comentários que discordavam da personagem cometendo novos assédios pertenciam a homens.
De acordo com Mariana, a predominância masculina nos cargos de liderança do setor de tecnologia influencia o fato que as assistentes virtuais tenham permanecido ‘passivas’ por tanto tempo. “Homens na liderança dificilmente terão o mesmo comprometimento e afinco na busca por projetos de tecnologia que considerem as necessidades reais das mulheres. Seja na organização do projeto que vai da distribuição de cargos e organização de tarefas, seja nos propósitos, utilidades e objetivos daquela tecnologia”, explica.
Vale ressaltar que a campanha da Unesco foi motivada por um relatório, chamado “I’d Blush If I Could” [“Eu coraria se pudesse”], que mostrou que 90% das pessoas envolvidas nas pesquisas e produção de projetos de Inteligência Artificial – incluindo as mascotes – são homens.
“Homens na liderança dificilmente terão o mesmo comprometimento na busca por projetos que considerem as necessidades reais das mulheres” | Imagem: Nayara Bardin/AnaMaria Digital
LIVRE ARBÍTRIO
Alguns consumidores, porém, acreditam que as respostas mais duras das mascotes podem interferir em seus comentários de insatisfação com os atendimentos. Para este grupo, que já se sente incomodado em ser atendido em um chat com um robô, não poder expressar sua raiva com palavras mais agressivas limitaria sua liberdade de expressão.
Na opinião da mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura, porém, isso é parte da violência de gênero, tão naturalizada que alguns nem mesmo a percebem. “Para estes ‘problematizadores’, as mascotes devem seguir o ’papel’ de gênero feminino: aceitar os assédios, se calar para as agressões e ignorar as violências. Por isso, é tão importante este tipo de mudança de posicionamento das marcas”, declara.
Para Manuela Corral, líder do grupo Comunicação, Consumo e Identidade, a violência de gênero, tanto quanto o racismo, são questões estruturais da sociedade – o que não quer dizer que essa normalização deva ser aceita. “A violência se esconde em discursos de humor, de convenções, de processos que nos formam desde pequenos e que vão, perigosamente, se naturalizando nas práticas, discursos e pensamentos do cotidiano”, explica.
Ainda na opinião da doutora em Antropologia, a luta dos movimentos sociais é uma força nesse sentido. Mesmo assim, há resistência das pessoas que não se conformam com a mudança nas estruturas de uma sociedade que privilegia, principalmente, os homens brancos e heterossexuais.