O mês batizado como Agosto Lilás marca a conscientização pelo fim da violência doméstica. Este ano, a lei 11.340/06, criada em 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, completa 18 anos. Sua sanção é um marco para a luta pelos direitos humanos das mulheres, por adicionar a qualificadora de ‘violência doméstica’ nos crimes de lesões corporais, previstos no Código Penal. Maria dá nome à lei em reconhecimento pela sua batalha por justiça pelo crime de duplo homicídio cometido por seu parceiro contra ela.
O caso de Maria da Penha representa a violência doméstica pela qual centenas de mulheres são submetidas diariamente. Nascida em Fortaleza, no Ceará, Maria é formada em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal do Ceará em 1966. Em 1977, concluiu o mestrado em Parasitologia em Análises Clínicas na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo.
Conheça a trajetória de Maria da Penha
Autora do livro ‘Sobrevivi… posso contar’, publicado em 1994, conheceu Marco Antonio Heredia Viveros, colombiano, em 1974, na mesma instituição onde iniciou o mestrado em São Paulo. Ele cursava pós-graduação em Economia. No início do relacionamento, como é típico de relações abusivas, Marco se mostrava amoroso e atencioso.
Maria e Marco se casaram em 1976. Após o nascimento da primeira filha, eles se mudaram para Fortaleza, onde nasceram as outras duas filhas do casal. Foi a partir desse momento que a história de Maria da Penha com a violência doméstica começou. O comportamento agressivo de Antonio atingia não apenas a esposa, mas também suas filhas. Formou-se assim o ciclo de violência dos relacionamentos abusivos: tensão, agressão, arrependimento e ‘lua de mel’.
Tentativa de feminicídio e a violência do judiciário
O crime aconteceu em 1983, quando Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio. Marco deu um tiro nas costas de Maria enquanto ela dormia. Para a polícia, ele alegou uma tentativa de assalto — versão desmentida pela perícia mais tarde. Maria passou por duas cirurgias e, em decorrência dos ferimentos, ficou paraplégica. Quatro meses depois, enquanto se recuperava, ele a manteve em cárcere privado por 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho.
Com a ajuda de sua rede de apoio, Maria da Penha conseguiu sair de casa sem que isso configurasse abandono de lar, o que acarretaria a perda da guarda de suas filhas. Desde então, a trajetória de Maria foi marcada pela batalha que travou na justiça durante 19 anos e seis meses. O primeiro julgamento aconteceu apenas em 1991: o agressor foi condenado a 15 anos de detenção, mas os recursos da defesa fizeram com que Marco saísse livre do fórum.
Em 1996 aconteceu um segundo julgamento e Marco foi condenado a dez anos e seis meses de prisão. Contudo, novamente, alegando irregularidades processuais por parte dos advogados de defesa, o agressor permaneceu livre. Em 2002, faltando poucos meses para a prescrição do crime, Marco foi condenado e cumpriu dois anos de reclusão.
O que mudou desde a criação da lei Lei Maria da Penha?
Antes da Lei Maria da Penha começar a ser aplicada, um dos maiores problemas a serem enfrentados era o contexto da agressão não se traduzir em uma figura penal, ou seja, a violência contra a mulher não era encarada como crime. Por isso, muitas vezes era necessário convencer a própria vítima de que os comportamentos violentos dos agressores deveriam ser punidos.
Com o passar do tempo, a violência doméstica contra a mulher passou a ser amparada pela Lei 9099/95 que regula crimes de menor potencial ofensivo, os quais são julgados pelos JECRIM — juizado especial criminal.
“O aspecto positivo foi que a sociedade passou a entender que a violência doméstica contra mulher é crime. No entanto, por se tratar de crimes de menor potencial ofensivo, a punição era muito branda. Quase sempre a pena do agressor era convertida em prestação de serviços à comunidade”, explica Mayra Cardozo, sócia da Martins Cardozo Advogados e advogada especialista em Direitos Humanos e Penal à AnaMaria.
A especialista destaca que, desde sua implementação, a Lei Maria da Penha tem sido crucial na luta contra a violência doméstica, assegurando a proteção e o bem-estar das mulheres. Além de fortalecer as punições aos agressores, a lei também prevê medidas de proteção, como o afastamento do agressor da residência da vítima, a proibição de contato com ela ou seus familiares e o suporte jurídico e social necessário.
Embora ainda haja um longo caminho na luta pelos direitos das mulheres, a Lei Maria da Penha é um passo fundamental rumo a uma sociedade mais justa e igualitária. Ao longo dos anos, a lei passou por importantes aprimoramentos. Entre eles, a Lei 13.505, que prioriza o atendimento por policiais e peritos do sexo feminino para mulheres em situação de violência doméstica; a Lei 13.641, que criminaliza o descumprimento de medidas protetivas de urgência; e, mais recentemente, a alteração que permite o afastamento imediato do agressor do local de convivência com a vítima, mesmo antes de uma decisão judicial.
Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma decisão histórica ao afirmar que a Lei Maria da Penha também se aplica a mulheres transgêneros. O Ministério Público Federal defendeu que mulheres transexuais têm direito às medidas protetivas garantidas pela lei, independentemente de terem realizado a cirurgia de transgenitalização.
“Essa decisão do STJ é um marco não apenas para a luta das mulheres trans, mas também para o alinhamento do Brasil com os padrões internacionais de Direitos Humanos. Além de ser uma vitória significativa para os direitos humanos, esse posicionamento coloca o Brasil em consonância com as diretrizes internacionais”, ressalta a advogada.
Uma luta que não acabou
Apesar de a Lei Maria da Penha ser um marco incontestável na luta pelo direito das mulheres, ainda enfrentamos um desafio profundo, enraizado na nossa cultura e estrutura social, que a legislação, por si só, não consegue resolver: a dificuldade das vítimas em denunciar a violência que sofrem e identificar seus agressores.
O medo de represálias, o constrangimento, a dependência financeira, a falta de preparo dos profissionais e a descrença da sociedade são alguns dos fatores que contribuem para a subnotificação dos casos. Mayra destaca que a ausência de dados precisos sobre as agressões dificulta o combate eficaz à violência doméstica, e, embora a Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, ofereça mecanismos robustos de proteção, a mudança social necessária para erradicar esse problema vai além da legislação.
“Apesar de sua eficácia teórica, o grande desafio que enfrentamos é a implementação prática da lei. O principal problema reside na ausência de políticas públicas robustas que garantam sua aplicação plena e eficaz. Sem essas políticas, a lei, embora bem elaborada, muitas vezes não consegue tirar as mulheres do ciclo de violência”, acrescenta Mayra.
A advogada finaliza dizendo que o ciclo da violência é uma realidade complexa, onde a mulher passa por fases de tensão, explosão de violência e, em seguida, uma aparente reconciliação, que perpetua o abuso e dificulta a ruptura com o agressor.
Além disso, há um aumento preocupante nos casos de feminicídio, refletindo a ineficácia de medidas preventivas e a falta de suporte contínuo às vítimas. Precisamos urgentemente fortalecer o viés educativo da Lei Maria da Penha, investindo em campanhas de conscientização, como o Agosto Lilás, campanhas de reeducação para agressores e suporte para vítimas de abuso.
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