62% dos 250 milhões de novos apostadores em bets são mulheres, segundo um levantamento feito em agosto do ano passado pelo Instituto Locomotiva. Os dados revelam uma mudança marcante no perfil dos apostadores: em 2023, 78% eram homens interessados em esportes. Mas o que está por trás dessa guinada feminina no mundo das apostas?
A recente repercussão envolvendo a influenciadora digital Virginia Fonseca e a CPI das Bets reacendeu o debate: afinal, quem influencia as pessoas a se envolverem com os jogos de azar? A culpa é dos influenciadores ou existe algo mais profundo por trás dessa compulsão silenciosa?
A aposta como anestésico emocional
O crescimento expressivo do número de mulheres nas apostas online não é um acaso. Para a psicóloga, hipnoterapeuta e arteterapeuta Brunna Dolgosky, trata-se do reflexo de um cenário emocional e social muito específico.
“Muitas mulheres hoje vivem em sobrecarga. Conciliam múltiplos papéis, enfrentam pressões silenciosas e, em muitos casos, buscam alívio em algum tipo de compensação emocional”, explica. Nesse contexto, as apostas surgem como válvula de escape — uma promessa rápida de controle, alívio, emoção e até ascensão financeira.
Segundo ela, o agravante está nas redes sociais. Por estarem mais expostas e engajadas nesse ambiente, as mulheres são mais impactadas por influenciadores que romantizam as apostas, mostrando ganhos altos e um estilo de vida luxuoso. “Isso cria um imaginário distorcido, que muitas vezes toca em feridas profundas de autoestima, pertencimento e merecimento.”
Brunna afirma que, na clínica, é comum ver mulheres que apostam como forma de lidar com traumas, carências emocionais, autossabotagem e baixa autoestima. “Com o tempo, o cérebro passa a registrar o ato de apostar como uma estratégia de sobrevivência emocional, o que torna o ciclo ainda mais difícil de interromper.”
O impacto no cérebro: prazer imediato, consequências duradouras
A psicóloga Danny Silva, especialista em comportamento humano e saúde emocional, também alerta para os mecanismos cerebrais ativados nas apostas. Segundo ela, ao ganhar uma aposta — mesmo que pequena — o cérebro libera dopamina, o neurotransmissor do prazer. Isso ativa o chamado circuito de recompensa imediata, o mesmo envolvido em vícios como drogas e álcool.
“O cérebro entra em estado de compulsão, como se estivesse hipnotizado. A pessoa perde a capacidade racional de parar”, explica Danny. É aí que entra o “viés de otimismo ilusório”: a ideia de que “na próxima vez vai dar certo” ou “eu vou recuperar o que perdi”. Esse pensamento irracional alimenta o vício e pode levar a grandes perdas — financeiras, emocionais e até familiares.
Consequências emocionais: ansiedade, culpa e isolamento
O mesmo estudo do Instituto Locomotiva apontou que mais da metade dos entrevistados indicaram aumento da ansiedade ao apostar. Euforia, mudanças de humor, estresse elevado e sentimento de culpa também são sensações frequentemente relatadas.
Alarmante também é o dado de que 42% das pessoas — o equivalente a 22 milhões de brasileiros — usam as apostas como uma forma de escapar de problemas ou emoções negativas.
“É por isso que não se trata de um comportamento superficial ou de uma simples escolha. O vício em apostas precisa ser visto como um reflexo de dores mais profundas”, reforça Brunna.
Quando a diversão vira doença
Na psicologia, o vício em apostas é chamado de Transtorno do Jogo, ou Jogo Patológico, e está listado no DSM-5 (manual de transtornos mentais). Entre os sintomas estão:
- Preocupação constante com apostas
- Necessidade crescente de apostar valores maiores
- Irritabilidade ao tentar parar
- Mentiras para esconder o comportamento
- Danos a relacionamentos, finanças e carreira
Quem está mais vulnerável?
Segundo Danny Silva, alguns fatores aumentam o risco de desenvolver esse vício:
- Impulsividade desde a infância
- Histórico familiar de vícios
- Dificuldade de lidar com frustrações
- Necessidade constante de estímulo ou adrenalina
- Uso das apostas como fuga emocional (depressão, luto, ansiedade, rejeição)
Brunna acrescenta que, no caso das mulheres, o vício pode estar ligado a sentimentos de desvalorização, necessidade de validação constante e baixa autoestima. “São padrões muitas vezes inconscientes, mas poderosos.”
E como tratar?
O tratamento, segundo as especialistas, precisa ser multidisciplinar:
- Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC): reestrutura pensamentos e identifica gatilhos
- Terapia Sistêmica Familiar: ajuda a entender o contexto emocional e os traumas envolvidos
- Grupos de apoio, como Jogadores Anônimos
- Intervenções espirituais ou existenciais, para reconstruir propósito e identidade
- Em casos graves, pode haver indicação de medicação para controle de impulsos, com acompanhamento psiquiátrico
“O jogo compulsivo muitas vezes caminha junto com depressão, ansiedade, uso de substâncias e até ideação suicida. Precisamos olhar para isso como um problema de saúde pública, e não apenas como um desvio de caráter ou irresponsabilidade”, alerta Danny Silva. E Brunna conclui: “Falar sobre isso é urgente, não para apontar culpadas, mas para oferecer caminhos reais de tratamento, amparo, transformação e reconstrução.”
Resumo: O número de mulheres que apostam online disparou, revelando um fenômeno que vai além da diversão. Especialistas apontam que, para muitas, as apostas funcionam como válvula de escape para lidar com sobrecarga, traumas e baixa autoestima. O vício, alimentado por influenciadores e redes sociais, exige atenção e tratamento especializado.
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