Adjetivo. No dicionário, o que serve para modificar um substantivo, acrescentando uma qualidade, uma extensão ou uma quantidade àquilo que ele nomeia. Já na prática, muitas vezes é aquela palavra usada para caracterizar uma criança.
Teimosa, inteligente, bagunceira, agitada, quietinha, inventiva, tímida, impulsiva… Seja na forma de elogios ou críticas, com objetivos positivos ou negativos, o fato é que muitas vezes essas palavras que qualificam e podem ser usadas sem grandes intenções, inicialmente, acabam se tornando rótulos e ganham mais poder na identidade da criança e na forma como ela lida com o mundo.
Frases como “eu sou tímido mesmo” ou “ela é teimosa, não vai te ouvir” se tornam tão comuns para a criança, que ela passa a acreditar naquela característica que se torna referência principal sobre si mesma. Já notou? Além disso, comparações entre irmãos ou crianças que compartilham da mesma vivência, acabam criando juízos de valor que nem sempre são verdadeiros ou que têm mais a ver com a vida da pessoa que observa do que com a própria criança.
Então, hoje, a coluna vai tratar sobre os rótulos que muitos de nós acabamos impondo às nossas crianças e de que forma eles podem interferir no desenvolvimento dos pequenos e dos maiores.
O PODER DE UMA PALAVRA
Todo adulto certamente já passou por situações em que outras pessoas pegam no seu pé por algo que tenha acontecido ou por uma característica que, de fato, possua. Isso é natural, as pessoas brincam. Contudo, quando um adjetivo ou acontecimento torna-se praticamente a única maneira de definir alguém, isso pode virar um problema, especialmente quando se é criança.
Laís Brito, mãe de Luísa, de apenas 3 anos, conta que a filha tem escutado muito que “só faz coisas erradas”, e que mesmo tão pequena, já começou a questionar o porquê de algumas pessoas dizerem isso. “Ela já falou que não gosta de fazer tudo errado, ou seja, já está começando a acreditar que realmente não faz nada certo. Eu sempre converso, dou espaço para que ela possa falar o que quiser, sobre como está se sentindo. Explico que todos nós erramos, adultos e crianças, e que o importante é o que fazemos depois do erro. Digo também, principalmente, que ela faz muita coisa certa e legal, o quanto ela é incrível e exalto as suas qualidades”, comenta Laís.
Ou seja, mesmo estando em uma fase em que é normal errar e acertar, a criança já se mostra chateada e confusa com a forma que é classificada por outras pessoas. “Nós, adultos, precisamos entender como esses rótulos reverberam na criança, o quanto ela acredita naquilo, o quanto mexe, sabe? Rotular uma criança a limita, mina sua autoestima, pois ela acaba por acreditar que é apenas aquilo que as pessoas falam. Então, de fato, é algo que os adultos e cuidadores precisam estar sempre atentos”, pontua Laís.
Já Melissa, de 6 anos, filha de Grazielle Yumi Solda, é aquela criança rotulada como perfeita, que outras mães comentam que gostariam que as filhas fossem iguais. “Ela é obediente, cumpre todos os combinados sem reclamar, não chora, come bem, faz quatro modalidades esportivas, faz a lição de casa logo que chega da escola sem ninguém pedir, faz a rotina de higiene sozinha logo que acorda, se comunica bem, visualmente também gosta de estar sempre perfeita”, conta. Além disso, segundo a mãe, a pequena tem tem consciência de que é muito certinha e, muito provavelmente, se sente querida por isso, pois as pessoas comentam.
“Ou seja, ela não tem problemas com a forma como as pessoas a enxergam, já que é algo positivo. Esse rótulo que acabamos achando normal, porém, se tornou um problema não para ela, mas para mim. Minha filha estava no processo de alfabetização, aprendendo letras e silabas, mas comparando com as demais crianças da turma, sentimos que ela estava pra ‘trás’. Mesmo a escola dela usando o método montessoriano, que respeita o tempo de cada criança, fiquei me questionando como ela, sendo tão perfeita e dedicada, estava atrás do resto da turma? Comecei, então, a fazer as atividades em casa com ela, para treinar mais. Porém, mesmo assim, ela sentia medo de tentar e errar, e, consequentemente, acabou ficando frustrada também”, comenta.
A psiquiatra geral e da infância e adolescência Danielle H. Admoni, especialista pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), explica que rotular uma criança/adolescente, seja com adjetivos considerados bons ou ruins, pode gerar muitos problemas. “Algumas crianças, ao escutarem os adultos dizerem coisas como ‘ele é o ansioso’, ‘ele é o bom aluno’, ‘este é o desligado’ etc, acabam realmente acreditando naquilo. É muito comum, inclusive, escutar, na rotina de consultório, falarem “eu sou o ansioso”, “eu sou o desligado”… Isso acontece porque a criança acaba abraçando esse papel que é colocado para ela. Alguns acabam ressignificando o que escutam com o tempo, mas outras não”, comenta.
Ela diz, ainda, que embora alguns rótulos acabem desaparecendo com o tempo – já que é difícil alguém crescer sendo definido da mesma forma para sempre -, muitas vezes esse ‘título’ pode trazer consequências ruins. “O rótulo, quando negativo, realmente pode diminuir a autoestima e fazer aquela criança acreditar em algo que não é, como preguiçoso, desligado, ansioso, estabanado, entre outros adjetivos. Já quando é positivo, como ser classificada como a bonita ou o mais estudioso, também pode se tornar um problema quando essa criança/adolescente não consegue atingir a expectativa que as pessoas colocaram em cima dela. Ninguém é 100% bonito, 100% bom aluno ou 100% qualquer coisa. Então, o ideal é nunca rotular mesmo, nem para coisas boas e nem para coisas ruins porque mesmo as positivas podem gerar ansiedade naquela criança por achar que precisa compactuar com a expectativa do outro”, complementa.
Mas atenção: não rotular seu filho não significa que não possa elogiá-lo. Claro que pode. Afinal, uma coisa é dizer algo em que se destaque, fazer um comentário; outra é sempre insistir em uma situação. “Os pais são os adultos que as crianças mais confiam. Portanto, para os pequenos, tudo que os pais dizem é quase como uma verdade absoluta. Ou seja, quando elogiam, aumentam a autoestima da criança, sua confiança. Mas quando rotulam, podem fazer ela acreditar que é somente aquilo, que se define apenas por um adjetivo”, esclarece Danielle.
RÓTULOS NO AMBIENTE ESCOLAR
Além da família, não é raro crianças e adolescentes serem rotulados pelos colegas na escola. E é aí que muitas vezes a situação pode sair do controle. Crianças e adolescentes adoram apelidos – e estes podem ser positivos ou negativos, a depender, inclusive, de como a pessoa se sinta sobre ele. Dizer que alguém é péssimo aluno, por exemplo, pode ter duas consequências: aquela pessoa se sentir mal porque não se sente adequado à turma ou satisfeito, já que normalmente os alunos que não se destacam pelas notas são mais populares.
Ou seja, um mesmo rótulo vai depender muito de como aquela criança vai se comportar diante dele. Entretanto, na maioria das vezes, é nos rótulos negativos que os problemas aparecem. Embora muitos pensem que rotular alguém seja o mesmo que fazer bullying, um não precisa necessariamente ser sinônimo do outro. Afinal, como já falamos, rótulos nem sempre são derivados de alguma característica ruim de alguém.
Ana Luiza*, hoje com 45 anos, conta que cresceu ouvindo que era a menina mais bonita do prédio, da rua, da escola e da família. Desde muito cedo, ela ouvia de seus pais e avó, que era a menina mais linda de todas. E, em certo momento, começou a acreditar naquilo. Foi aí que os problmas começaram, principalmente na escola. “Eu não aceitava ouvir ‘não’ de qualquer pessoa, nem colegas e nem professores, pois na minha cabeça, por eu ser a mais linda, não poderia receber negativas”, conta.
Na adolescência, Ana sofria se alguma menina chamava mais atenção do que ela. E isso foi entrando para outras áreas, além da beleza. “Achava um absurdo não brigarem por minha presença na hora de escolher o time na aula de Educação Física, me incomodava quando entrava alguma aluna nova que pudesse ser considerada mais bonita que eu. E como eu era, além de bonitinha, boa aluna, ficava realmente irritada se não tirava nota máxima”, conta.
“Quando me tornei adulta, ainda que inconscientemente, não ser bajulada ou considerada especial era estranho. Eu realmente acreditava que meus namorados e amigos eram pessoas de sorte por me terem por perto. Foi preciso fazer muita terapia para entender que eu não era especial por ser bonita, que a beleza não era a minha maior qualidade e que não precisava estar sempre perfeita. Parece besteira, mas até um elogio, quando feito demasiadamente, pode ser desastroso para uma pessoa”, conclui.
Carolina Gargiulo, psicóloga, pedagoga e orientadora educacional no Colégio Leonardo da Vinci explica que, no ambiente escolar, muitas crianças recebem rótulos dos colegas, até mesmo o mais introspectivo pode acabar sendo rotulado como “quietinho” na turma. “Eles fazem quase como uma classificação. O que acontece é que alguns rótulos seguem e outros não. Na maioria dos casos, quando o aluno demonstra que não gosta, ele fica por mais tempo. Mas quando percebemos que o aluno não gosta ou se sente incomodado, costumamos trazer o tema em alguma discussão com a turma, para não expor diretamente essa criança, fazendo com que todos digam se gostam ou não de serem rotulados, se isso mexe com eles de algum jeito. Normalmente essa conversa aberta com a turma ajuda os alunos que estão incomodados a não passarem mais por isso”, comenta.
E esse cuidado é muito importante. Afinal, ser conhecido por algo que não gosta pode, sim, gerar problemas. “É muito pessoal a reação de cada aluno, mas quando eles não gostam do rótulo que lhes foi dado, costumam ficar chateados, mais quietos, se sentem ridicularizados. Alguns podem ter uma queda nas notas, começam a não andar mais com os amigos que tinham, se isolam. Há também os que ficam um pouco reativos, com dificuldade para se relacionar”, pontua Carolina.
“Adolescentes costumam falar muito sobre a aparência do outro, ou características físicas, ainda que não seja debochando e nem fazendo bullying. Nessa fase, eles têm muitas questões justamente com o corpo e a aparência. Já tive um aluno que era chamado pelos colegas como “o gordinho”, assim, no diminutivo. Mesmo não acontecendo brincadeiras grosseiras ou deboches de outros colegas, ele ficou muito introspectivo, se tornou mais emotivo. Mesmo trabalhando com ele e com a turma o assunto, ele parou de aceitar seu corpo, não queria mais comer. Ele acabou precisando fazer acompanhamento com nutricionista e psicólogo para voltar a se sentir bem”, exemplifica a orientadora educacional no Colégio Leonardo da Vinci.
Para a pedagoga Marizane Fenske Antunes Piergentile, diretora regional da rede adventista para o ABCDM e Baixada Santista, embora alguns rótulos possam ser elogiosos, habitualmente não é isso que acontece. “O mais comum é encontrar casos de colegas que rotulam determinado aluno por algo que este não gosta. Ainda que não se faça bullying necessariamente, a criança/adolescente que recebeu essa ‘classificação’ pode se sentir desconfortável. Alguns, que têm uma personalidade mais forte e são menos sensíveis, podem até aceitar e levar numa boa, ainda que não gostem. No entanto, há crianças que são mais frágeis, com personalidade mais dócil, e que acabam sentindo certo constrangimento. Chamar alguém de ‘baixinho’, por exemplo, não é um xingamento, mas aquela criança pode não se sentir bem sendo sempre reconhecida dessa forma”, esclarece.
A também pedagoga Leda Cristina Contreras Martins, coordenadora da Clínica Arte Psico, lembra, ainda, uma questão importante: mesmo quando os rótulos são positivos, como fulano é o mais lindo, o mais inteligente, o mais engraçado, o mais legal etc, e a criança/adolescente goste disso, podem surgir problemas com seus pares. “Isso pode gerar um desconforto das outras crianças, por não se sentirem, por exemplo, bonitas, inteligentes, legais etc, como o colega. E aí, sim, afeta a criança elogiada, pois os outros podem começar a não querer brincar ou interagir com ela”, esclarece.
Viver em sociedade desperta comparações e até superlativos, evidenciando quem se destaca sobre os demais seja por qualidades, dificuldades, erros ou acertos. Por isso é tão importante o olhar atento da família e da escola sobre como determinadas falas interferem no psicológico da criança e do adolescente. Explicar em casa desde cedo que mesmo características positivas podem melhorar e que o mundo é diverso pode ajudar a lidar com rótulos. Quem é bom em Português, pode não ser tão bom em natação. Quem se destaca na argumentação, pode ter dificuldade na hora de se organizar. Na vida em comunidade, mais importante do que ser o melhor em algo é aprender com o outro. E isso precisa ser praticado de fato desde a infância.
*PRISCILA CORREIA é jornalista, especializada no segmento materno-infantil. Entusiasta do empreendedorismo materno e da parentalidade positiva, é criadora do Aventuras Maternas, com conteúdo sobre educação infantil, responsabilidade social, saúde na infância, entre outros temas. Instagram:@aventurasmaternas