Sabe aquela barriga pós-parto que se torna negativa apenas alguns dias depois do nascimento do bebê? Ou que tal aquelas olheiras de cansaço que nunca aparecem no rosto? Para essas mães, a alegria e o otimismo são constantes. Ao longo do crescimento das crianças, o comportamento incrivelmente tranquilo em restaurantes, viagens e na rotina se repete em cenas e mais cenas. Essa mulher está sempre diva, impecável, cabelos alinhados, maquiagem em dia, mente saudável, tão plena que é possível até dar cursos sobre o seu maternar. E o mais impressionante: tudo isso, segundo elas, “sem filtros”! Aliás, a novidade nas redes agora – ou que querem nos fazer acreditar – é supostamente mostrar a pele tal como ela é, sem usar atenuantes para olheiras ou aquele rosto inchado ao acordar.
Mas o que se vê na telinha do celular, invariavelmente, são peles lindas e que aparecem tratadas com os últimos lançamentos da estética. Do lado de cá, começam a pipocar aquele monte de perguntas: “Por que será que tenho tanta dificuldade de manter os filhos comportados? Por que não consigo cuidar da pele, do cabelo e manter a barriga em forma sempre? Por que ando me vestindo só com camisas largas e nem tenho ânimo ou dinheiro pra investir mais em mim?”
Diante de vidas tão perfeitas e um maternar aparentemente tão fácil, frases como essas invadem a cabeça de seguidoras de inúmeros perfis maternos, onde parece que não há pandemia ou estresse e a organização é tão natural que mais se assemelha a um anúncio de margarina. Só não se engane! Assim como em um quadro, o que se vê pela frente é bem diferente do que está por trás: babás, uma grande rede de apoio, muito patrocínio de empresas de moda, beleza e bem-estar, além da escolha de compartilhar apenas o lado bom da vida, justamente para estimular que as pessoas também persigam esse otimismo e vivam com plenitude a positividade. O problema é que tanto “lado bom”, muitas vezes, pode se tornar tóxico, muito tóxico.
O objetivo da coluna desta semana é desvendar os perigos de idealizar, romantizar e buscar a perfeição estimulada por perfis extremamente positivos e com fotos lindas, que acabam provocando uma autocobrança na mente de muitas mães.
NASCE UM BEBÊ, NASCEM AS COMPARAÇÕES
Karina já caiu na cilada de se comparar com outras mães. (Crédito: Arquivo Pessoal)
A produtora de conteúdo Karina Galdini, do perfil @maeperfeitamentereal, conta que caiu nessa cilada de se comparar com outras mães quando teve sua primeira filha, a Maria. Resultado? Se sentia péssima. “A pior mãe, a mulher mais lerda a se recuperar no pós-parto e por ai vai”, lembra. Aos poucos, porém, ela entendeu que na prática a sua realidade era só dela e ponto. E, com o tempo, foi relaxando mais e levando tudo com mais leveza, pois parou com as comparações e também de seguir pessoas que não se encaixavam na sua realidade. “Assim, também surgiu meu perfil, que de perfeito não tem nada. Uma fuga minha que acabou atraindo outros olhares de mães que se identificaram”, conta. Infelizmente, segundo ela, muitas se espelham nesses perfis e acabam se frustrando, pois buscam uma perfeição que não existe ou mesmo nunca existirá. “Porque aquela mãe ‘perfeita’ também chora, passa perrengue, sente culpa ou não se sente capaz às vezes, mesmo com toda estrutura que tem. Ela só não posta e você, mãe desse lado aqui, não vê”, complementa Karina.
Mas mesmo parecendo tão evidente que nenhuma mãe, especialmente de bebês, consiga ter uma rotina tão perfeita cuidando sozinha de tudo, não é raro encontrar nas publicações de algumas blogueiras comentários de outras mulheres, admiradas com a forma com que a mesma “educa” e consegue “dar conta” de realizar todas aquelas lindas atividades que são apresentas em seus vídeos. A psicanalista clínica Vanessa Vigatto ressalta o quanto esse cenário fictício acaba sendo idealizado por muitas mães, que se sentem culpadas por não terem condições de proporcionar os mesmos estímulos. Já a rotina de muitas mães é trabalhar, deixar a criança na escola, fazer comida, limpar casa, entre outras atividades.
“O trabalho da blogueira é fazer marketing e envolver as pessoas a consumirem os produtos que estão apresentando. Provavelmente, ela recebe muitos serviços gratuitos, tem babá, ganha diversos produtos, trabalha justamente para levar o consumidor a adquirir os produtos que está divulgando. E, com isso, vem o olhar materno comparando, porque ela consegue fazer tudo que faz. E hoje, na rotina da mulher, esse mundo de contos de fadas não é possível”, destaca. Vigatto lembra, ainda, que as produtoras de conteúdo apresentam somente um pequeno recorte do seu dia, fazendo parecer que a função materna pode ser executada com um recorte da maternidade tranquila, serena e perfeita. “No entanto, é necessário entender que atrás daquela pessoa, existe uma “equipe” que dá suporte para que ela consiga apresentar essa “cena” de mãe “perfeita””, completa.
MAS, AFINAL, O QUE É ‘POSITIVIDADE TÓXICA’?
Segundo Andrea Ladislau, que é doutora em Psicanálise Contemporânea, “positividade tóxica” é a prática de priorizar as emoções positivas, ao mesmo tempo que se ignora ou rejeita qualquer situação negativa. É praticamente aceitar apenas os momentos felizes, em detrimento aos desagradáveis. E, sim, quem vive dessa positividade tóxica tende a acreditar que a vida é linda o tempo todo. “Claro que é bom ter uma visão otimista da vida, mas também precisamos reconhecer a realidade: ela é cheia de situações difíceis. E você não precisa cobrir suas emoções reais com um sorriso se, na verdade, não está nem um pouco a fim de sorrir”, explica ela, antes de destacar que é fundamental se permitir vivenciar sentimentos negativos, pois eles também trazem algum tipo de aprendizado e, em alguns casos, são até motivadores.
A psicóloga Marinalva Callegario, que popularizou o Método Vida Extraordinária (MVE), explica que tentar negar sentimentos ruins é um mecanismo de defesa que consiste em ignorar sensações desconfortáveis, mas que mais tarde virão à tona de alguma outra maneira, seja em forma de doenças físicas ou psíquicas. “Muitas mulheres chegam até o meu perfil com depressão, crises de ansiedade e baixa autoestima. Uma das histórias que mais me marcou foi a de uma aluna que decidiu se separar de um casamento de 42 anos, após consumir todo um material gratuito chamado ‘A Jornada do Amor Próprio, guia prático de autoconhecimento feminino’, que a fez perceber porquê passou a vida aceitando migalhas e decidir que não queria mais isso para ela, porque agora sabia o seu real valor”, conta.
O episódio contado por Marinalva, mesmo não sendo diretamente ligado à maternidade, mas à vida familiar, afetiva e profissional, reforça como o otimismo exacerbado e os conselhos encontrados nas redes podem ser prejudiciais para o bem-estar emocional nos tempos de hoje.
QUAIS OS PREJUÍZOS DE TANTA POSITIVIDADE?
Daniele posa com as filhas. (Crédito: Arquivo Pessoal)
“Quando estou passando por alguma situação difícil e vejo a vida perfeita de alguém no meu feed, isso me gera um sentimento de frustração. Como se eu “errasse” mais do que as outras mães. Claro que cada família tem a sua dinâmica, lida de forma diferente em relação aos problemas. Brinquei esses dias que estava “a mãe ostentação da lição” porque minha filha estava super comprometida com os deveres de casa. Mas uma semana depois eu estava “sofrendo” porque ela simplesmente não queria fazer nada. A vida é assim, cheia de altos e baixos”, conta Daniele Flöter Rassi, do Instagram @maeagoraeusou
A positividade tóxica é uma espécie de negação da tristeza e de outros sentimentos negativos. Ou melhor, é uma tentativa de escapar do negativo, de impor a si mesmo um estado feliz e otimista, seja qual for a situação, silenciando as emoções negativas. “Essa positividade não nos permite enxergar que todas as emoções têm uma utilidade e nos dão informações sobre o que acontece em nosso corpo e em nosso meio. Dessa forma, não conseguimos trabalhar a resiliência, pois nos isolamos de nós mesmos e de nossas emoções. A consequência mais desastrosa quando praticamos a positividade tóxica é reprimir as emoções e assim somatizá-las, expressando-as através do corpo sob a forma de doenças”, conclui Ladislau.
MATERNIDADE REAL
Thaís Maruoka acha que as pessoas compartilham apenas o que querem. (Crédito: Arquivo Pessoal)
Se, por um lado, existe um maternar extraído dos contos de fadas, por outro há um movimento que representa a chamada maternidade real. Não que exista uma forma específica de mostrar verdade na rotina das mães, mas a ideia é que se divulgue mais da vida normal, com seus altos e baixos, acertos e erros. “Maternidade real é aquela que cada uma vive. E ninguém consegue mostrar totalmente a maternidade real nas redes sociais. Por mais que muita gente acredite que conheça totalmente a vida de uma pessoa e ache que ela compartilha tudo, não é verdade. Ela compartilha o que quer compartilhar. Depende muito da pessoa, da vida que leva, dos exemplos que têm, da rede de apoio e privilégios. Depende também do jeito como leva a vida. Tem gente com mil privilégios e que reclama demais e tem gente com pouquíssimos e que agradece diariamente. Então, acho que depende muito da pessoa”, reflete Thaís Maruoka, do Instagram @thaismaruoka e podcasts @agenteconversa e @vemouviressahistoria.
Para a produtora de conteúdo Tamara Barreto, do Instagram @tatadeaguiar, é possível haver nas redes um equilíbrio entre o otimismo natural e a realidade. “É super legal postar fotos produzidas, maquiadas, mas isso, às 7 da manhã, com todo mundo sorrindo, é muito distante da realidade da maioria das mães. Acredito que seja importante mostrar as coisas boas, mas junto com um alerta das dificuldades de uma gestação e de uma maternidade”, pontua.
Tamara Barreto defende mais equilíbrio nas redes sociais. (Crédito: Arquivo Pessoal)
Já para Karina Gardini, maternidade real e feliz são duas coisas totalmente compatíveis. Contudo, assim como todas as outras coisas da vida, ela não acontece 100% do tempo, como pregam alguns perfis nas redes. “Tem dias que estamos melhor, outros em que estamos mais cansadas, tem dias que queremos fugir, assim como tem dias que choramos de saudades ao deixar nossos filhos na escola. Maternidade é algo que exige muito de nós, mulheres, e isso muitas vezes nos sobrecarrega. Mas estar cansada, querer uma pausa, não está ligado a infelicidade, como muitas vezes é colocado, Apenas estamos cansadas, não infelizes”, comenta.
Explorar as possibilidades e compreender que cada experiência é única é o que define cada realidade materna, de acordo com a psicanalista Andrea Ladislau. “Cada situação é única. Se calar por medo de ser julgada ou não expressar sentimentos por medo de não se sentir digna, é uma forma de violentar-se, eliminar seu direito de viver a maternidade dentro de sua plenitude, com o pacote completo de sensações e sentimentos. A maternidade real vem com um combo de alegrias e angústias, mas com experiências únicas e diferenciadas. Cada mulher vai viver essa experiência de uma forma: para umas poderá ser mais prazerosa, enquanto que para outras poderá vir carregada de medos e dores”, complementa.
CAMINHO PARA O EQUILÍBRIO
Destinos incríveis, cenários maravilhosos, praia, parques e muita diversão tornam perfis de viagem um verdadeiro bálsamo de felicidade para quem acompanha. Mas também, por isso, recheado de sonhos e positividade diária que podem ser inatingíveis para muitas mulheres e mães. Sabendo disso, a influenciadora de viagem Lalá Rebelo, do Instagram @lalarebelo, explica que gosta também de compartilhar suas derrotas e angústias. “Inclusive, isso me ‘humaniza’ e aproxima do meu seguidor. Acho que as pessoas se identificam mais com quem também compartilha coisas ruins. Fiz isso na minha dificuldade de amamentação , no puerpério difícil e até nas minhas ‘crises’ de não saber o que compartilhar em um perfil de viagem durante a pandemia sem viajar. Faz bem pra mim dividir e faz bem pra quem assiste. As pessoas enviam uma mensagem de carinho, se sentem próximas e veem que a vida das redes sociais perfeitinha não existe. Precisamos colocar na balança para não exagerar em positividade a ponto de fazer mal. Mas podemos ser também otimistas, radiantes, pra contagiar os outros com algo bom”, reflete. E mais: ela sempre faz questão de deixar bastante claro que viaja muito porque esse é seu trabalho. “Não tem férias o dia todo. Sou jornalista de viagens e viajar é parte do meu ganha pão”, esclarece.
A psicanalista Vanessa Vigatto explica que é um exercício diário tentar manter um equilíbrio emocional. “É importante saber separar que muitas coisas apresentadas são “falsa realidade” e não ficar se culpando por não conseguir ser igual. Fazer uma “limpa” nas redes sociais pode ajudar muito também, deixando somente as pessoas que te fazem bem e feliz. Acompanhar as que mostram uma realidade muito diferente da sua pode aumentar sua ansiedade”, esclarece.
Mães amam seus filhos, ficam felizes, sentem uma saudade enorme de cada tempo que passou, mas também choram, se estressam, ficam exaustas, querem fugir de casa, se escondem no banheiro e torcem para que alguns momentos passem mais rápido. E por isso é tão importante saber filtrar o que nos faz bem ou mal. Afinal, perfis maternos não são apenas aqueles que tentam mostrar um maternar perfeito. Há mães que dão dicas de viagem, de beleza, de festa, de educação, de gastronomia para crianças ou de decoração, entre outros. Portanto, além de dizer se um perfil é mais real que o outro, se deve ser ou não seguido, cabe a nós um exercício essencial: filtrar o tipo de conteúdo que estamos consumindo, se nos mostram padrões irreais e trazem culpa para o nosso dia a dia e também buscar ajuda, caso a vida cenográfica que é imposta pelas redes, já tenha se transformado em algum dano à nossa saúde mental.
*PRISCILA CORREIA é jornalista, especializada no segmento materno-infantil. Entusiasta do empreendedorismo materno e da parentalidade positiva, é criadora do Aventuras Maternas, com conteúdo sobre educação infantil, responsabilidade social, saúde na infância, entre outros temas. Instagram:@aventurasmaternas