O que define o que guardamos e o que descartamos para nossos filhos relembrarem, um dia, os seus primeiros anos? Entre cartas, diários, bilhetes escolares e trabalhos de infância, o que é lixo, o que é doação e o que é registro histórico? Afinal, em um mundo cada vez mais digital, onde a caligrafia está desaparecendo das faculdades e as fotos raramente são impressas, quais memórias permanecerão para os nossos filhos, netos e bisnetos?
Em História, aprendemos que registros escritos são fundamentais para entender o passado – desde grandes tratados políticos até simples cartas pessoais. Mas, dentro da nossa casa, um bilhete escrito quando nossos pequenos ainda são crianças, um diário com registros da adolescência, uma carta para o Papai Noel ou até mesmo um caderno escolar também contam uma história: a da nossa vida com nossos filhos, a da nossa família. São vestígios de um tempo passado, fragmentos da nossa memória que nos ajudam a lembrar quem fomos e como vivemos. Mas o que faz de um documento algo digno de ser guardado para o futuro?
Paula Machado, mãe de Rafael, Bernardo e Sara, de 7, 5 e 2 anos, conta que entre os itens guardados mais emblemáticos estão a primeira roupinha, a primeira toquinha e o primeiro ursinho de pelúcia de cada um dos filhos. “Embora eu mantenha por terem grande significado, a roupa tem um valor ainda mais especial, pois me leva de volta ao dia em que nasceram. E isso, consequentemente, me faz valorizar ainda mais cada minuto que passamos juntos em família, pois sei como o tempo voa”, explica. E continua: “Quando eram bem pequenos, escrevi algumas cartas para eles que, infelizmente, perdi. Mas tudo que guardo tem uma história por trás, como um body da Papapá, que é a nossa marca, que meu filho do meio usou logo que iniciamos a nossa empresa. Então, quando ele crescer um pouco mais e assumir os negócios da nossa família, sempre que olhar para a roupinha – ou até mesmo vestir no seu filho – vai lembrar que participou da fundação da empresa”, lembra.
Na coluna de hoje, vamos falar um pouco mais sobre como essas lembranças são importantes para ajudar a moldar as memórias afetivas dos nossos filhos no futuro.
O que define um registro?
Muitas mães e avós guardam pertences de filhos e netos com carinho, enquanto outras acabam descartando ao longo dos anos. Mas o que vale a pena preservar? O que pode se tornar um tesouro para as futuras gerações? Neste mundo cada vez mais digital, onde as cartas deram lugar às mensagens e os trabalhos escolares podem ser feitos no computador, fica a pergunta: o que realmente deixaremos de material para os nossos filhos, netos e bisnetos?
Segundo a psicóloga Aline Grafiette, fundadora da Mental One, tudo o que envolve a permanência e a manutenção de uma família deve ser considerado um documento digno de preservação. Isso porque é por meio desses registros que podemos contar a história dos nossos antepassados. Ou seja, um bilhete de criança ou uma carta de família podem, sim, ser considerados registros históricos. “Eles narram eventos que ocorreram no período em que foram escritos. Nesses registros, encontramos acontecimentos e os sentimentos presentes naquele momento”, diz, e continua: “Tenho uma lembrança muito clara da minha avó escrevendo no verso das fotos de família. Ela registrava o significado daquele instante: o que estava sentindo, quem estava presente, detalhes que não apareciam na imagem. O que estava escrito no verso narrava exatamente o contexto daquela ocasião. Esses registros contam muito sobre a história da família e da época em que foram feitos”.
Para Carla Salcedo, que é psicóloga e neuropsicanalista, bilhetes e cartas, além de capturarem momentos e marcos pessoais do desenvolvimento da criança e de toda uma estrutura familiar, também demonstram as perspectivas pessoais, temperamentos, talentos e carga emocional dos integrantes dessa família. “São registros íntimos que ajudam na compreensão da vida cotidiana e estreitam os laços emocionais. E ainda possuem, como valor agregado, o letramento emocional e as vivências de uma família, servindo como um repertório pessoal no enfrentamento e ressignificações da vida futura”, avalia.
Carla pontua ainda que esse tipo de registro fortalece o sentimento de pertencimento. “Uma necessidade central do ser humano para que vivencie de forma significativa o bem-estar, usufrua da motivação e tenha uma percepção saudável de si mesmo e dos outros. Aliado à continuidade histórica e à conexão com a própria ancestralidade, garantem a base essencial para uma saúde mental, emocional e social saudável e equilibrada”, esclarece.
Para as pessoas que desejam preservar a história da própria família, Aline sugere que promovam uma reunião para discutir a importância desses registros e delegar tarefas. “Pelo menos uma vez por ano, seria interessante reunir todos para compartilhar os eventos marcantes do período e alimentar esse ‘baú da família’, essa ‘caixa da família’ ou esse ‘álbum da família’, da forma que desejarem”, aconselha. Ela lembra, inclusive, de um paciente que contou sobre a perda do pai quando tinha apenas 8 anos e que tinha pouquíssimas lembranças dele. “Sugeri que resgatasse fotos e vídeos. Ele seguiu minha sugestão e, depois, me enviou uma mensagem muito emocionante, dizendo que assistir a esses registros mudou a forma como lembrava do pai, tornando sua presença mais viva”, conta.
Já Carla aconselha três palavras-chave: quadro, caixa e álbum. “Na verdade, são três ferramentas para materializar esses documentos de carga afetiva e histórica pessoal. O álbum deve ser cuidadosamente planejado como quem conta a história pessoal, de uma festa ou de uma viagem, em ordem cronológica e exaltando as emoções, surpresas e memórias geradas para o futuro. E, sempre que possível, folhear o álbum e compartilhá-lo com outros. A caixa nos permite guardar cartões, objetos miúdos, fotografias, bilhetes e tantas outras coisas; de forma aleatória e até meio caótica, mas sempre que precisamos pensar em mudanças ou ‘pensar fora da caixa’, é voltar para si e suas memórias (dentro da caixa) que nos permite autorregular as emoções e ações. Por último, o quadro. Com o advento das fotografias digitais temos inúmeras recordações amontoadas em nuvens. Minha sugestão para os pacientes é: eleja uma ou duas fotografias especiais e belas, emoldure e coloque na parede de sua casa. Em geral, emolduramos conquistas e troféus. Também precisamos emoldurar experiências e vivências da nossa própria vida que merecem ser contempladas”.
Mas, afinal, o que vale mais a pena ser guardado para a construção das memórias de uma criança e sua família com o passar dos anos? Na verdade, tudo o que trouxer a lembrança de momentos marcantes. Ou seja: registros do nascimento, incluindo cartinhas de amigos e familiares sobre aquele dia; os primeiros dentinhos que caíram; os primeiros cachos de cabelo que foram cortados; os boletins e trabalhinhos escolares; as cartinhas para o Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa; os diários com anotações que os pais fazem sobre o crescimento dos filhos… Enfim, tudo que fizer parte da vida daquela criança e das pessoas que ela ama.
Em tempo: além das lembranças afetivas dos nossos filhos, preservar essas memórias também ajuda a manter tradições. “Uma receita especial que a avó ensinou à filha, que depois ensinou à neta; uma bebida tradicional da família; um evento anual que todos celebram juntos; ou músicas que sempre embalam esses encontros. Tudo isso fortalece os laços familiares e reforça a importância da manutenção desse legado”, conclui Aline.
A era digital e nossas memórias
No mundo em que vivemos, escrever se tornou quase algo impensado. Afinal, com gadgets por todos os lados, a maioria de nós acaba digitando no que estiver à mão ao invés de escrever em um papel que possa ser guardado. E quando se trata de memórias, sentimentos e qualquer lembrança que valha a pena ficar na memória, o papel, sabemos, acaba sendo esquecido. E aí fica a pergunta: corremos o risco de perder parte da nossa memória escrita? Não! A digitação pode, inclusive, ajudar a manter memórias.
Aline Grafiette explica que a digitalização dos registros é fundamental, pois o tempo deteriora tudo. “As fotos amarelam, as letras das cartas desbotam… Por isso, é essencial que as famílias se preocupem em preservar essas memórias e até mesmo designem alguém responsável por manter esse acervo”, pontua. Inclusive, lembra, essa busca por organizar e preservar as memórias pode ser muito interessante. “Podemos usar a tecnologia a nosso favor: revelar fotos, digitalizá-las e armazená-las de forma segura”, complementa.
Já para Carla, com essa digitalização, podemos perder parte da nossa memória escrita. “Corremos esse risco ao não adotarmos medidas e ações que nos permitam intercalar registros digitais e físicos dos nossos marcos emocionais e experiências de vida. O que é bastante perigoso para a saúde mental, já que os registros físicos tornam as conexões emocionais mais tangíveis e profundas, o que impacta diretamente na qualidade e saudabilidade das relações intra e interpessoais. Além disso, servem como uma âncora da identidade e noção de continuidade, uma consistência temporal que nos proporciona uma maior sensação de estabilidade e propósito de vida”. Entretanto, continua, “uma construção equilibrada e funcional dessas memórias, na prática, é equilibrar o digital e físico de forma harmoniosa, porque somente esse balanceamento trará os benefícios emocionais e identitários na consolidação do senso de bem-estar, pertencimento e felicidade pessoal”.
Direto ao ponto
A seguir, Aline Grafiette e Carla Salcedo falam um pouco mais sobre a importância de guardarmos esses registros.
Aventuras Maternas – Por que guardamos objetos e registros do passado? O que isso representa emocionalmente?
Aline Grafiette – No passado, as memórias eram guardadas em caixas de fotografias. Sempre havia aquele momento especial na casa da avó, quando ela pegava as fotos e dizia: “Vamos ver as fotos!” Assim, as histórias eram contadas e recontadas, sempre com novos detalhes que enriqueciam ainda mais a narrativa.
Carla Salcedo – Essas memórias nos fortalecem psicologicamente, porque nos conectam com a narrativa pessoal e coletiva daquilo que vivemos, o que nos traz mais consciência histórica e letramento emocional. Dois aspectos essenciais que nos ajudam a manejar nossas emoções e sentimentos, em especial em episódios mais ansiosos e depressivos que eventualmente – ou regularmente – possamos experimentar.