“Ih, seu nariz vai crescer igual ao do Pinóquio”. Quem nunca escutou (ou até disse) essa frase para alertar uma criança sobre mentiras? Já repararam como, imediatamente, os pequenos levam a mão ao nariz para saber se algo mudou naquela parte do corpo? Embora seja uma frase usada naturalmente por adultos para alertar sobre não mentir, a verdade é que, em algum momento, seu filho acredita e entrega sua preocupação por ter contado algo que não era verdade. E aí é que está a questão. Será que é legal alertar sobre mentiras se aproveitando de uma história fictícia? Até que ponto apelar para narrativas fantásticas é saudável para uma relação de confiança entre pais e filhos?
Juliana Vianna, mãe de Lucas, de 13 anos, e Miguel, de 12, conta que seus filhos já disseram que as lições de casa estavam feitas ou os dentes já escovados para dormir, quando na realidade não estavam, por exemplo. “Quando reparamos que há uma mentira, costumamos agir indagando, dando uma chance para eles corrigirem sem constrangimento. E depois reafirmamos que não é necessário mentir, que precisamos sempre ter confiança uns nos outros, e que a mentira só prejudica isso”, conta a mãe.
Certa vez, o garoto mais velho disse que queria presentear a professora com flores, porém os pais sabiam que era para uma amiguinha da classe. “Nesse caso, deixamos passar, para não causar constrangimento e respeitar a privacidade dele”, comenta. Juliana, porém, confessa que também já contou uma ou outra mentirinha por uma boa causa, como quando a família foi convidada para uma festa que as crianças queriam ir e disse que teriam outro compromisso, pois achava o local perigoso e não queria levá-los. “Mas depois sempre contamos a verdade e explicamos o porquê de ter feito aquilo, pois queremos manter esse canal aberto para o diálogo. Reafirmo que o mais importante é a confiança e que mentiras podem comprometer um relacionamento e trazer sérias consequências muitas vezes” complementa.
Já Daniela da Silva Lauriano, mãe de Carlos, de 15 anos, fala sobre um episódio que aconteceu com o filho quando ele tinha por volta de 8 anos e que a deixou bastante chateada. Na ocasião, ele tinha treinos do Kumon diariamente e disse que estava praticando, mas não estava. Quando a mãe descobriu, ficou furiosa e não quis conversar, colocando o filho direto de castigo, o que o assustou bastante. “Eu, ingenuamente, achei que o meu filho jamais fosse mentir e fiquei realmente em choque. Chorei até, não aceitei de jeito nenhum. Me senti culpada, inútil e incapaz. Na época, conversei com outras mães, que me contaram sobre suas experiências. Me senti, então, aliviada ao saber que era um processo natural do aprendizado da criança e que, na verdade, elas mentem para nos testar e para se protegerem”, ressalta.
Hoje, a mãe reconhece que sempre foi muito brava e que ele, consequentemente, teve medo de me dizer a verdade nesse dia. “Até eu entender isso, porém, foi muito difícil. Eu comecei a não acreditar em mais nada e virou um inferno, porque ele precisava ficar se provando o tempo todo. Então, com o passar do tempo e fazendo terapia, entendi que a minha rigidez o levava a isso e que o estava afastando de mim. Foi um processo doloroso, mas necessário pra nós dois. Hoje, estamos bem, com um relacionamento saudável, com espaço para cada um se expressar e com confiança e diálogo sobre tudo. Entendo também que a mentira faz parte da evolução e da construção do caráter dele. Mas reafirmo sempre sobre a importância da confiança, que esta não pode se quebrar. A verdade é sempre a melhor escolha”, afirma.
Lançar mão de histórias criativas para ajudar a lidar com algumas situações do dia a dia, ocultar certas verdades doloridas ou até mesmo inventar mentirinhas por preguiça de contar a história real é comum em qualquer família. Mas quando é a hora de dizer a verdade? Quando a mentira não pode ser tolerada, de um lado ou de outro, de forma alguma? A matéria de hoje trata exatamente sobre isso, omissões e mentiras de pais para filhos e vice-versa.
MEU FILHO MENTE, E AGORA?
Um dos momentos mais difíceis para os pais é quando percebem que os filhos estão mentindo sobre algo. E, embora alguns deixem passar por se tratar de uma bobagem, é preciso que, independentemente do ‘tamanho’ da mentira, a criança entenda que é errado. Para Telma Abrahão, especialista em Neurociência Comportamental Infantil, idealizadora da Educação Neuroconsciente e autora do best-seller “Pais Que Evoluem”, ao descobrir uma mentira contada pela criança, os pais devem conversar calmamente com seu filho sobre como mentir afeta o relacionamento deles e como a criança se sentiria se a família e os amigos parassem de confiar nele.
“Isso enfatiza a diferença entre o que acontece quando ele conta a verdade e é honesto e o que acontece se for desonesto. Sempre conte ao seu filho, quando souber que ele não está dizendo a verdade. Mas evite perguntar o tempo todo se ele está dizendo a verdade e também chamá-lo de ‘mentiroso’. Se seu filho acredita que é um mentiroso, isso aumenta as chances de ele continuar mentindo. Você pode dizer algo como ‘Eu sei que geralmente você é muito honesto comigo, mas eu simplesmente não consigo entender o que aconteceu dessa vez, que o levou a não confiar em mim. Quer uma segunda chance para me contar a verdade?’”, avalia.
Para a especialista, é importante ter atitudes que tornem mais fácil para o seu filho falar a verdade em vez de mentir. “Pense nas razões que podem estar levando seu filho a mentir. Por exemplo, se for para conseguir dinheiro para comprar o que deseja, considere dar uma mesada semanal que permita que seu filho compre o que precisa através de seu próprio esforço de economia. A verdade é que todo erro traz consigo uma grande oportunidade de aprendizado e de ensinar importantes habilidades de vida aos nossos filhos”, enfatiza.
Já a psicóloga Karina Coelho, que atende diretamente crianças e adolescentes alunos do Colégio Physics, explica que o comportamento da mentira faz parte de como a criança percebe suas relações e tem sua origem entre testar e entender o que poderia conseguir por meio dessa ação. “Os pais, avós, cuidadores e professores e seus pares precisam estabelecer regras para cada uma dessas relações, pois cada uma sugere um repertório diferente e estabelece um tipo de relação. Quando isso não ocorre, os episódios de mentira podem surgir. Em crianças menores, a mentira pode ter o intuito de chamar a atenção do adulto e dos seus pares. Elas podem ser ditas para não realizar uma tarefa indesejada, por exemplo. A partir dos 10 anos, a participação social passa a ser mais intensa e eles podem usar esse recurso para conseguir popularidade e autoafirmação”, diz.
Mas, afinal, é normal crianças mentirem? Sueli Conte, mestre em Educação, Psicóloga e Psicopedagoga e autora do livro “Educando para a vida no Pós-pandemia”, explica que é normal as crianças fantasiarem e, quando indagamos sobre o tema e perguntamos por diversas vezes, assim como é natural elas responderem que não falaram a verdade.
“Por isso, sempre reforço sobre a importância da conversa com as crianças, do olho no olho, sempre sentados e tranquilos nas perguntas. Importante, também, neste momento, não haver ameaças para que não pensem nos castigos. Além disso, sempre deve ser reforçada a conduta da formação da personalidade da criança”, enfatiza. E vai além: “algumas mentiras irão passar com a maturação, a idade, o aumento do ciclo de amigos, mas temos que ficar atentos aos casos de crianças e adolescentes que não param de mentir. Estes, com certeza, irão se prejudicar – e muito – e, além disso, prejudicar outras pessoas. É necessário coibir sim e tentar ajudar. Se detectamos que a dimensão é maior do que o considerado ‘normal’ para a faixa etária, temos que tomar medidas para auxiliar essas crianças”, determina.
Um outro ponto a ser abordado é a importância de mostrar para a criança que mentir não é legal, por mais que pareça a “solução” mais fácil em alguns momentos. Sobre isso, Karina Coelho responde que o padrão comportamental de mentir pode ser aprendido e mantido. Por isso, a percepção do adulto sobre isso é extremamente importante. “Ele deve realizar a mediação do que é realidade e fantasia, especialmente com crianças entre 2 e 5 anos de idade, para a construção do seu juízo de valores. A falta da construção sobre o que é correto e errado pode fazer parte do comportamento da criança, afetando seu aprendizado de autocontrole e vivência social na construção de suas relações”, diz.
E se os pais não impedirem as mentiras contadas pelas crianças, o que pode acontecer no futuro? O psicólogo Filipe Colombini, CEO da Equipe AT, diz que a ideia é oferecer dicas e modelos para a criança falar a verdade, valorizando quando quando ela é genuína. Entretanto, caso os pais não façam isso, a criança poderá sofrer bastante com a exclusão social e ser um adulto que tem muitas dificuldades de interagir socialmente. “Além disso, poderá ser um adulto com falhas de comportamento moral”, complementa.
É importante ainda dizer que, quando os filhos forem sinceros, mesmo que a verdade seja algo errado ou que não concorde, é preciso reconhecer a importância do ato. “O primordial é valorizar quando a criança está falando a verdade, por mais que o conteúdo “doa”. Ou seja, é importante valorizar o fato de estar sendo genuíno, sincero. Discriminar para a criança que você ficou orgulhoso dela falar a verdade, mas que ficou chateado por conta do conteúdo”, enfatiza Filipe Colombini.
MENTIRAS NO AMBIENTE ESCOLAR
As crianças normalmente mentem não apenas para os pais e responsáveis, como também para os amigos da escola e do condomínio/rua, que são os grupos que os pequenos mais dividem seu tempo. Sandra Dias, hoje com 42 anos, e mãe de duas meninas, Laura e Luiza, de 6 e 8 anos, conta que quando tinha por volta de 11/12 anos, fez uma viagem com os pais para o Sul do país e, ao retornar para a escola, apagou o nome Porto Alegre e colocou Paris, mesmo com o ticket aéreo mostrando que se tratava de um voo doméstico.
“Eu fui toda feliz para a escola contando que tinha ido a Paris com meus pais. Alguns acreditaram, outros não ligaram, mas eu achei engraçado. Algum tempo depois, conversando, todos começaram a falar sobre suas experiências fora do país e eu disse que tinha ido apenas a Disney. Na mesma hora uma menina perguntou sobre Paris, onde teoricamente eu tinha ido alguns anos antes. Fiquei sem graça, desconversei e disse que tinha esquecido. Quem esquece de uma viagem a Paris?”, diverte-se. “Eu acabei contando para essa amiga, e hoje ainda rimos sobre o episódio. Inclusive, meus filhos sabem sobre, porque sempre uso esse dia para mostrar como mentira tem perna curta”, complementa.
Realmente, o ambiente escolar é palco de muitas histórias entre os colegas, especialmente quando se trata de chamar a atenção, como o caso contado por Sandra. Entretanto, não podemos esquecer que, sim, há casos em que a mentira pode prejudicar um coleguinha. Fernanda Faria, pedagoga e coordenadora da Educação Infantil do Colégio Global explica que a conversa e o acolhimento são muito importantes em momentos de conflito e que a exposição do aluno é uma estratégia delicada.
“Estamos em uma sociedade do cancelamento nas redes sociais, por exemplo. Temos que cuidar das estratégias para não sermos injustos, precipitados ou ainda gerar outros problemas. A escola tem que ser um espaço seguro, inclusive para que crianças e adolescentes possam errar, refletir sobre os erros e rever as posturas. Não podemos esquecer que são crianças e adolescentes aprendendo a lidar com os sentimentos e relações. Isso não significa que devemos ser permissivos. Precisa acontecer conversa e solução para o problema gerado pela mentira, desenvolvendo a autonomia moral e não a coibição”, diz.
Fernanda pontua ainda algo bastante importante: a mentira é somente a ponta do iceberg. “Podem ter certeza que embaixo tem muitos conteúdos a serem trabalhados. É importante, sim, conversar com a família e entender como são as atitudes da criança no contexto familiar. Muitas delas têm atitudes diferentes em casa e na escola. O sentido das conversas com as famílias é entender a criança em diferentes contextos, achar soluções conjuntas e alinhar o discurso”.
Que a participação dos pais é essencial não há dúvidas. Mas e quando esses se recusam a acreditar que o filho possa estar mentindo? “O problema de pais com essa crença é que eles negam uma parte importante da experiência de ser criança. As crianças podem errar e se comportar mal, pois estão aprendendo e se desenvolvendo. Possuem um cérebro imaturo e ainda não tem um repertório de vida como o de um adulto. O que precisa andar de mãos dadas com esses comportamentos é a orientação, o redirecionamento dessas atitudes e a orientação dos adultos. Quando um pai ou mãe se recusa a acreditar ou reconhecer que seus filhos são humanos e está passando por um estágio normal e apropriado de desenvolvimento da infância, eu realmente me preocupo com essa criança”, enfatiza Telma Abrahão.
Já em casos em que o aluno mente para professores e demais profissionais da escola, como sempre ter alguma justificativa para não fazer um dever, matar aulas etc, é preciso tomar também atenção. “A primeira providência é conversar e entender. A segunda é pensar de que outro jeito a situação poderia ter sido resolvida sem o uso da mentira. A terceira é avaliar a necessidade de pensar em consequências para as mentiras que tenham relação direta com as mesmas”, diz Fernanda Faria.
QUANDO OS PAPÉIS SE INVERTEM
Habitualmente, em uma relação de pais e filhos, quem é pego na mentira é o filho. Muitas vezes, contudo, pequenas mentiras (às vezes não tão pequenas assim) são contadas para eles, ainda que seja com o intuito de protegê-los. Por vezes histórias criativas para ajudar a lidar com algumas situações do dia a dia, ocultar certas verdades doloridas ou mesmo mentirinhas por preguiça de contar a história real. A questão é: como agir quando eles descobrem que os pais mentiram?
Para Karina Coelho, não há uma boa causa que justifique uma boa mentira. “O adulto precisa organizar de acordo com a faixa etária e compreensão de cada criança e adolescente, relatar os eventos, mas manter uma organização no seu relato ou ação pertinente à criança e ao adolescente”, destaca. Para Filipe Colombini, como a relação entre pais e filhos poderá ser abalada caso a criança/adolescente descubra a verdade, dependerá muito de cada situação. “Caso os pais consigam ser genuínos a ponto de assumirem a mentira, explicando porque mentiram, e peçam desculpas, pode ser que se torne uma situação proveitosa, pois além de possibilitar que revejam a mentira e digam a verdade, poderão assumir suas fragilidades e, assim, fortalecer os laços com os filhos”, explica.
Para terminar, Fernanda Faria, Colégio Global, faz um alerta importante: “Na relação familiar é quase impossível acertarmos sempre, mas precisamos pensar sobre atitudes que nos ajudam a estabelecer uma confiança mútua. Além disso, as atitudes e escolhas dos adultos servem como referência de como agir no mundo. Se temos um discurso e na prática a criança percebe que agimos de maneira diferente, corremos o risco de perder a confiança e as regras serem relativizadas ou não cumpridas”, diz.
E voltando àquela frase do início do texto, que muitos pais adoram dizer para os pequenos – “se mentirem o nariz vai crescer como no Pinóquio”-, Fernanda explica que “o nariz não vai crescer e a criança, em algum momento, vai mentir e vai perceber que, de fato, nada acontece. É uma afirmação que não ajuda a entender as consequências de usar a mentira como recurso”, conclui.
A CARA DA MENTIRA
Já percebeu como algumas situações parecem familiares quando outras mães e pais contam sobre algo com seus filhos? Com as mentiras acontece o mesmo. “As crianças costumam contar aos colegas mentiras que lhes parecem “simples”, como, por exemplo, mentir sobre o poder aquisitivo da família, inventar sobre carros que a família não possui, sobre trabalhos e ocupação dos pais que, muitas vezes, sequer são presentes, a respeito de brinquedos que ganharam de presente em épocas festivas etc”, comenta Sueli Conte.
Abaixo, Telma Abrahão pontua algumas mentiras “mais comuns” que as crianças contam para os pais e por que normalmente são ditas:
– “A escola ainda não enviou o boletim com as notas” – muitas crianças ou adolescentes sentem medo de mostrar as notas aos pais devido ao excesso de cobrança ou por medo da punição;
– “Foi ele que começou!” – quando você tem mais de um filho, é comum que existam brigas entre eles. A questão é que um acusa o outro e dificilmente teremos como saber realmente qual atitude e de quem desencadeia as discussões;
– “Papai disse que eu poderia” – essa frase é bem comum quando as crianças estão tentando conseguir algo que já tenha sido negado por um dois pais. Mas importante verificar se o papai estava olhando para o telefone quando disse isso. Se sim, grandes chances de que ele não tenha escutado ou compreendido nada do que foi dito pelo filho;
– “Estou bem” – às vezes, só de olhar para um filho já sabemos que ele não está bem ou que esta ressentido com algo, mas ao não quererem falar a respeito acabam dizendo que está tudo bem;
– “Fiquei sem bateria, por isso não retornei sua ligação” – uma coisa sabemos com certeza: hoje em dia o maior pavor de um adolescente é ficar sem bateria, ainda mais em um mundo tão tecnológico e lotado de tomadas.
Em tempo: Às vezes, as crianças mentem ou guardam segredos sobre assuntos sérios – as que foram abusadas por adultos ou intimidadas por outras crianças geralmente mentem porque temem ser punidas se contarem. “Se você suspeitar que seu filho está mentindo para proteger outra pessoa, garanta que ele estará seguro se disser a verdade. Deixe seu filho saber que você fará tudo o que puder para melhorar as coisas. Bullying certamente é um dos grandes motivos que causam danos emocionais no individuo, abalo na autoestima e muita vergonha. Em qualquer um desse casos a criança/adolescente precisa ser orientada e encontrar apoio e segurança no adulto, sejam pais ou professores. Esses adultos precisam ser/funcionar como um porto seguro e não uma ameaça à integridade física e emocional delas”, finaliza Telma.
*PRISCILA CORREIA é jornalista, especializada no segmento materno-infantil. Entusiasta do empreendedorismo materno e da parentalidade positiva, é criadora do Aventuras Maternas, com conteúdo sobre educação infantil, responsabilidade social, saúde na infância, entre outros temas. Instagram:@aventurasmaternas