Em um país em que mais da metade da população já presenciou atos de racismo, e 60% acreditam que o Brasil é racista, a conscientização sobre essa realidade é crucial. Segundo a pesquisa “Percepções sobre o Racismo no Brasil,” realizada pelo Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), sob encomenda do Instituto de Referência Negra Peregum e do Projeto Seta (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista), a contradição entre a percepção do racismo e a autoreflexão da população revela nuances intrigantes.
Diante disso, a coluna da semana traz a importância de abordar o racismo desde a infância, apresentando 10 livros infantis que promovem respeito e entendimento sobre a diversidade, visando moldar uma nova geração sem atitudes racistas.
DAS PÁGINAS PRA VIDA
Que a literatura é uma das melhores fontes de entretenimento para as crianças e adolescentes a gente já sabe. Mas, sim, pode ser ainda do mais que isso. Na casa de Paula Braga, mãe de Miguel, de 6 anos, a prática da leitura faz parte da rotina da família, principalmente na noturna. Dentro desse contexto, através das histórias, a família trabalha valores, respeito às diferenças, entre outras questões que possam surgir no decorrer da leitura.
No entanto, apesar de usar os livros como instrumento para abordar alguns assuntos, ela acredita que a maneira mais rápida de conversar seja por meio da abordagem direta. “Vamos direto ao ponto. No entanto, acredito que a literatura tenha a capacidade de abordar questões como o racismo de forma lúdica e com uma linguagem acessível para crianças, sem perder a complexidade do tema. Isso acontece porque, por meio das histórias, as crianças se identificam com os personagens, refletem, percebem e questionam as ações que ocorrem ao longo da narrativa, aprendendo a desenvolver empatia e compreensão”, explica.
Outra mãe que usa os livros para conversar com o filho sobre temas importantes é Debora Nepomuceno, mãe de Leonardo, de apenas 4 anos. “É com a literatura que vamos abordando os mais variados temas. Léo, inclusive, tem uma condição genética (displasia ectodermica) que afetou seus dentes e foi graças à obra “Vicente, o dinossauro de um só dente” que nós conseguimos abordar sobre isso com ele e as mais variadas pluralidades do ser humano”, comenta. Para ela, é desde criança, e em casa, que se aprende que não há distinção entre as pessoas. “São tantos autores incríveis, que nos dão ferramentas para ensinar os pequenos na luta antirracista. O Léo não é uma criança que sofrerá o racismo, mas irá combatê-lo, com certeza”, complementa.
A psicóloga Michele Silveira, que é diretora da MS Clínica de Psicologia, explica que a literatura é uma ferramenta poderosa que pode servir como “espelhos, janelas e mapas”, refletindo a própria identidade das crianças. Na visão dela, a leitura permite que as crianças deem alguns passos no lugar de outra pessoa, mostrando uma gama de possibilidades de seu lugar no mundo. Os livros ainda ajudam os pequenos a formarem sua própria identidade e a moldar suas atitudes e comportamentos em relação a pessoas que são diferentes delas.
“E, embora o racismo demonstre ter um impacto significativo na saúde de crianças e famílias, crianças de todas as origens raciais/ étnicas que são expostas à diversidade têm maior probabilidade de construírem uma boa autoconfiança e habilidades de liderança. Os livros podem ajudar a garantir que seu filho acredite em si mesmo, se torne um aliado dos outros, entenda que o racismo e a discriminação existem, reconheça o poder da bondade, compaixão e empatia pelos outros e, por fim, celebre o que é comum e diferente entre as pessoas que encontra”, afirma.
Simone Roque da Silva, que é psicopedagoga e diretora da Creche Escola Gideão e do Centro Multidisciplinar DesenvolviKids, pontua algo importante: a leitura é um dos primeiros contatos informativos que a criança tem. “É através da leitura e da literatura que se tem conhecimento histórico do quanto o racismo e a escravatura foi desumano com todos atingidos e pra sociedade. Por isso, as famílias podem e devem usar com proveito esse instrumento lúdico, mas real.”
E vai além: “A literatura é uma formadora de caráter, personalidade e de aceitação de diversidade porque permite entrar em realidades ainda não vividas, mas possíveis de se entender como reais. Para os negros, trazem aceitação; para os brancos, traz o entendimento e a empatia; e para a sociedade, de uma forma geral, traz a individualidade como possibilidade em um mundo que prega a uniformidade sem humanidade.
Ela conta, ainda, sobre um episódio em que uma mãe levou à direção a necessidade urgente da abordagem do tema na escola devido a negação do filho negro de sua dada raça. “Trabalhamos inspirado no livro “Nossas Cores “, que trata de diferenças individuais até quando se trata da cor da pele. Vimos o resultado imediato porque quando as crianças tiveram a oportunidade de se desenharem e colorirem, a visão desse aluno foi orgulhosamente de um negro com a cor preta”, lembra.
Já para a também psicóloga Graziela Campos, a literatura pode ajudar a combater o racismo, mas, antes disso, pode ajudar a criança a identificar o racismo. “Ou seja, identificar onde esse racismo se encontra dentro de uma cultura, onde ele se esconde no cotidiano. Acredito que seja algo que antecipa o combate. Se a minha criança não sabe que determinados tipos de tratamento se configuram como racismo, ela não vai conseguir se opor àquilo”, pontua. E continua: “Muitas vezes, o lúdico acaba sendo o meio pelo qual a criança consegue nomear situações, medos, dúvidas. Quando falamos de racismo, o lúdico pode vir como esse auxílio para a criança compreender situações tristes, violentas, injustas. Através de uma brincadeira, por exemplo, pode-se desenvolver o senso de empatia ou de justiça”.
Para a psicóloga Patrícia Peixoto, a literatura é uma ótima estratégia para a educar os filhos, tanto para criança ou adolescente. “Existe até uma forma que a gente trabalha no consultório e que chama Livroterapia, em que os livros são usados como uma forma de ensinar. Os livros são adaptados a cada idade. Quando pegamos a faixa etária correta para usar o livro, conseguimos bons resultados. Existem alguns que trazem exercícios, reflexões sobre o tema em questão. Lógico que a forma que a gente vai abordar é mais importante, porque não é apenas o ato de apenas ler o livro, mas pausar para fazer perguntas, incrementar sobre o assunto que está decorrendo. Essa é uma forma bem lúdica que atrai bastante”, diz.
DIRETO AO PONTO
A seguir, selecionamos 10 títulos que vão ajudar crianças a adolescentes a entenderem sobre racismo e encontrar maneiras de destruí-lo.
1) “Abayomi, a menina de trança”, de Aniete Abreu, pela Hanoi Editora pelo selo Hanoi Kids – A arte-educadora e artesã Aniete Abreu presta sua contribuição ao movimento de empoderamento infantil e de busca pela ancestralidade africana neste livro. A obra narra a jornada de uma menina negra que recebe a missão de proteger a natureza com a ajuda de amigos como o beija-flor Benedito e a borboleta Zabelê. Para concluir sua tarefa, a pequena viaja até a cidade de Tietê, em São Paulo, onde interage com grandes personalidades negras.
Dentre elas, destaca-se o músico Itamar Assumpção, figura importante da cultura popular brasileira, responsável por composições de sucesso de Cássia Eller e Zélia Duncan. A reconexão com os ensinamentos ancestrais está presente até no nome da protagonista, que na língua iorubá significa “encontro precioso”. Abayomi também é a maneira como se chamavam as bonecas que confortavam as crianças dentro dos navios negreiros, confeccionadas a partir de nós e retalhos das saias das mães escravizadas. Desde 2015, Aniete Abreu ministra oficinas de bonecas Abayomi para promover o resgate da herança da diáspora africana e valorizar as contribuições da população negra, muitas vezes ignorada e invisibilizada em comparação a outros grupos.
Os brinquedos são produzidos com materiais de descarte de empresas têxteis, evidenciando a preocupação socioambiental da autora. Ao abordar a importância da diversidade e do combate ao preconceito racial, a obra contribui para o desenvolvimento de valores como apreço pelas artes, cuidado com o meio ambiente e reverência pela ancestralidade. Com muita leveza, a história estimula o orgulho, promove o autoconhecimento e ajuda a fortalecer o senso de pertencimento dos pequenos. O livro abre portas para a compreensão de questões étnico-raciais, inspirando a luta por respeito, aceitação e igualdade. É um convite para que pais, mães, familiares e educadores incluam as crianças em conversas sobre a importância do resgate histórico e da educação antirracista, temas fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Para comprar, acesse aqui!
2) “Racismo na Infância”, de Márcia Campos Eurico, pela Cortez Editora – O racismo, muitas vezes sutil e invisível, continua a ser perpetuado através de manifestações de violência que afetam inúmeras esferas da vida cotidiana. Um exemplo significativo desse debate está presente na obra “Racismo na Infância”, que lança luz sobre a intersecção entre racismo e infância. O livro examina de maneira profunda o impacto da ideologia racista nas vidas de famílias negras no Brasil.
Por meio dos relatos de profissionais entrevistados, a obra expõe a complexidade do fenômeno da institucionalização de crianças e adolescentes no país, destacando o peso que o racismo carrega nesse contexto. Quando celebramos o Dia da Consciência Negra e observamos as discussões em torno do racismo no Brasil, é fundamental lembrar que o caminho para a igualdade e justiça é pavimentado com consciência e reflexão contínuas. Para comprar, acesse!
3) “Maria Flor”, de Patrícia Rodrigues Augusto Carra, pela UICLAP – Após concluir os estudos, uma jovem advogada retorna ao Café dos Livres para lutar pelos direitos da população. Comunidade remanescente dos quilombos, este lugar foi fundado durante o período da colonização e sempre teve lideranças mulheres, que também mantinham uma produção sustentável de café e arroz. Com uma linguagem simples e didática, a autora, que é historiadora, psicopedagoga e professora, percorre uma linha histórica sobre o Brasil. Para comprar, acesse!
4) “Menina bonita, que cor você tem?”, Aline Carvalho, pela Editora Multifoco – Quando a filha sofreu racismo, Aline Carvalho recorreu à literatura para reconstruir a autoestima da menina. A partir de uma história baseada na realidade, ela narra a trajetória dos ancestrais africanos, compostos por reis, rainhas e guerreiros pretos, além de explicar a importância da diversidade. Neste livro, as crianças entendem sobre respeito às diferenças, negritude e enfrentamento de preconceitos. Para comprar, acesse!
5) “Amoras”, de Emicida, pela Companhia das Letras – Afinal, como falar sobre assuntos sensíveis aos pequenos sem perder a magia e ternura características dos livros infantis? A resposta pode ser encontrada na obra de estreia do rapper Emicida, lançada em 2018 pelo dono das canções de sucesso “AmarElo” e “Triunfo”. No livro, inspirado em uma conversa com a própria filha, o músico narra o trajeto de uma garotinha negra se reconhecendo no mundo, com reflexões lúdicas acerca de temáticas como racismo, autoaceitação e diversidade. Orixás da crença iorubá e personalidades como Martin Luther King e Zumbi dos Palmares também são apresentados aos leitores ao longo das 44 páginas, que, devido ao grande sucesso, já lhe renderam a publicação da segunda história “E foi assim que eu e a Escuridão ficamos amigas”. Para comprar, acesse!
6) “Contos pra Libertar”, de Rosa Scarlett – No livro de Rosa Scarlett, a liberdade tem muitos significados. Ela pode ser a busca por sucesso profissional, ou o ócio da aposentadoria. É a descoberta da própria identidade ao retornar às raízes, como também o distanciamento do núcleo familiar para fugir de um contexto de violência. Entre os 18 contos apresentados, a obra atravessa o mesmo tema a partir de diferentes perspectivas: social, econômica, emocional, política e religiosa. Em “O Poder das Letras”, um menino trabalha em uma plantação e nunca frequentou a escola. Quando o garoto se senta pela primeira vez em uma sala de aula e lê seu nome no quadro, percebe: liberdade é estudar. Já “Política da Vida” conta a trajetória de um jovem rico e militante que se percebe prisioneiro ao descobrir a corrupção do pai.
Construir novas relações em uma comunidade será seu ingresso na luta pela libertação. Mulher negra, moradora de periferia e apaixonada por histórias, a escritora é inspirada por experiências individuais e profissionais, pela literatura e pela leitura da vida. Ela percorre assuntos como racismo estrutural, machismo, relacionamentos abusivos, desigualdades socioeconômicas, mercado de trabalho, exploração de terras indígenas, entre outras discussões recorrentes no país. A publicação utiliza textos curtos e simples, mas está repleta de narrativas profundas sobre conflitos humanos. Para comprar, acesse!
7) “A luta de Denis”, de Manoel Soares , pela Editora Mostarda – Com prefácio do empresário e ativista social Celso Athayde e ilustrações de Paulo Daniel, apresentador e jornalista Manoel Soares lança o livro “A luta de Denis”, que traz ao jovem leitor de todas as idades, uma história sensível e rica em nuances, baseada em fatos da vida de Manoel Soares, que foram suavizados com a ludicidade artística do ilustrador Paulo Daniel. Parte da história narrada por ambos também é inspirada nas milhares de histórias coletadas nas favelas em que atuam, apresentando um olhar realista e puro de um cenário cheio de nuances e contrastes. Denis é um menino doce e afetivo que compartilha a vida com a sua mãe, Dona Alice, na comunidade da Vila Zala. Dona Alice é uma mulher batalhadora que ganha a vida como faxineira trabalhando em três casas e faz de tudo para que o filho cresça sendo um homem honesto. Sentindo-se deslocado entre os outros meninos da comunidade, Denis acaba fazendo algo que se torna um divisor de águas em sua vida. Agora, o jovem precisa tomar uma decisão, e essa não será uma tarefa fácil. Para comprar, acesse!
8) “Pequenas vidas pretas importam”, de Khodi Dill e Chelsea Charles, pela Editora Benvirá – O livro empodera todas as crianças, em especial crianças pretas, ao afirmar que a vida delas importa, mesmo que ainda sejam pequenininhas. Mostrando quinze heróis pretos e as palavras poderosas que disseram, este livro rimado incorpora citações memoráveis e é um lembrete aos pequeninos de que cada uma dessas grandiosas personalidades um dia também foi criança. Para comprar, acesse!
9) “Outros contos africanos para crianças brasileiras”, de Rogério Andrade Barbosa, pela Editora Paulinas – As fábulas africanas há muito tempo encantam e educam crianças ao redor do mundo. Em “Outros contos africanos para crianças brasileiras”, o renomado autor Rogério Andrade Barbosa e o talentoso ilustrador Maurício Veneza unem forças para criar uma experiência literária envolvente e educativa. Neste livro cativante, as fábulas africanas ganham vida, ensinando valores essenciais, como o respeito pelos mais velhos e a importância de seguir tradições, e, acima de tudo, destacando a força da inteligência. As histórias, habilmente escritas por Rogério Andrade Barbosa, são complementadas pelas ilustrações vívidas de Maurício Veneza, criando uma atmosfera mágica que captura a imaginação dos leitores jovens e adultos.
“Outros contos africanos para crianças brasileiras” foi honrado com o prêmio Acervo Básico FNLIJ na categoria Reconto em 2006, um reconhecimento de sua qualidade literária e educativa. Além disso, o livro foi indicado como leitura recomendada para os anos iniciais do Ensino Fundamental, especificamente para estudantes do 3º e do 4º ano. Com narrativas envolventes e ilustrações cativantes, esta obra é mais do que apenas um livro infantil – é uma janela para o mundo rico e diversificado da cultura africana. “Outros contos africanos para crianças brasileiras” é uma leitura essencial para pais, educadores e crianças que buscam não apenas entretenimento, mas também aprendizado significativo. Para comprar, acesse!
10) “Nuang: Caminhos Da Liberdade”, de Janine Rodrigues, pela Piraporiando – Os Uthando eram conhecidos por sua sabedoria, pela honra de suas palavras e por sua beleza preta. As mulheres eram detentoras de conhecimentos milenares e tinham grandes cabelos crespos, belos como coroas. Nuang, uma Uthando alegre e talentosa, gostava de deitar no colo de sua avó e ouvir histórias. Um terrível acontecimento mudou o percurso de seu caminho. É a fé em Nzambi, a força da memória, a união e a confiança que darão força para Nuang e seu povo reconquistarem a liberdade que até hoje, todos nós, ainda buscamos alcançar. O livro acompanha um encarte de atividades com uma proposta incrível de mergulho na história. Uma atividade para fazer em família, na escola, entre amigos e amigas. Para comprar, acesse!