Muitas vezes, sem perceber, adultos fazem brincadeiras sobre namoro infantil, perguntando se a criança já tem um “namoradinho” ou incentivando interações românticas entre meninos e meninas. Embora possam parecer inofensivas, essas falas podem influenciar a construção emocional das crianças, gerando desconforto, expectativas irreais e até afetando suas relações futuras. Para entender melhor os impactos desse tipo de comportamento e como proteger a infância, conversamos com especialistas no assunto.
O poder de uma brincadeira
Todos nós, adultos, em algum momento já escutamos ou fizemos alguma brincadeira fora de hora com crianças. E embora quase sempre essas piadinhas (por pior que sejam) não passem sem causar nenhum trauma, é preciso ficar atento.
Laura Santos, que hoje é adulta, conta que, quando era criança, o avô, que a criou como pai, sempre brincava que ela era namorada de um menino de seu prédio e que isso nunca foi esquecido. “Eu sei que nos anos 80 era comum fazer esse tipo de brincadeira. E meu avô, que era muito debochado e percebia que eu ficava sem graça, sempre fazia quando encontrávamos esse menino. O resultado disso é que eu acabava evitando algumas festinhas porque esse menino estaria e poderia achar que eu gostava dele. É uma besteira, claro, mas quando se é criança tudo tem um peso maior”, lembra.
Segundo Amanda Alves Rastelli, psicóloga e Gerente de Projetos Sociais da ONG Ficar de Bem, crianças estão em fase de desenvolvimento, tanto físico, quanto emocional e social e, ao brincarem com elas sobre esse tipo de assunto, pode-se gerar expectativas errôneas sobre relacionamentos. “Além disso, pode colocar as crianças em situações vexatórias, ansiedade ou pressão sobre um tema que não estão preparadas para lidar”, explica.
A psicóloga Débora Soares comenta, ainda, que essa é uma fase propicia a maturação biológica do corpo e de parte das construções psicológica que o ser humano levará para a vida; e introduzir conceitos ou estimulações que não estão adequados à fase, pode levar a uma aceleração ou até mesmo uma quebra dessa etapa do desenvolvimento. “Por exemplo, brincar com crianças sobre namoro pode parecer inofensivo, mas na realidade pode ter efeitos negativos no desenvolvimento emocional e social delas. As crianças podem sentir que precisam atender às expectativas dos adultos, afinal, nessa etapa eles aprendem por imitação tornando-se uma esponjinha que suga tudo que o ambiente oferece, e isso pode levar a desenvolver preocupações desnecessárias sobre relacionamentos românticos antes do tempo. Eles ainda estão aprendendo sobre amizade, afeto e interações sociais. Introduzir o conceito de namoro de forma precoce pode criar confusão sobre o que são relações saudáveis. Comentários do tipo “Já tem namoradinho(a)?” podem fazer a criança se sentir pressionada a se encaixar em um padrão que não compreende. Além disso, as crianças podem sentir que a amizade entre meninos e meninas sempre precisa ter um fundo romântico, o que pode atrapalhar relações naturais e saudáveis. O ideal é permitir que as crianças explorem suas amizades livremente, sem projetar nelas preocupações e expectativas adultas”, elabora.
É preciso pensar no futuro
Algumas pessoas podem não se dar conta, mas esse tipo de brincadeira pode ser extremamente prejudicial para o futuro de uma criança.
E aí é impossível não levantar uma questão: há alguma relação entre esse tipo de “brincadeira” e o índice de abuso infantil? Débora explica que, até o momento, não há estudos ou algo na literatura que aponte a correlação entre as brincadeiras e o abuso. Entretanto, em sua opinião, é importante ficar atento a que tipos de brincadeiras as crianças são expostas, pois na infância elas aprendem brincando e ensinar de forma lúdica e adequada como elas podem se proteger é de fundamental importância para evitar quadros de abusos. “Certas informações sobre sexualização precoce das crianças por meio dessas “brincadeiras” podem aumentar o risco de abuso infantil. Quando adultos fazem piadas sobre namoro entre crianças ou incentivam interações românticas antes da maturidade emocional, isso pode contribuir para a ideia de que as crianças devem corresponder às expectativas afetivas e românticas. Isso pode tornar as mais vulneráveis a abusos, pois elas não podem considerar limites de segurança. Como, por exemplo, se uma criança cresce ouvindo que é “normal” que os adultos brinquem com sua vida amorosa, ela pode não perceber quando alguém está ultrapassando os limites reais. Isso prejudica sua capacidade de identificar comportamentos inadequados e pedir ajuda”, esclarece. Ele lembra, ainda, que na literatura os abusadores costumam usar o discurso de que o que está acontecendo é “normal” ou “um segredo especial”. “Se uma criança já foi exposta a esse tipo de brincadeira, pode ser mais fácil para um abusador convencê-la de que está tudo bem. Crianças que crescem com essa pressão precoce sobre o namoro podem sentir culpa ou vergonha quando se deparam com situações desconfortáveis, dificultando a denúncia de abuso”, diz.
Débora enfatiza, também, um ponto importantíssimo: a falta de educação sobre consentimento de brincadeiras sobre namoro infantil viola a importância do respeito pelos sentimentos da criança. Sem esse conhecimento, a criança pode ter dificuldade em entender que tem direito a dizer “não” a qualquer interação que a deixe confortável. Por isso, algumas ações são importantes para defesa da criança, como evitar brincadeiras sobre namoro, permitir que a criança viva sua infância sem confiança romântica, ensinar sobre respeito ao próprio corpo e aos sentimentos, criar um ambiente seguro para que a criança possa falar sobre qualquer situação que a incomode, falar sobre consentimento de maneira adequada para cada idade. “Se uma criança entende que suas emoções e limites são válidos desde cedo, ela terá mais ferramentas para se proteger de situações de abuso”, complementa.
Além disso, fazer esse tipo de brincadeira com as crianças pode sexualiza-las de alguma forma. “Infelizmente sim. Como as crianças estão em fase de desenvolvimento, não possuem a maturidade emocional e cognitiva para compreender o que realmente envolve um relacionamento romântico”, pontua Amanda. Para Débora, qualquer informação fora da idade adequada pode estimular precocemente, fazendo com que a criança pule etapas do seu desenvolvimento que mais tarde trará prejuízos a sua vida. “Por isso é importante os adultos desenvolverem autoconhecimento para entender qual motivo pode estar levando a apresentarem certos conceitos ou estímulos que acelerem as etapas do desenvolvimento infantil”, comenta.
É preciso alertar, ainda, sobre a possibilidade das crianças que não se sentem confortáveis com brincadeiras sobre namoro na infância desenvolverem algum tipo de trauma. Segundo Ana Lisboa, psicanalista especialista em saúde mental feminina, tudo depende da intensidade. “Geralmente, nós fomos treinados — principalmente, as mulheres — a acreditar em um amor romântico, em um príncipe encantado. Sabe, aquela ideia de que sempre tem que existir alguém para acompanhar essa menina. Então, vem essa história do ‘já tem namoradinho?’, criando paixões platônicas, criando histórias, mesmo sabendo que aquela criança não tem idade para isso”, diz.
Explicando: no nível do desenvolvimento neurológico, a criança começa a descobrir o próprio corpo ali por volta dos 4 anos. Aos 5, 6 anos, ela se percebe como um ser humano diferente dos pais. Quando vai para a escola e começa a interagir mais, entre os 8 e 11 anos, passa a ter as primeiras emoções desse tipo. Ela pode gostar das coleguinhas, dos coleguinhas, dos meninos e meninas, e aí vai criando toda essa história baseada, principalmente, na nossa geração de millennials — nas princesas, que geralmente são as mães atuais. Essa construção acontece através do repertório que ela tem em casa, dos desenhos animados que assiste, das historinhas que são contadas. “Por isso, é muito importante que isso não se torne uma pressão para a criança, que ela não sinta que precisa de outra pessoa”, comenta Ana.
Entretanto, se a criança trouxer esse assunto, deve ser conversado com ela, mostrando que ainda não é a idade para isso. “É essencial trazer consciência para o tema sem transformá-lo em um tabu. O verdadeiro trauma pode ser gerado quando a criança gosta de um amiguinho, por exemplo, fala sobre isso e é reprimida. “O trauma da repressão é muito maior do que o trauma do estímulo. A questão principal é: quando um adulto estimula uma criança perguntando esse tipo de coisa, ele pode acabar gerando nela uma necessidade constante de estar sempre se relacionando com alguém. Porque a criança não entende que se trata de uma relação, e sim que isso chama a atenção do adulto e gera elogios ou não. Se ela diz que gosta de alguém e recebe um elogio, ela entende: “Pronto, eu só sou elogiada, amada e recebo atenção quando falo esse tipo de coisa”. Isso fica registrado no cérebro da criança. Da mesma forma, se ela diz: “Eu gosto de alguém” e a mãe responde: “Que feio! O que é isso? Não pode!”, a criança entende: “Gostar de alguém é feio, e eu não posso falar sobre as minhas emoções”. Ou seja, a criança não compreende bem que se trata de um relacionamento, mas sim do que ela pode ou não pode fazer. O trauma vem muito mais da repressão ou do estímulo excessivo, que pode levar a uma dependência emocional no futuro. Por isso, os pais precisam se questionar: qual é a razão desse ideal de amor romântico que os leva a estimular uma criança pequena a “namorar” ou criar histórias platônicas? Esse padrão pode fazer com que, na adolescência, esse jovem sinta necessidade de viver muitas e muitas histórias para se relacionar. E, ao se perder dentro dessas histórias, ele pode acabar desenvolvendo processos de dependência emocional”, esmiuça a psicanalista.
Direto ao ponto
A seguir, Amanda Alves Rastelli e Débora Soares falam um pouco mais sobre o tema.
Aventuras Maternas – Quando a criança fica sem graça com a brincadeira vindo de terceiros, como os pais devem agir com os filhos e com quem faz a “brincadeira”?
Amanda Alves Rastelli – É importante os pais ou responsáveis se imporem nesse momento, falando sobre os sentimentos que a criança pode estar sentindo no momento, e exposta a uma situação insultuosa. Também devem respeitar os seus sentimentos e garantir que ela se sinta segura e confortável.
Débora Soares – Muitas vezes, as crianças têm seus direitos de dizer não violado por adultos. Isso vai desde uma brincadeira que ela não gostou, e que as vezes são obrigadas por adultos a aceitarem, porque afinal o adulto está somente brincando. Nessa etapa da infância, a criança ela tem a necessidade de validação das suas ações, e isso é feito pelo cuidador, quando a criança é violada em seu direito de infância, mesmo que pareça um comentário inofensivo, cabe ao cuidador validar a proteção aos seus direitos, evitando assim que a criança sofra estimulações que não são adequadas a fase da infância.
Aventuras Maternas – Há uma idade em que esse tipo de comentário seja aceitável? Fale sobre isso.
Débora Soares – Isso sofre várias alterações conforme a cultura a qual a criança está inserida. No entanto, as fases do desenvolvimento podem ser grandes norteadores de quando inserir esse assunto. Por exemplo: aos 6 anos, as crianças veem o mundo de forma simples e lúdica, então, não há necessidade de falar sobre namoro de forma direta. Caso suja a pergunta, o ideal é abordar o tema de maneira natural, explicando que o namoro é uma forma especial de carinho e parceria entre pessoas. Dos 7 a 10 anos, elas começaram a perceber o conceito de namoro ao verem exemplos em casa, na escola ou na mídia. Nessa etapa, o foco deve ser ensinar sobre respeito, amizade e sentimentos, sem pressão para que elas se preocupem com os relacionamentos. A partir dos 11 anos (pré-adolescência), é comum que surjam paixões e interesses românticos. Aqui, os pais podem abrir espaço para diálogos naturais sobre sentimentos, autoestima e limites. Esse é um bom momento para introduzir temas como consentimento, respeito e relacionamentos saudáveis. Na adolescência (12 anos em diante), o interesse por namoro pode ficar mais evidente. O ideal é que os pais ou responsáveis conversem de forma aberta sobre relacionamentos, responsabilidade emocional e sexualidade de acordo com a maturidade do adolescente. É importante não julgar, mas sim orientar sobre escolhas saudáveis e de respeito mútuo. O mais importante é que o assunto seja tratado com naturalidade e sem imposição, respeitando o ritmo da criança ou do adolescente.
Aventuras Maternas – A partir de qual idade a criança/adolescente começa a “entender” esse tipo de brincadeira como brincadeira de fato? Explique.
Débora Soares – Dependendo de qual fase o tema for introduzido, mesmo sendo uma brincadeira, a criança estará limitada pela maturação biológica cognitiva. O conceito de namoro é altamente complexo e abstrato e se for inserido no momento inadequado podem não ser compreendido em sua totalidade. Por exemplo na primeira infância (0 a 2 anos) o pensamento da criança é baseado em sentidos e ações. Essa fase é marcada pelo reconhecimento do mundo através dos sentidos, onde ela leva objetos a boca, os sentidos os levam a explorar o ambiente. Ela ainda não compreende conceitos abstratos, apenas experiências diretas. Dos 2 a 7 ano a imaginação é forte, mas o pensamento ainda é concreto e egocêntrico. Começam a entender símbolos (como palavras representando objetos), mas ainda têm dificuldade com lógica e abstrações. De 7 a 12 anos as crianças começam a entender conceitos abstratos simples, como justiça, amizade e regras, desde que sejam explicados de forma concreta e com exemplos práticos. Elas desenvolvem a capacidade de pensar logicamente sobre coisas reais e observáveis. A partir dos 12 anos surge a capacidade de pensar de forma abstrata, hipotética e crítica. Os adolescentes começam uma reflexão sobre ideias complexas, como filosofia, política e moral. Nessa fase já se tem maturidade cognitiva para fazer distinções de abstrações entre realidade e brincadeiras.
Aventuras Maternas – Quando o assunto namoro parte não de uma brincadeira de adultos com as crianças, mas das próprias crianças, como os pais devem agir?
Amanda Alves Rastelli – O primeiro passo é não ignorar a situação ou ceder à brincadeira. Os pais ou responsáveis devem intervir e orientar as crianças sobre as fases de desenvolvimento e deixar claro, de maneira simples, que criança não namora e nessa fase da vida o foco está na diversão, crescimento pessoal e não em relacionamentos românticos.
Débora Soares – Abordar o tema com mais leveza possível é sempre um bom caminho, e prestar atenção o que a criança entende por namoro na fase que ela está vivendo. Pois dependendo da fase, ela pode ter um conceito bem diferenciado do adulto. E conversar conforme a fase que ela esteja é muito importante para o desenvolvimento. Portanto retire os dogmas, os preconceitos e seja sempre a fonte de apoio que as crianças precisam, tratem sobre limites, inspirem a confiança para que essa relação entre criança e educador seja sempre fluída para abordar qualquer tema.
Aventuras Maternas – Como orientar os pequenos sem assustar ou incitar?
Amanda Alves Rastelli – É importante esclarecer para as crianças, respeitando seus níveis de compreensão e de desenvolvimento, que esse tipo de relação envolve sentimentos e responsabilidades que condiz apenas para pessoas mais velhas, geralmente adolescentes e adultos. Além disso, enfatizar que na fase que estão, na infância, devem se concentrar em brincar e se divertir.
Débora Soares – Abordar de uma forma simples e natural sem preconceitos e dogmas, respeitando a fase de desenvolvimento que a criança esteja. Se o adulto se assusta com o tema a criança também reagirá da mesma forma. Isso pode comprometer o vinculo de confiança evitando que futuramente ela busque ajuda para entender outros conceitos.
Aventuras Maternas – As redes sociais corroboram com esse tipo de brincadeira? Explique.
Amanda Alves Rastelli – Uma vez que as redes sociais, além da mídia e meios de comunicação estão muito presentes na sociedade, isso acaba abrindo mais espaços para que esse tipo de situação possa acontecer. Por isso considera-se fundamental os pais ou responsáveis seguirem as regras de idade mínima para o uso de redes sociais. Isso varia de cada plataforma, mas, em geral, a maioria das redes sociais exige que o usuário tenha, pelo menos, treze anos de idade. Isso está de acordo com a Lei de Proteção à Privacidade Online das Crianças.
Literatura para crianças e os pais sobre o assunto:
– “Criança não namora nem de brincadeirinha, de Cynthia Borges de Moura;
– “Meu corpo, meu corpinho”, de Roseli Mendonça;
– “A psicologia da criança”, de Jean Piaget e Bärbel Inhelder.