Não há como questionar: o uso de celulares pelas crianças tem se tornado cada vez maior e uma preocupação mundial entre pais, educadores e especialistas em saúde. Se antes o seu uso estava atrelado especialmente aos joguinhos e troca de mensagens de grupos de amigos, de uns tempos pra cá se tornou virou parte central da rotina infantil.
Andréa Pacheco*, mãe de Laura*, de 9* anos, conta que já tentou de tudo em casa para que a filha fique mais afastada do aparelho, mas quase nunca consegue. “Ela já acorda com o celular na mão. Quando o despertador toca, no aparelho, ela entra nos aplicativos e whastapp para saber o que recebeu e o que tem de ‘novo’. Cheguei a dizer que a acordaria para ir a escola, para não ficar com o celular pra despertar, mas se tornou um problema ainda maior, porque a noite, de madrugada, ia ao meu quarto, pegava o aparelho e passava a madrugada navegando. Eu já tentei colocar limites de horário, de sites que não gosto do conteúdo, mas confesso que muitas vezes desisto de vigiar, pois não fico com ela o dia todo. Eu realmente não sei mais o que fazer”, conta.
O que Andréa passa é bastante comum em outras famílias com crianças e adolescentes. E os especialistas são categóricos quanto à isso: sem o controle adequado, as consequências são significativas para o desenvolvimento físico, emocional e social dos pequenos.
Não, não estamos dizendo que não haja ‘coisas boas’ no uso desses aparelhos pela crianças. Mas embora a tecnologia tenha seus benefícios, como o acesso à informação e o estímulo à criatividade, é preciso ficar atento aos riscos do uso precoce e prolongado desses dispositivos – problemas que vão desde atrasos cognitivos até complicações físicas estão sendo cada vez mais identificados em indivíduos, especialmente crianças, que passam horas em frente às telas, na maioria das vezes sem nenhuma supervisão. E na coluna de hoje, vamos falar mais sobre como o uso indiscriminado do celular pode afetar não apenas o lado social da crianças, mas trazer danos para o indivíduo como um todo.
Corpo em alerta
Visualize a cena: uma criança sentada no sofá; com os olhos fixos em uma tela com inúmeras abas abertas, cada uma delas com sonos, imagens e muitas cores ao mesmo tempo; com o pescoço inclinado para baixo, afetando totalmente a postura; alienado ao que acontece ao seu redor. Para quem tem filhos, essa imagem é totalmente familiar.

Outro problema bastante comum pelo uso excessivo de celulares entre crianças é o impacto na postura. A posição comum de olhar para o aparelho com a cabeça inclinada para baixo para a tela, aumenta o peso sobre a coluna cervical e pode levar a dores de cabeça, formigamento, fadiga muscular e até problemas ortopédicos crônicos. Chamada de “Síndrome do pescoço de texto”, o termo abrange dores e tensões no pescoço, ombros e costas causadas pelo uso excessivo de dispositivos móveis, como celulares, smartphones e tablets.
A fisioterapeuta Bruna Ferrão alerta que, além de dores crônicas na coluna cervical e lombar, com o passar do tempo, essa má postura pode causar desvios na coluna e até dificuldades de crescimento. E mais: além da postura, as mãos e os pulsos também são afetados, já que o uso repetitivo e prolongado do celular pode levar ao surgimento da Síndrome do túnel do carpo, um distúrbio causado pela compressão de nervos na região do punho. “Ainda que seja uma condição mais diagnosticada em adultos, está sendo cada vez mais frequente em crianças e adolescentes, gerando dores, formigamentos e até limitações motoras”, complementa o fisioterapeuta.
Se afeta o corpo físico, o mental também
Muitas vezes usado para socializar, os celulares podem ter efeito reverso quando não controlados por adultos e usados de maneira indiscriminada. Ou seja, no campo mental e emocional, os prejuízos não são menores.
O uso constante desses aparelhos, seja para jogar ou entrar em tiktok, Instagram ou qualquer outro aplicativo que os pequenos costumam usar, tem gerado comportamentos bastante problemáticos, como maior irritabilidade, impulsividade e até agressividade. “O excesso de estímulos visuais e sonoros, que encontramos normalmente em jogos, especialmente os violentos, ou vídeos rápidos, prejudica a capacidade de concentração e dificulta o controle emocional. Não é raro encontrar crianças que literalmente ignoram o que acontece ao seu redor porque estão assistindo algo nas telas e absorvendo conteúdos vazios, repetidos à exaustão. E como são muito novos, o estímulo contínuo, encadeado sob demanda pelo algoritmo, gera satisfação no ato de assistir ou jogar, desmotivando outras atividades como o raciocínio, a criatividade e até mesmo a capacidade ou o prazer de interagir com amigos e familiares. Assim, ao se interromper essa cadeia de estímulos, a criança pode apresentar tristeza, prostração ou até mesmo agressividade ”, explica o psicólogo e psicanalista Carlos Fernando Dalacqua.
Outro problema sério é o impacto na interação social com a família e amigos, já que crianças que ficam muitos tempo em frente às telas tendem a preferir o isolamento. “Ter contato e interagir com outras pessoas é fundamental para o desenvolvimento da empatia, da linguagem e das habilidades sociais. É na infância que o aprendizado de regras de convivência e a construção de vínculos afetivos saudáveis são construídos. E quando isso não acontece, certamente interfere na construção de habilidades sociais, bem como no desenvolvimento da própria capacidade de resolver problemas e enfrentar situações adversas”, pontua Dalacqua.
Além disso, Dalacqua comenta que há indícios cada vez mais conclusivos de que o uso excessivo de celulares pode comprometer o desenvolvimento cognitivo infantil. “Há relatos de atrasos na linguagem, dificuldades de memorização e de raciocínio lógico em crianças que passam muitas horas em frente ao celular. E como o cérebro infantil ainda está em formação, esses estímulos rápidos e superficiais podem prejudicar o desenvolvimento de funções essenciais como atenção, criatividade e resolução de problemas”, avalia.
Há solução?
É difícil, mas há. A resposta mais obvia, entretanto, é o equilíbrio, mas como fazer isso?
Diante de tantos riscos, especialistas recomendam que os pais imponham limites claros ao uso do celular, priorizando atividades físicas, brincadeiras tradicionais e interações reais. A Sociedade Brasileira de Pediatria, por exemplo, sugere que crianças menores de dois anos não tenham nenhum contato com telas, e que, a partir dessa idade, o tempo de uso seja controlado e sempre supervisionado por um adulto.
A seguir, elencamos 10 dicas que podem ajudar nesse controle.
1 – Crie regras em conjunto: envolva a criança na criação das regras de uso do celular. Pergunte o que ela acha justo, quais horários considera bons para usar e, juntos, montem um “acordo”. Quando ela participa, sente-se respeitada e tende a aceitar melhor os limites;
2 – Estabeleça horários fixos para o uso: defina horários específicos para o uso do celular. Pode ser depois das tarefas escolares, antes do jantar, ou por 30 minutos em algum horário de sua preferencia. A previsibilidade ajuda a criança a se adaptar à rotina sem resistência;
3 – Use o celular como ferramenta de troca positiva: em vez de castigar tirando o celular, use como incentivo, como após fazer algo que é obrigatório, como a lição escolar, pode usar o celular por 30 minutos. Isso evita que a criança veja o controle como punição;
4 – Seja exemplo: as crianças imitam os adultos. Se os pais usam o celular excessivamente ou durante refeições e conversas, elas farão o mesmo. Mostre que há momentos certos para estar no digital — e também momentos de desconectar.
5 – Tenha momentos sem tela em família: estabeleça momentos “sem tela” durante o dia, como nas refeições, passeios ou na hora que for deitar para dormir. Use esses momentos para criar laços com atividades agradáveis, como jogos e leitura, para que a criança não sinta que está “perdendo algo”;
6 – Use controle parental de forma transparente: use aplicativos de controle parental (como o Family Link, Screen Time ou similares), mas explique para a criança que isso é uma forma de proteção, e não de espionagem ou desconfiança. Isso evita conflitos futuros;
7 – Ofereça alternativas interessantes: muitas vezes, o celular é o único divertimento que a criança acha que existe. Ofereça outras atividades prazerosas, como fazer algum esporte, assistir desenhos, brincar com massinha, jogar quebra-cabeças, fazer passeios, ler livros interativos etc. A criança precisa ter opções além da tela;
8 – Negocie o tempo de tela, mas não o elimine: evite proibir completamente, pois isso tende a causar resistência. É mais eficaz que pode usar um determinado período. Quando a criança sente que ainda tem algum controle, ela aceita melhor;
9 – Use o celular junto com a criança: mostre que o celular pode ser educativo e interativo. Sugira assistirem juntos aos vídeos educativos, joguem algo juntos, pesquisem temas que a criança goste. Assim, o aparelho deixa de ser apenas entretenimento isolado;
10- Mantenha o celular fora do quarto à noite: crie o hábito de guardar o celular em um local comum da casa à noite (por exemplo, na sala). Explique que isso ajuda no sono e evita distrações. Transforme essa regra em um costume familiar, mas não apenas para as crianças, mas para todos da casa. Lembre-se: crianças aprendem também por exemplo.
Em tempo: os problemas pelo uso excessivo do celular não atingem apenas crianças. Adultos também devem se cuidar. Alessandra Santos, por exemplo, conta que a filha, hoje com 13 anos, começou a reduzir o uso pelo problema passado pela mãe. “Na pandemia, como ficamos em home office, comecei a trabalhar em diferentes cômodos da casa, para variar um pouco daquela loucura que vivemos. Então, pegava o celular e ficava trabalhando. Com o tempo, e o pescoço sempre inclinado pra baixo, comecei a sentir muitas doces na nuca. Minha filha via meu sofrimento e, por ela mesma, passou a não usar tanto o celular. Esse hábito acabou diminuindo o modo como consumia as telas”.








