Quando um vídeo viralizou mostrando o desentendimento em um avião entre uma mãe e uma passageira que se recusou a trocar seu lugar na janela para agradar o filho da mãe, as redes sociais explodiram em debates. De um lado, críticas ao que seria mais um caso de “criança mimada”; de outro, reflexões sobre empatia e os desafios de lidar com crises infantis em espaços públicos. A situação reacendeu discussões sobre birra, mimo, educação permissiva, positiva ou punitiva, destacando a complexidade dessas questões.
Birra e mimo, embora frequentemente confundidos, têm origens diferentes. A birra é uma reação intensa e muitas vezes exagerada a uma frustração, muito comum em crianças pequenas, especialmente quando estão aprendendo a lidar com emoções. Já o mimo está relacionado à ausência de limites claros e à crença de que a criança pode obter tudo o que deseja, frequentemente reforçada por atitudes dos próprios adultos. Em um contexto público, distinguir entre os dois pode ser desafiador, especialmente para quem não conhece a criança e suas necessidades.
No entanto, há situações em que a dinâmica é mais profunda. Crianças neurodiversas, como aquelas no espectro do autismo, podem apresentar crises sensoriais, que não são escolhas conscientes, mas respostas involuntárias a estímulos que sobrecarregam seus sentidos. Luzes fortes, barulhos altos ou mudanças na rotina podem desencadear reações intensas que, à primeira vista, podem parecer birra, mas têm causas muitas vezes incompreendidas pela sociedade.
Casos como o do avião exemplificam os desafios em equilibrar direitos individuais, responsabilidades dos pais e a empatia social. Enquanto é justo respeitar o direito de alguém que não quer ceder seu lugar, também é essencial promover uma compreensão mais ampla sobre os diferentes comportamentos infantis. Afinal, nem todas as reações intensas de uma criança são mero capricho; algumas refletem necessidades genuínas que merecem atenção e sensibilidade. Então, fica a reflexão: como saber? Como agir? E para trazer luz sob o assunto, conversarmos com especialistas, que vão ajudar a elucidar algumas questões.
Pode ser mimo (mas também pode não ser)
Antes mesmo do tribunal da internet saber do que realmente havia acontecido e escolher qual lado defender no acontecimento dentro do avião, uma questão importante parece ter sido esquecida tanto nesse caso quanto em outros semelhantes: quais as necessidades reais de uma criança ao fazer birra? Ou, ainda, será que, em situações como esta, trata-se mesmo de uma simples questão de mimo?
A psicóloga e neuropsicóloga Patricia Peixoto explica que uma criança é considerada “mimada” quando demonstra dificuldade em aceitar limites e frustrações, frequentemente exigindo que suas vontades sejam atendidas imediatamente, sem levar em conta as necessidades dos outros. “Esse comportamento pode surgir quando os cuidadores cedem consistentemente às demandas da criança, muitas vezes para evitar conflitos ou situações embaraçosas. O impacto disso no desenvolvimento pode ser significativo. A criança pode crescer com baixa tolerância à frustração, dificuldade em lidar com “nãos”, problemas de relacionamento interpessoal e até desafios em ambientes estruturados, como a escola ou o trabalho no futuro. O excesso de permissividade pode gerar insegurança, pois a criança precisa de limites claros para se sentir protegida e orientada”.
Iara Souza, psicóloga e autora do livro “A importância do sucesso do vazio”, comenta que a criança é geralmente considerada “mimada” quando apresenta comportamentos constantes de exigência, intolerância, frustração e resistência a regras ou limites pré-estabelecidos. Isso pode ocorrer quando os cuidadores frequentemente cedem às demandas da criança para evitar conflitos ou quando não existem limites claros. “Esse comportamento pode impactar no desenvolvimento da criança, incluindo dificuldades em lidar com frustrações, baixa resiliência, relações interpessoais desafiadoras e até mesmo uma maior vulnerabilidade emocional na vida adulta”, diz.
Para Danielle Damasceno, especialista em desenvolvimento infantil e fundadora da Clínica na Mesma Roda, os limites para as crianças precisam ser estabelecidos de forma consistente, de maneira que elas aprendam sobre empatia com o próximo e consigam aprender a ter responsabilidade, reconhecendo as consequências pelos seus atos. “Nesta perspectiva, as emoções da criança precisam ser validadas, dizendo “eu entendo que você está frustrado, porém, mesmo assim, não podemos fazer tal coisa por tal motivo”, orienta.
Mas atenção: nem sempre essas situações acontecem por birra e as pessoas precisam entender que há crises legítimas de crianças neurodiversas, como aquelas com TDAH ou TEA (Transtorno do Espectro Autista), e que essas, geralmente, têm raízes em sobrecarga sensorial, dificuldade de comunicação ou alterações na rotina. “Esses comportamentos não são manipulativos, mas refletem a incapacidade de lidar com estímulos excessivos ou situações específicas. Já os comportamentos mimados, em geral, têm a intenção de manipular ou influenciar os outros para obter algo desejado. A diferença chave está no contexto e na frequência: crianças neurodiversas podem ter reações desproporcionais a situações que não afetam outras crianças, enquanto o comportamento “mimado” normalmente está relacionado a demandas não atendidas”, diz Iara.
Esses momentos não devem ser confundidos com atitudes mimadas. “Enquanto a birra é intencional e está ligada a expectativas de recompensa, as crises sensoriais são reações involuntárias desencadeadas por sobrecarga emocional ou sensorial, como sons altos, iluminação forte ou mudanças bruscas na rotina”, explica a neuropsicóloga Bárbara Calmeto, diretora do Autonomia Instituto.
Luana*, mãe de Luisa*, de 5 anos, conta que passou por um episódio parecido em um restaurante, quando a filha “cismou” que queria sentar em uma mesa que tivesse um número especifico. “Ela tem TEA e o que chamam de cisma, é, na realidade, uma característica muito presente no autismo. Então, quando fomos almoçar naquele dia, ela queria sentar na mesa que tinha o número 3 em cima. Poderia ser 3, 13, 31 etc, mas tinha que ter o número 3 na plaquinha. Como minha família sempre frequentou o local, os garçons, já sabendo dessa exigência da minha filha, sempre conseguiram mesas assim. Entretanto, naquele dia, que era um feriado, estava muito cheio e não havia nada disponível. Então, vi que uma família que havia chegado um pouco antes ia sentar na 13 e perguntei se poderiam ceder. Expliquei a situação e ele concordaram. Percebi que uma das pessoas não havia gostado e mostrei um laudo dela que sempre ando, onde o médico explica tudo. Só assim ela acreditou. Como agradecimento, depois pedi para mandarem uma sobremesa para eles, mas é sempre um estresse quando acontece algo assim”, conta.
Bárbara explica que, para lidar com essas situações, é fundamental promover a empatia. “Identificadores como o cordão do autismo ou o de girassol são ferramentas valiosas, pois sinalizam que a criança ou adulto pode ter necessidades específicas, ajudando a reduzir julgamentos e a criar um ambiente de maior compreensão”, explica Bárbara. Além disso, a neuropsicóloga complementa que as famílias também desempenham um papel essencial ao preparar as crianças para situações desafiadoras, utilizando objetos de conforto ou estratégias calmantes, além de buscar apoio de grupos especializados e profissionais.
Por outro lado, é necessário que a sociedade amplie sua consciência sobre a neurodiversidade e as crises sensoriais, por meio de campanhas educativas e treinamentos de inclusão em espaços públicos. “Somente com informação, paciência e respeito mútuo será possível equilibrar os direitos individuais com a construção de ambientes mais acolhedores para todos”, finaliza Calmeto.
Direto ao ponto
A seguir, pedimos para Patricia Peixoto, Iara Souza e Danielle Damasceno falarem um pouco mais sobre como diferenciar comportamentos mimados de crises legítimas e sugerir estratégias para ajudar nessas situações.
Aventuras Maternas – Como os pais podem estabelecer limites saudáveis sem ignorar os direitos e sentimentos da criança?
Patricia Peixoto – Estabelecer limites saudáveis envolve comunicação clara e empática. Os pais devem explicar as regras e as consequências de forma consistente, sem ceder a pressões emocionais ou birras. Reconhecer e validar os sentimentos da criança, como dizer “Eu sei que você está triste porque queria sentar na janela”, é essencial, mas isso não significa necessariamente atender ao pedido. O equilíbrio está em ser firme, mas amoroso. Por exemplo, se o assento específico não está disponível, oferecer uma alternativa pode ajudar a criança a aprender sobre negociação e flexibilidade. Quando os pais mantêm a palavra, as crianças aprendem a confiar que existem regras previsíveis no mundo.
Iara Souza – Penso que estabelecer limites saudáveis requer uma combinação de empatia, clareza e consistência. Algumas estratégias que os pais podem adotar são a comunicação assertiva, que é quando os pais explicam os motivos dos limites de maneira apropriada para a idade da criança; validação emocional, quando são reconhecidos os sentimentos da criança sem necessariamente ceder às suas demandas; consistência ao manter os limites ao longo do tempo e em diferentes situações, para que a criança saiba o que esperar. Um exemplo claro é demonstrar comportamentos que promovam respeito e paciência, pois as crianças aprendem, e muito, observando os adultos.
Aventuras Maternas – Como diferenciar entre comportamentos mimados e crises legítimas de crianças neurodiversas?
Iara Souza – É preciso ter sensibilidade às particularidades do desenvolvimento infantil. Crianças neurodiversas podem apresentar dificuldades em processar estímulos ou emoções, o que pode levar a crises. Saiba que esses comportamentos não são intencionais ou manipulativos. Já os comportamentos mimados costumam estar associados a situações de poder e controle, enquanto as crises geralmente são respostas a sobrecargas sensoriais ou emocionais. Um diagnóstico adequado e orientação profissional ajudam a entender melhor as necessidades da criança neurodiversa e como as diferenciar de uma simples birra.
Danielle Damasceno – É bem possível que as reações das crianças (nas duas realidades) sejam as mesmas, aparentemente, sendo vistas por alguém que não estava presente durante todo o acontecimento. É necessário compreender o contexto sobre quais foram os antecedentes para que houvesse a “crise” ou “birra”. Uma maneira de diferenciar é entender que as crises podem acontecer até com a criança sozinha (sem ser direcionada a alguma pessoa). Já a birra geralmente é direcionada a alguma pessoa específica. Caso seja uma criança neurodivergente, com alguma necessidade específica, essa crise pode ter sido desencadeada por uma sobrecarga sensorial, e o adulto responsável provavelmente saberá usar de alguma estratégia para acalmar sua criança. O que chamamos de “birra” acontece quando a criança não consegue lidar com alguma frustração e, por isso, apresenta um comportamento explosivo.
Aventuras Maternas – Que estratégias podem ajudar famílias e a sociedade a lidar com essas situações em público?
Patricia Peixoto – As famílias podem – e devem – antecipar possíveis situações de desconforto é essencial. Se há algo que a criança valoriza (como sentar na janela), os pais podem tentar planejar isso com antecedência. Caso não seja possível, ter alternativas prontas, como brinquedos ou histórias que a distraiam, ajuda a evitar crises. Além disso, os pais podem aproveitar essas situações para ensinar empatia e resiliência: “Nem sempre conseguimos o que queremos, mas podemos aprender algo novo com isso”. Já as pessoas ao redor, devem sempre praticar mais empatia e compreensão em relação a crianças e pais. Todos já enfrentaram momentos desafiadores, e julgar de imediato não ajuda. Ao mesmo tempo, é importante equilibrar direitos: crianças não têm prioridade automática em todas as situações, e isso deve ser respeitado.
Iara Souza – Promover uma compreensão mais ampla sobre as diferenças no desenvolvimento infantil é uma boa saída. Também é possível antecipar situações que possam ser desafiadoras e preparar estratégias para lidar com elas (como levar objetos de conforto ou escolher ambientes mais tranquilos). Os pais devem explicar brevemente a situação para os observadores, caso se sintam confortáveis. Além disso, é importante que trabalhem a culpa e o medo de julgamentos para que possam agir com calma e foco na criança. Por fim, os pais podem sempre contar com familiares ou amigos próximos podem aliviar a pressão durante momentos difíceis.
Danielle Damasceno – No caso de crises de uma criança com necessidades específicas em público, além da família da criança precisar gerenciar a situação, a empresa em questão também precisa ter alguma política inclusiva, seja um local/assento preferencial ou algum funcionário treinado para acolher nessas eventualidades. Neste caso, o ideal a se fazer, tanto o cuidador, quanto a empresa é levar a criança para um local tranquilo e silencioso, afastá-la do máximo de estímulos possíveis, transmitindo segurança e conforto, a fim de que a criança consiga se acalmar e retornar. No caso de uma “birra” de uma criança com desenvolvimento dito “típico”, esses comportamentos acontecem por busca de atenção e só irão cessar quando a criança perceber que não irá conseguir o que quer com aquele comportamento, ou quando o adulto responsável ceder ao que ela quer, o que não é aconselhável, visto que a criança está em processo de desenvolvimento de suas habilidades cognitivas e de personalidade.
Em tempo: “É importante que pais, cuidadores e a sociedade percebam que momentos desafiadores são oportunidades de aprendizado tanto para as crianças quanto para os adultos. Ensinar e demonstrar empatia, negociação e paciência em situações como essa é importante para o desenvolvimento emocional das crianças. Além disso, sempre bom ressaltar que ninguém é perfeito: pais podem cometer erros, e isso faz parte do processo. O mais importante é refletir sobre essas situações e buscar formas de agir com mais consciência e equilíbrio no futuro”, conclui Patricia Peixoto.