“Eu sempre vou lembrar em detalhes da primeira vez que senti na pele a experiência do preconceito, no início da vida escolar do meu filho. Vou resumi-la com uma das frases que ouvi na época: ‘Ele precisa ir pra uma escola pra gente como ele'”. O desabafo de Raquel Del Monde, médica especialista em autismo e mãe atípica de Bruno, de 24 anos, reforça o que muitas famílias vivem na prática sobre a pretensa inclusão de seus filhos.
Para ela, a frase é emblemática e expressa o sentimento por trás de todos os preconceitos. “‘Gente como ele’, em oposição direta a ‘gente como nós’. A diferença que desqualifica, invalida, inferioriza e estigmatiza. É essa a origem do racismo, da homofobia, da misoginia, da xenofobia, do capacitismo… Estar fora da situações-alvo de preconceito traz uma falsa sensação de segurança e conforto”, avalia Raquel, ressaltando que o indivíduo pode até manifestar simpatia em relação às causas das minorias, mas não sente que tem alguma coisa a ver com isso – isso quando não se sente ameaçado por elas, o que acontece com certa frequência.
“Por isso, histórias de superação (o imigrante hostilizado que venceu na vida, o negro que virou diretor da empresa, o autista que se formou em primeiro lugar na universidade renomada) são ilusórias e traiçoeiras, porque vendem a ideia de que não há necessidade de mudar a estrutura, que basta o esforço da pessoa para derrubar barreiras – quando sabemos de fato que não há superação sem envolvimento coletivo. Tenho aprendido muito nos últimos anos, com o trabalho diário com pessoas neurodiversas e com o ativismo do autismo e todos os seres humanos incríveis que conheci por meio dele”, avalia a médica.
Embora hoje, teoricamente, as escolas e a sociedade, de forma geral, sejam mais atentas e inclusivas, na prática nem sempre é assim. Não é à toa, inclusive, que histórias de crianças que não conseguem vagas nos colégios, ou excluídas de grupos de amigos são tão comuns.
É importantíssimo, e urgente, entendermos que o ativismo de todos é fundamental para criar uma sociedade mais inclusiva de verdade, e que não é apenas papel de famílias atípicas entrarem nessa luta. Por isso, na nossa coluna de hoje, vamos falar não somente sobre como o Dia do Autismo é essencial para essa conscientização, mas também trazer à tona a exaustão de inúmeras mães que lidam com o preconceito, o capacitismo e a ignorância em torno do diagnóstico de TEA, como o diagnóstico precoce pode mudar o futuro desses indivíduos e como a sociedade precisa estar mais atenta ao tema.
A REALIDADE DAS CRIANÇAS COM TEA
Frases como “espera, ela ainda é muito nova”, “ele não tem cara de autista”, ou, ainda, a sugestão de viver apenas junto a seus pares interfere diretamente na busca pelo diagnóstico, na inclusão ou mesmo na divulgação de informações corretas que façam com que a sociedade realmente entenda mais sobre o tema.
Que, de algumas décadas para cá, ocorreram avanços sobre o tema não há dúvidas. Entretanto, como diz Thaciana Marinho Pinela, mãe de Guilherme, de 3 anos, se antes o TEA era visto como algo de outro planeta, agora o assunto não causa mais tanta surpresa como antes, até pelo fato da alta recorrência, já que hoje falamos de 1 a cada 36 crianças. Entretanto, o fato do autismo ser mais discutido, não significa automaticamente que a sociedade esteja mais inclusiva. “
Acho que o principal inimigo do autismo é a falta de informação. As pessoas só conhecem o TEA quando têm algum contato direto. Precisamos munir a sociedade de informações passadas por profissionais que, de fato, conheçam a fundo o transtorno. Se as escolas ainda não estão preparadas para receber essas crianças, imagine a sociedade”, pontua.
Já Rafaela Yumi Hakamada, mãe de Yuri, também de 3 anos, conta que, ao olhar para trás, percebe por depoimentos de outras famílias que a inclusão de pessoas com TEA teve pontos melhorados. Entretanto, na prática, o que vê, sente e vive é uma melhora teórica, que ainda não saiu do papel e não funciona de maneira orgânica. “Hoje, existem mais leis que asseguram direitos no âmbito da inclusão, existe mais compartilhamento desses direitos. Porém, a luta para ver esses mesmos direitos acontecerem ainda é muito intensa. Ainda vejo profissionais da saúde e da educação com referências desatualizadas, com discursos e ações não inclusivos e capacitistas”, esclarece.
E ela vai além: “Mais do que conhecimento, acredito que a mudança das pessoas no viés da inclusão, vem pela sensibilização. Não lembro onde ouvi ou li, mas mais do que brigar pelos direitos de inclusão, temos que sensibilizar. E, além de sensibilizar, temos que compartilhar mais, compartilhar não apenas teorias e conceitos, mas vivências e experiências, ver pessoas autistas como seres integrais que possuem sua individualidade, que possuem seus desafios, mas também suas habilidades. Romper barreiras entre a educação e a saúde também traria muitos ganhos, pois acredito que são duas áreas que poderiam construir muita coisa juntas, por meio de trocas ricas. Grupos locais com diversidade, compostos por profissionais da educação, saúde, famílias de autistas e os próprios autistas, para promover escuta e compartilhamento”.
Mas, além da luta diária por uma inclusão de verdade, famílias com crianças com TEA também passam por uma série de situações em que o fato dos filhos terem autismo é constantemente levantado – e quase sempre são episódios traumáticos. “O que me machuca não é ter vivido essas situações por pessoas que não conhecem o Yuri. Pelo contrário. É ver meu filho ser tratado de forma diferente por pessoas que me conhecem e que sabem que ele é autista”, conta.
Um exemplo é quando estão em um evento social e ela não escuta ou vê as pessoas chamarem o nome da criança, afinal “ele nem atende pelo nome mesmo”. “Ou quando não interagem com ele, afinal “ele nem entende o que a gente fala” ou “ele só entende a mãe/pai”. Por muitas vezes vejo meu filho ser uma criança invisível pelo simples motivo dele ver e interagir de uma forma diferente”, comenta Rafaela. Thaciana lembra, ainda, outra situação bastante comum: “Pelo fato do autismo ser uma deficiência invisível, acredito que as dificuldades que eu e outras mães passam na rua acabam sendo vistas como falta de educação ou limites”.
EDUCAÇÃO URGENTE
As situações que famílias com crianças/adolescentes com TEA passam devido à falta de educação da sociedade sobre o tema são infinitas. Desde a não colaboração e empatia até julgamentos precipitados e exclusão dessas pessoas. E essas ocasiões poderiam, sim, ser mudadas se as pessoas tivessem educação sobre o tema – e, para deixar claro, quando falamos em educação não é sobre a forma que tratamos o outro apenas, mas sobre nos informarmos sobre o tema e aprendermos as particularidades de quem tem TEA.
A médica Raquel Del Monde explica que é preciso investir seriamente em educação e que as pessoas precisam entender que a inclusão beneficia a todos, sem exceção. “Não existe ativismo seletivo. A partir do momento que você enxerga a intolerância em relação às minorias, a discriminação, a desigualdade de oportunidades, as falácias do sistema, não há como validar seletivamente as lutas de apenas algumas delas. Se você não consegue enxergar que a luta pelos direitos do seu filho autista não é mais importante que a luta contra o racismo ou a homofobia, você continua naquele lugar que busca uma falsa sensação de segurança e conforto que produz o discurso do “gente como ele – gente como nós””, avalia.
“Na vida real, o autismo (e o TDAH e todas as condições de saúde mental, de desenvolvimento e aprendizagem) precisam ser discutidos em termos de acesso a diagnóstico e suporte terapêutico, em termos de inclusão educacional, profissional e social. Não dá pra falar de nada disso ignorando as barreiras que enfrentamos e a necessidade de políticas públicas alinhadas às mudanças que precisamos. Não dá pra manter compromisso com a ciência e a diversidade ignorando o obscurantismo e o preconceito”, enfatiza.
Mas como educar as pessoas, afinal? A pessoa com TEA ou algum tipo de necessidade específica deve ser tratada com respeito e empatia, sendo incluída nas atividades, fazendo as adaptações necessárias, mas, ao mesmo tempo, sem que os outros sintam pena ou diminuam o potencial delas. “Costumam achar que inclusão é sobre aceitação, mas não. É respeito às diferenças e possibilidade de adaptação de acordo com a necessidade individual de cada um”, explica a neuropsicóloga Bárbara Calmeto, diretora do Autonomia Instituto.
E vai além: “incluir não significa apenas aceitar a diversidade e simular esta aceitação. A ideia de inclusão vai além e tem como princípios uma educação pela não discriminação, oferecendo igualdade de oportunidades para pessoas diversas, com capacidades, jeitos, condições e outras diferenças. Aceitar, incluindo verdadeiramente, é quebrar o capacitismo. A criança autista não é um ser especial, um anjo azul, nem um problema, nem precisa de uma cura. O autismo precisa ser tratado com naturalidade e sem romantização. Infelizmente é muito comum ver espaços que apenas “toleram” a presença de crianças no espectro do autismo e não promovem uma integração real diante da turma e das atividades, muitas vezes justificando bullyings e preconceitos como consequência do comportamento neurodiverso, colocando a vítima do preconceito como culpada. É papel da escolar e demais espaços incluir, integrar e estimular o relacionamento saudável entre todas as crianças, respeitando suas diferenças”.
Nas escolas, por exemplo, o primeiro passo é respeitar e observar as necessidades do colega. “Seria importante a escola promover uma orientação para a turma sobre o transtorno do colega e quais as dificuldades e potenciais dele. Assim, todos entenderão e não ficarão com dúvidas. As crianças não sabem sobre o transtorno, logo, não sabem como lidar. Acredito que a informação é o principal aliado da inclusão verdadeira”, ressalta.
Quando chega uma criança com deficiência ou transtorno, a escola deve promover um processo de conscientização de acordo com entendimento cognitivo da turma e com foco no potencial, em como os alunos podem colaborar na inclusão ativa. Além disso, explica, essas ações também diminuem o processo de bullying, que é muito comum nas escolas. “Crianças que aprendem sobre respeito ao próximo e sobre integração social se tornam pessoas mais gentis e com desenvolvimento sócio-emocional para a vida”, complementa Calmeto.
Quanto ao planejamento pedagógico, é necessário que ele seja adequado também aos alunos com TEA, que considere suas dificuldades, habilidades e necessidades, com conteúdo inclusivo. “As crianças com autismo se sentem mais seguras quando têm uma rotina previsível. Além disso, podem reagir mal a mudanças e adaptações no ambiente. A repetição de processos e atividades em sala de aula é muito benéfica para elas. É fundamental entender se o aluno responde melhor a estímulos visuais ou auditivos, de que forma interage melhor com a turma. Se a criança puder reconhecer padrões e uma rotina na escola, ela conseguirá controlar a ansiedade e se sentir mais segura. Mas um detalhe importante: não deve existir diferenciação entre os conteúdos, pois isso atrapalha a interação com as outras crianças e prejudica a motivação do aluno com autismo para a aprendizagem e também acaba promovendo o capacitismo. Todos os alunos devem ter acesso às mesmas informações, ainda que seja necessário fazer algumas adaptações na forma como elas serão apresentadas e trabalhadas por cada um”, determina Calmeto.
E, escolas, lembrem-se: segundo a Lei nº 12.764/2012, que fala sobre a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, alunos autistas incluídos em classes comuns de ensino regular têm direito a acompanhante especializado, ou seja, a escola é obrigada a oferecer suporte para toda e qualquer adaptação que o aluno precise.
Quanto aos pais de crianças neurotípicas, é importante que seus filhos cresçam com consciência sobre diversidade, e o espaço escolar é uma grande oportunidade para trabalhar a diversidade de ideias e comportamentos. “Ao falar com seu filho, mesmo os pequenos, sobre alguma criança com autismo, ela entenderá com facilidade. É fundamental ter cuidado na hora de passar explicações capacitistas. No caso do autismo existem diferentes níveis de suporte e comportamentos diversos. Nem todo autista não consegue fazer contato visual, ou tem dificuldade na comunicação, ou se incomoda com barulho. O mais importante é explicar que todos somos diferentes e que podemos nos apoiar nessas diferenças”, esclarece Bárbara. E mais: se em algum momento surgir uma dúvida sobre o TEA que você não saiba responder para o seu filho, escute, se informe e converse posteriormente. O mais importante é normalizar o assunto, sem romantizar ou evitar falar sobre o tema como se fosse um tabu.
A IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO NA INFÂNCIA
Independentemente do nível do TEA, o diagnóstico precoce é sempre extremamente importante para que o indivíduo se desenvolva. Para Del Monde, quanto mais precoce for o diagnóstico, maiores as chances da criança se desenvolver melhor e ser favorecida por um ambiente adequado, tanto em casa como na escola. “Claro que o impacto de algumas intervenções terapêuticas é maior na infância, mas, além disso, é importante ressaltar o quanto a criança ganha quando suas particularidades e necessidades também são atendidas pela família e pela escola”, diz.
Para a neuropsicopedagoga clínica Ana Carolina S. Sousa Meneghel, a descoberta do TEA na infância, quando a criança está em fase de desenvolvimento, se torna mais eficaz também porque o terapeuta pode acompanhar os marcos do desenvolvimento que ela ainda não atingiu, se antecipando em cada fase. “Dessa forma, é possível entrar com intervenções específicas para cada etapa”, diz. A pedagoga Thainara Morales, que é especialista em Análise do Comportamento Aplicada (ABA – Applied Behavior Analysis), mestre em neurociências e diretora da Clínica Arte Psico, lembra, inclusive, que alguns médicos e especialistas já observam atrasos do desenvolvimento a partir dos 4 meses de vida. “A medicina está avançando para o diagnóstico precoce. Esse diagnóstico é clínico e baseado nas evidências científicas destacadas pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria, conhecido também como DSM-5, pois está na sua quinta edição”, complementa.
É importante dizer, ainda, que embora o autismo não tenha uma cara e nem um comportamento rigidamente definido, há alguns ‘sinais de alerta’ que pais e professores, que são as pessoas que normalmente têm um contato mais direto com a criança, podem identificar, já que estes aparecem nos primeiros anos de vida – vale lembrar que há diversos níveis de autismo; pessoas com o TEA nível 1, por exemplo, podem apresentar apenas dificuldades em situações sociais que muitas vezes podem ser confundidas com timidez; outras têm comportamentos restritivos e repetitivos que podem parecer perfeccionismo, por exemplo.
“Algumas características devem ser observadas em crianças que podem estar dentro de um possível diagnóstico de TEA, como apresentar dificuldades na flexibilização de regras, gostar de manter padrões, ter dificuldades na interação social com diversas pessoas, ter estereotipias (movimentos repetitivos) e demonstrar maior dificuldade para entender piadas, ironias e sarcasmo. Mas lembre-se: ter uma ou mais dessas características não vai, exatamente, significar o TEA, mas é preciso buscar ajuda profissional para um diagnóstico mais preciso. Apenas um profissional poderá avaliar essa condição. Afinal, rótulos criados pela sociedade, além de capacitistas, só atrapalham no diagnóstico de autismo”, destaca Bárbara Calmeto.
Mas atenção: embora seja melhor que o diagnóstico aconteça quando criança, algumas terapias podem ter bons resultados mesmo que os indivíduos descubram o TEA já na fase adulta. “Se o adolescente ou adulto descobrir o diagnóstico depois da infância, provavelmente já terá sofrido o suficiente em sociedade, causando prejuízos nos aspectos emocionais, sociais e acadêmicos. Inclusive, geralmente, quando o diagnóstico surge na vida adulta, esse sujeito já ‘se adequou às regras sociais’, mesmo que com os prejuízos já citados. Entretanto, é preciso pensar pra frente. Nessas situações, é indicado fazer a terapia comportamental de aceitação e compromisso, frequentemente chamada de ACT. Esta é uma terapia cognitivo-comportamental que tem por objetivo aumentar a flexibilidade psicológica a fim de obter uma mudança no comportamento que já está instaurado. Além disso, outros profissionais e terapias também poderão ser indicadas por um médico psiquiatra, que fará, caso necessário, os devidos encaminhamentos. É importante dizer, ainda, que embora a maioria das terapias tenham melhores resultados quando iniciadas na infância, há casos em que se consegue boas respostas quando realizadas mais tarde também”, enfatiza Thainara.
Além disso, pontua Raquel, ainda que tardio, “ter o diagnóstico, seja na juventude, vida adulta ou mesmo na terceira idade, é muito importante para trazer respostas, compreensão, acolhimento, suportes adequados e melhor qualidade de vida”.
POR QUE É IMPORTANTE QUE ENTENDAMOS O PROCESSAMENTO SENSORIAL NO TEA?
Uma das percepções mais frequentes quando se fala de TEA é em relação às questões sensoriais – algumas pessoas com autismo são hiporresponsivas e outras são hiperreativas aos estímulos sonoros, visuais, olfativos, entre outros. “Na hiper-reatividade, a pessoa percebe de maneira aumentada os estímulos e precisa de ambientes com luzes mais fracas ou usar fones de ouvido, por exemplo; já na hiporresponsividade existe uma dificuldade maior em perceber e responder aos estímulos que a maioria das pessoas reagiriam. Tem-se diversas estratégias de acomodação sensorial e estratégias de intervenção para trabalhar a parte sensorial como suporte visual, mastigadores, toque firme, cobertores com peso. O profissional qualificado para avaliar e intervir nas necessidades sensoriais é o terapeuta ocupacional. Pessoas diversas com necessidades diferentes. Existe diversidade no espectro do autismo e é exatamente por isso que não há como encaixotar o diagnóstico, nem leigos podem definir se há motivo para buscar ajuda ou não”, comenta Bárbara.
A terapeuta ocupacional Samara de Araújo Costa explica que o terapeuta ocupacional é o profissional da área da saúde com competência para atuar quando a pessoa (bebê, criança, adulto, idoso), por motivos diversos, não consegue se engajar em atividades que são importantes no seu dia a dia. “Falando em relação às crianças com autismo, é comum que muitas delas tenham dificuldades que impactem nas ocupações que elas precisam ou desejam fazer. Por exemplo, muitas têm dificuldades em realizar atividades de vida diária com independência, como tomar banho, escovar os dentes, pentear o cabelo, se vestir, se alimentar, usar o vaso sanitário, dentre outras. Também é comum que as crianças dentro do espectro possuam mais desafios na escola, no brincar e no descanso/sono. Todas essas são áreas que a terapia ocupacional pode ajudar, com técnicas específicas e contribuindo com um trabalho multiprofissional”, pontua.
No TEA, o transtorno de processamento sensorial está muito presente. E muitos pais costumam se perguntar se com o tratamento adequado há alguma melhora. Samara esclarece que esse transtorno (ou disfunções de integração sensorial, nomenclatura mais atual) acontece quando o sistema nervoso da criança não consegue processar as informações do próprio corpo e do ambiente e agir de maneira funcional – o nosso mundo é sensorial e a todo momento somos bombardeados por estímulos que precisamos processar, organizar e responder, como os conhecidos no senso comum, como cheiro, gosto, visão, audição e toque, mas também outros não tão conhecidos, que são o sistema vestibular (que responde à força da gravidade e os movimentos de cabeça, influenciando em funções como controle postural, consciência espacial, coordenação motora, equilíbrio, dentre outras) e sistema proprioceptivo (sensação do próprio corpo, nos informa a posição dos nossos membros – mesmo com olho fechado, conseguimos descrever a posição do nosso corpo, se nossa perna está dobrada, nosso braço levantado etc).
“O processamento sensorial não pode ser visto a olho nu. Então, observamos o comportamento, o desempenho motor, a aprendizagem e as emoções e elaboramos hipóteses de se as dificuldades que vemos podem ser sensoriais ou não; esses são os “aspectos visíveis” da integração sensorial. Vale ressaltar que essas dificuldades em processar a informação sensorial podem ocorrer sem nenhum tipo de diagnóstico associado, com crianças típicas, e também é comum ocorrer em conjunto com diagnósticos, como é o caso do TEA. A maior parte das crianças com TEA não consegue processar bem essas informações sensoriais do próprio corpo e do ambiente e isso dificulta o seu desenvolvimento e participação em atividades que a criança precisa ou deseja fazer”, esclarece.
Algumas crianças, por exemplo, se incomodam muito com o toque e diferentes texturas e, por isso, é difícil interagir, brincar, aceitar abraços, comer, participar de rotinas como banho, pentear o cabelo e escovar os dentes, participar de atividades de artes na escola etc. Outras podem não gostar tanto de movimento e ter medo de explorar brinquedos do parque, como balanço, escorrega, gira-gira. Já outras podem precisar muito mais de movimento para perceber esses estímulos e, então, a criança pode correr, girar, pular, ficar agitada a maior parte do tempo.
“Os exemplos anteriores falam de dificuldades de modulação sensorial, ou seja, a criança percebe o estímulo para mais ou para menos. Outros tipos de disfunção sensorial são as dificuldades de práxis. É muito comum que algumas crianças com TEA e disfunções sensoriais não saibam muito bem o que fazer para usar seu corpo e planejar os movimentos. Às vezes tropeçam, se batem em objetos e pessoas, colocam muita força ou pouca força na hora de brincar ou escrever, parecem desengonçadas, desajeitadas e não conseguem fazer várias atividades motoras que crianças da mesma idade conseguem tranquilamente. Esses foram só alguns exemplos dos inúmeros que poderíamos citar aqui, mas o importante é colocar que cada criança é única, tem suas necessidades específicas e precisa de um tratamento individualizado”, complementa.
Samara lembra, ainda, que se não tratada, a sensibilidade sensorial pode interferir na vida do autista adulto. “Afinal, apesar de comumente relacionada à infância, a sensibilidade não desaparecem magicamente na vida adulta e é muito comum que adultos que nunca foram diagnosticados e tratados possam ter muitas dificuldades por conta dessa condição. Frente a desafios e desconfortos que sentem, muitos adultos desenvolvem técnicas para lidar com situações rotineiras comuns, que não são difíceis para outras pessoas. No entanto, essas técnicas são paliativas, não resolvem a raiz da dificuldade e demandam muita energia, prejudicando a qualidade de vida desses indivíduos”, diz.
Pesquisas que exploram e descrevem o impacto das dificuldades sensoriais na vida de adultos relatam consequências importantes, como ansiedade, depressão, impacto no bem estar e participação social, na escolha de papéis ocupacionais durante a vida, dentre outras questões de saúde mental. “Por isso que é importante identificar as disfunções sensoriais o mais cedo possível e fornecer o tratamento adequado, para diminuir impactos secundários como esses. Hoje em dia, está sendo cada vez mais comum, a partir do momento que falamos mais sobre isso, ver adultos se identificando com essa condição e buscando ajuda para compreender “aquilo diferente” que sempre sentiram, mas que não era capazes de explicar”, enfatiza.
É necessário dizer que a sociedade também precisa entender mais sobre sensibilidade sensorial, que essa não é uma questão apenas para familiares e pessoas próximas de quem têm autismo – inacreditavelmente, ainda há indivíduos que acham que as reações de quem tem TEA são ‘frescura’. “Trata-se de uma realidade complicada, porque esse tema ‘integração sensorial’ não é conhecido por muitas pessoas, não é algo que está no senso comum. E por essa falta de conhecimento, muitos não conseguem ser empáticos com as dificuldades da criança no dia a dia. Pensando em adultos, muitos são vistos como “esquisitos”, anti-sociais, metódicos etc., porque arrumam estratégias que correspondem com a forma com que percebem as sensações”, diz.
“Cada ser humano é único e isso fala muito sobre como nos comportamos em sociedade. Tem pessoas que adoram experimentar comidas novas, novos cheiros e sabores, enquanto outras não toleram e preferem comer o mesmo de sempre, com previsibilidade, ou outros que não se importam e aceitam comidas novas ou usuais. Tem pessoas que gostam de estar em lugares cheios, com muito barulho, luzes, movimento etc., enquanto outras se arrepiam só de pensar em um ambiente assim. São apenas alguns exemplos para mostrar como a forma como percebemos o nosso corpo e o mundo podem impactar no nosso comportamento, nossas relações, nossa capacidade de funcionar, de aprender, nossas emoções”, verbaliza Samara.
Ela complementa: “Essa é uma temática que tem que chegar na ‘boca do povo’. Vemos a prevalência do TEA aumentando nos últimos anos e sabemos como as questões sensoriais estão presentes nesse diagnóstico e como o tratamento adequado e precoce pode facilitar muito a funcionalidade dessas pessoas, promovendo autonomia e independência no dia a dia. Precisamos que os pais, professores, equipe multiprofissional, vizinhos, amigos saibam como ajudar as pessoas que têm disfunção sensorial. Precisamos que, ao olhar um comportamento ‘esquisito’, diferente, acenda uma luz “será que pode ser essa tal disfunção sensorial?”. Assim, podemos encaminhar a pessoa para que ela possa ser avaliada e receber a intervenção de maneira adequada. Mas isso só é possível se levarmos esse conhecimento à frente, para atingir cada vez mais pessoas”.
PARA ESCOLAS, NA PRÁTICA
Sugestões sobre como as escolas devem fazer a inclusão de alunos com TEA sempre são levantadas. Entretanto, nem sem isso acontece. Abaixo, Bárbara Calmeto sugere 10 sugestões de práticas importantes na escola para criar um ambiente diverso e respeitoso.
“Além das famílias, a escola tem papel fundamental nesse processo de inclusão, não apenas por ser o ambiente onde as crianças começam amizades como também por contar com profissionais capacitados para essa interação. É nas escolas que as crianças começam seu processo de socialização, que aprendem na prática sobre respeitar as diferenças do outro. E por isso é essencial que esses locais estejam preparados para esse dia a dia”, afirma.
- Estude sobre o diagnóstico do aluno, saiba as principais características do transtorno e as dificuldades específicas do aluno;
- Faça um trabalho educativo de conscientização sobre o transtorno do aluno em toda a escola, desde o porteiro, auxiliares de limpeza, alunos, professores e outros. Naturalize as diferenças! Se o aluno com deficiência tiver possibilidade, peça para ele mesmo participar desse processo;
- Escute o aluno com deficiência, olhe para ele, observe seu dia a dia. Dê voz para que ele te mostre seu potencial e suas necessidades;
- Anote as dificuldades específicas do aluno e trace estratégias de adaptação e ajustes dessas necessidades;
- Crie dicas visuais, organização da rotina escolar, adaptações curriculares para conteúdos e provas;
- Organize um “canto da calma” na sala de aula com materiais que possam ajudar no equilíbrio sensorial do aluno;
- Escreva um Plano de Ensino Individualizado (PEI) com as metas específicas e estratégias necessárias para que o aluno consiga ampliar seu conteúdo pedagógico durante o ano;
- Vá aumentando as possibilidades de participação do aluno com deficiência na rotina escola, conte com apoio dos próprios colegas para os apoios;
- Busque reunião com a família e com os profissionais que acompanham o aluno para trocas e ajustes de como ajudar melhor;
- Seja empático! Respeite! Inclua! Somos diferentes e tudo bem!
POR DENTRO DO ESPECTRO
Para entendermos melhor o mundo do TEA, pedimos sugestões de séries, filmes e livros sobre o tema para Raquel Del Monde, Thainara Morales, Bárbara Calmeto e Ana Carolina S. Sousa Meneghel.
“Atypical” (Netflix) – A série conta a história do jovem autista Sam e põe em debate perspectivas de futuro e conquista de autonomia;
“Uma Advogada Extraordinária” (Netflix) – A séria conta a história de uma jovem autista brilhante, que é contratada por um grande escritório de advocacia. Ela possui um QI alto e uma memória impressionante, mas tem dificuldade com interações cotidianas;
“Rain Man” (Amazon Prime Video e MGM) – Charlie, um jovem yuppie, fica sabendo que seu pai faleceu. Eles nunca se deram bem e não se viam há vários anos, mas ele vai ao enterro e ao cuidar do testamento descobre que herdou um Buick 1949 e algumas roseiras premiadas, enquanto um “beneficiário” tinha herdado três milhões de dólares. Curioso em saber quem herdou a fortuna, ele descobre que foi seu irmão Raymond, cuja existência ele desconhecia. Autista, Raymond é capaz de calcular problemas matemáticos com grande velocidade e precisão. Charlie sequestra o irmão da instituição onde ele está internado para levá-lo para Los Angeles e exigir metade do dinheiro, nem que para isto tenha que ir aos tribunais. É durante uma viagem cheia de pequenos imprevistos que os dois entenderão o significado de serem irmãos;
“Temple Grandin” (HBO Max) – Cinebiografia da jovem autista Temple Grandin, que tinha sua maneira particular de ver o mundo, se distanciou dos humanos, mas chegou a conseguir, entre outras conquistas, defender seu doutorado. Com uma percepção de vida totalmente diferenciada, dedicou-se aos animais e revolucionou os métodos de manejo do gado com técnicas que surpreenderam experientes criadores e ajudaram a indústria da pecuária americana;
“O jogo da imitação” (Netflix e HBO Max) – Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo britânico monta uma equipe que tem por objetivo quebrar o Enigma, o famoso código que os alemães usam para enviar mensagens aos submarinos. Um de seus integrantes é Alan Turing, um matemático de 27 anos estritamente lógico e focado no trabalho, que tem problemas de relacionamento com praticamente todos à sua volta. Não demora muito para que Turing, apesar de sua intransigência, lidere a equipe. Seu grande projeto é construir uma máquina que permita analisar todas as possibilidades de codificação do Enigma em apenas 18 horas, de forma que os ingleses conheçam as ordens enviadas antes que elas sejam executadas. Entretanto, para que o projeto dê certo, Turing terá que aprender a trabalhar em equipe e tem Joan Clarke sua grande incentivadora;
“O contador” (HBO Max) – Desde criança, Christian Wolff sofre com ruídos altos e problemas de sensibilidade, devido ao autismo. Apesar da oferta de ir para uma clínica voltada para crianças especiais, seu pai insiste que ele permaneça morando em casa, de forma a se habituar com o mundo que o rodeia. Ao crescer, Christian se torna um contador extremamente dedicado, graças à facilidade que tem com números, mas antissocial. A partir de um escritório de contabilidade, instalado em uma pequena cidade, ele passa a trabalhar para algumas das mais perigosas organizações criminosas do mundo. Ao ser contratado para vistoriar os livros contábeis da Living Robotics, criada e gerenciada por Lamar Blackburn, Wolff logo descobre uma fraude de dezenas de milhões de dólares, o que coloca em risco sua vida e da colega de trabalho Dana Cummings;
“As we see it” (Amazon Prime Video) – A série conta a história de três colegas de quarto de vinte e poucos anos com autismo. Jack, Harrison e Violet lutam para conseguir e manter empregos, fazer novas amizades e se apaixonar. Com ajuda de suas famílias e amigos, eles irão tentar alcançar os seus objetivos pessoais rumo à independência e aceitação em um mundo que os ilude;
“Amor no espectro” (Netflix) – O reality show em formato de documentário não só mostra que o amor é para todos, mas quebra todos os estereótipos que giram em torno das pessoas que vivem no espectro autista;
“Farol das orcas” (Netflix) – O filme conta a história real de Roberto Bubas, um biólogo que trabalhava em uma praia da Patagônia, no sul da Argentina, se dedicando ao estudo de orcas que desenvolveram uma técnica especial de caça não vista em nenhum outro lugar do mundo, avançando até a areia para pegar sua presa. Um dia, uma mulher aparece na frente de sua cabana: Lola, e seu filho Tristán, ambos vindos da Espanha. Tristán possui autismo, mas a conexão que ele demonstrou com as orcas ao assistir um documentário da National Geographic sobre Beto fez com que Lola o levasse até a Patagônia para tentar um tipo de terapia experimental, similar às feitas utilizando golfinhos;
“O garoto que podia voar” (Amazon Prime Video) – Eric é um menino autista que não fala e tem fascínio por voar. Então, Milly se muda para a casa do lado após seu pai morrer e se torna a única pessoa que Eric dá algum tipo de reação;
“Tudo que quero” (Amazon Prime Video e Apple TV) – Wendy, uma jovem portadora de autismo, consegue driblar sua cuidadora e escapa com um único objetivo em mente: entregar seu manuscrito para concorrer em uma competição de escrita sobre Star Trek;
“Meu amigo faz iiiiii”, de Andréa Werner – O livro conta a história de dois coleguinhas de escola. Bia, que é a narradora, percebe que seu colega Nil tem alguns comportamentos diferentes. Orientada pela professora, começa a observá-lo para tentar compreendê-lo. Uma ótima forma de ensinar as crianças a encararem a diversidade como algo natural e positivo!
DoroTEA, a peixinha autista, de Bruno Grossi – No livro, DoroTEA enfrenta seus medos e conhece novos amigos, que bagunçam a sua rotina, mas que mostram a ela novas oportunidades e vivências fora do seu cotidiano, completamente estruturado e rígido de mudanças;
“A diferença invisível” – O HQ, que é extremamente elogiado por autistas, tem muitas autobiografias que ajudam bastante e manuais escritos por autistas, além de amplo material nas redes sociais;
“Meu filho, meu mundo” – O filme que conta a história real de uma família que nos primeiros anos de vida do filho, percebe que ele se comporta de maneira diferente das demais crianças. Sempre com um ar ausente, Raun foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista e, assim, os pais buscam por algum tipo de acompanhamento médico. No entanto, os métodos utilizados na época não foram do agrado da família e, dessa forma, eles foram atrás de leituras e desenvolveram seu próprio método a base de amor incondicional;
“ASPERGER’S Are Us” (Netflix) – Documentário de uma trupe de comédia formado por quatro amigos autistas que se prepara para última apresentação antes da separação dos seus membros;
“A menina que pensava por meio de imagens”, de Júlia Finley Mosca – Se você já se achou estranho, se já se sentiu inferior até querer desaparecer, se não se encaixa muito bem, há alguém que você precisa conhecer. O nome dela é Temple Grandin. Quando a jovem Temple foi diagnosticada com autismo, ninguém esperava que ela falasse, muito menos que se tornasse uma das figuras mais poderosas da ciência moderna. A mente singular dela permitiu uma ligação especial com os animais, ajudando-a a inventar melhorias revolucionárias para as fazendas de todo o mundo;
“Ao TEA amar: Autismo na escola da vida”, de Juli Lanser Mayer – O sonho de Juli era ser mãe e ela o realizou – e segue realizando diariamente –, porém, ela não esperava os desafios que a maternidade atípica lhe reservava. O diagnóstico de Rafael veio no ano de 2015 e, de lá para cá, o hobby de Juli em escrever e influenciar pessoas teve uma mudança drástica: compartilhar tudo aquilo que estava reaprendendo com seu filho e sua família, fazendo-a acrescentar em seu currículo mais uma função: palestrante. Seus esforços renderam frutos e, com reflexões emocionantes, Ao TEA amar mostra como o amor de uma mãe faz com que ela ultrapasse seus próprios limites em nome do amor pelo filho.
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