Fátima Cardoso, paulistana, avó, dona de casa e ex-costureira, tem 71 anos e uma rotina exaustiva. Como tantas mulheres de sua idade, também possui uma lista de dores tão extensa quanto a de afazeres, e se preocupa se terá saúde para cuidar dos pais idosos caso adoeçam mais, já que ela própria se vê envelhecendo.
Muitas de suas dores físicas são resultado de anos de sobrecarga – que primeiro atingiram a mente, e foram criando raízes pelo corpo. O sentimento mais constante em seu dia a dia, revela, é a ansiedade: “Fico preocupada com tudo o que acontece, e até com coisas que ainda não aconteceram”, conta Fátima, que convive há anos com problemas de sono e fibromialgia – uma condição crônica gerada a partir do estresse.
E é muito fácil se identificar com o relato dela. Para Thaís Reis, essa é a história da avó, Maria da Silva, de 76 anos: “Ela foi dona de casa praticamente a vida toda. Sempre manteve o lar impecável, fazendo de tudo por todos, principalmente pelo meu avô. Só que, de uns três anos pra cá, desenvolveu artrose, artrite e bursite nos membros superiores e inferiores. Com essas dores, ela não consegue mais cuidar da casa e, por isso, agora é meu avô quem faz tudo: cozinha, dá remédio, ajuda a tomar banho, etc. E ela se sente culpada de vê-lo fazendo tudo isso.”
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Já Ana Gabriela se lembra da mãe. Mesmo sendo de uma geração diferente, Márcia Onisto, de 46 anos, ainda repete o padrão: “Quando eu nasci, minha mãe desenvolveu depressão pós-parto”, começa a jovem. “Depois, com o fim da licença maternidade, ela voltou a trabalhar como professora, enfrentando a vida de mãe, esposa, profissional, filha e tudo sozinha, na maior parte do tempo, por morar na zona rural. Isso foi sobrecarregando e desgastando ela”.
Apesar de parecida com as histórias de Fátima e Maria, o relato de Ana Gabriela sobre a mãe termina de um jeito um pouco diferente: “Hoje, ela busca ajuda em tratamentos com a psicóloga e psiquiatra. Várias vezes tentou evitar o uso de medicamentos, achando que daria conta de tudo sozinha, mas a água transbordou do pote.”
O MODUS OPERANDI DA SOBRECARGA
Nas redes sociais, e em rodas de conversa, se tornou cada vez mais comum a percepção de que o mundo todo parece exausto, com baixa bateria social, fazendo terapia e se medicando. No entanto, este debate é muito mais antigo do que parece, e insiste em excluir alguns grupos sociais, pessoas mais velhas e o próprio contexto atual.
Para a psicoterapeuta Priscila Sanchez, esse padrão é mais uma questão de desigualdade de gênero do que de “está todo mundo cansado”, visto que falar sobre a história da divisão de tarefas domésticas é algo muito recente. “As mulheres chegam a gastar quase o dobro de horas nisso do que os homens, é uma realidade que os dados comprovam”, destaca, ressaltando que o adoecimento feminino é mais frequente do que se imagina.
Tudo culpa de uma desigualdade muito grande nas relações heterossexuais, pois as mulheres crescem com a ideia de que elas têm que fazer tudo, e da forma mais perfeita possível. Priscila, inclusive, percebeu esse padrão durante seus atendimentos. “Quando você escuta cinco mulheres em um dia e as cinco estão falando sobre sobrecarga, tem alguma vivência comum. E isso não se dá pela história de vida de cada uma, mas sim por como somos socializadas desde pequenas, a estarmos preocupadas com o outro, e nunca com nós mesmas”, conta.
ADOECIMENTO
Apesar de predominante, a ansiedade é apenas um dos sintomas físicos da sobrecarga mental. Enxaqueca, adoecimento de pele e alergias de estresse ainda são muito observáveis. “O sono é outro grande indicativo, pois, como a cabeça não para, existe dificuldade para dormir ou mesmo insônia. A pessoa fica ansiosa, começa a listar tudo o que precisa fazer e tem dificuldade mesmo para desligar”, lembra Priscila.
Além disso, a psicoterapeuta adiciona a esta lista as oscilações de peso e de hábitos, pois muitas descontam esse estresse todo em algum tipo de compulsão: “Não só na comida, mas também no álcool, nas redes sociais ou em qualquer coisa que faça essa mulher sentir prazer. Como a rotina estressa e desgasta, ela vai recorrer a algo que a faça ter prazer rápido, podendo gerar compulsão.”
Segundo Priscila, esse estresse também vai permear os relacionamentos da pessoa, que vai ficar mais irritada, tanto na relação amorosa quanto na com os filhos. “Outro sinal é o próprio isolamento, quando não existe mais uma vida social tão ativa quanto antes. São vários sinais observáveis de que as coisas não estão caminhando muito bem e que ela precisa buscar ajuda”, avalia.
COMO SAIR DESSA?
O adoecimento é gradativo e, muitas vezes, imperceptível, já que a sociedade maquia o abuso sobre as mulheres com falácias que ouvimos desde meninas. Com isso, a tendência é acreditar que vamos dar conta de tudo. “A sociedade ensina que as mulheres são fortes e guerreiras. Então, muitas vezes, essa mulher só chega ao consultório quando nem mesmo ela entende o porquê de ter adoecido, já que é algo tão normalizado e faz tão parte da nossa cultura”, explica Priscila.
A solução para esse problema é tão difícil quanto reconhecer que existe algo errado: “A sobrecarga é uma demanda muito difícil, porque a psicoterapia vai orientar que essa mulher delegue responsabilidades, que saiba distribuir melhor as demandas e que desacelere. E nem sempre isso é tão fácil ou tão possível assim”, comenta Sanchez, sobre a barreira do trabalho fora de casa.
Mas a terapia também vai propor que essa paciente avalie os próprios relacionamentos dentro de casa: “Vamos analisar se é algo saudável, porque nem sempre elas entendem que estão em uma relação tão desigual, muitas vezes até abusiva, onde existe um homem se aproveitando muito disso. Assim, podemos fazer duas coisas: avaliar as relações que ela tem, e essa proposta de desacelerar, de ela saber filtrar as obrigações.”