Responda rápido: quantas vezes você já brigou com seus filhos por achar que estavam com alguma atitude infantil? E quantas vezes não comparou comportamentos absolutamente normais para crianças com o que um adulto faria na mesma situação? Sim, todas nós já fizemos isso em algum momento. O nome disso é adultismo e, sim, precisamos falar sobre isso.
“O adultismo estrutural é o abuso de poder de adultos sobre a criança; assim como no racismo é o abuso de poder de branco sobre negros; no machismo, de homens contra mulheres; de ricos, contra pobres. É um abuso de poder mesmo”, comenta a pedagoga Maya Eigenmann, que é pós-graduanda em neurociência e desenvolvimento infantil e em educação positiva.
Ela conta que, embora seja pedagoga, só começou realmente a respeitar e defender a infância após perceber o tanto que era desrespeitosa com os seus próprios filhos. “A educação positiva entrou na minha vida pra abrir os meus olhos, tirar as vendas mesmo dos meus olhos e me desconstruir pra me tornar uma pessoa melhor para as minhas crianças e, consequentemente, pra mim e pro mundo”, lembra.
Para Maya, a criança é vista como uma posse do adulto, a quem já nasce devendo respeito. “Não tem como eu chegar pra uma amiga e falar assim: você tem que respeitar essa minha outra amiga, tá? Eu quero que você respeite a partir de agora. Respeito é uma coisa construída. Agora, com as crianças não. Já nasce devendo esse respeito, e a gente acha que ela nos deve respeito gratuitamente, sendo que é uma coisa que não conseguiríamos cobrar de outros adultos, porque simplesmente não faz sentido”, diz.
E, na coluna de hoje, vamos conversar com Maya para saber um pouco mais, atrás de dicas de como praticar uma educação respeitosa com nossas crianças.
Um dos exemplos que você usa é sobre não obrigar a criança a comer algo que não queira, enquanto adultos podem selecionar o que querem. Os responsáveis, porém, se preocupam sobre ensinar desde cedo a comerem corretamente para balancear as necessidades da criança. Como fazer isso e respeitá-las ao mesmo tempo na hora de comer?
Maya Eigenmann: Quando eu falo sobre não obrigar a criança a comer, tem muito mais a ver com a questão da quantidade de comida, né? Da gente colocar uma pratada e achar que a criança tem que comer muito porque a gente acha que o tanto que ela quer comer seja pouco. Agora, em termos nutricionais, do tipo de comida, temos que entender que se eu, adulto, tenho uma alimentação balanceada, eu promovo alimentação saudável para mim, então, a criança, naturalmente, também vai se adaptar a isso. É o que o ambiente oferece que a criança vai entender o que é bom pra ela. Então, eu preciso entender que o exemplo vem de mim.
Agora, se a criança está o tempo todo seletiva ou o tempo todo dizendo “não, não quero, não; não vou comer; não isso; não aquilo”. Aí, já se tornou uma comunicação. O que que eu quero dizer com isso? Essa criança, que se opõe o tempo todo não só em relação à comida, mas banho, escovação de dente, tarefas, está falando e está se comunicando sobre a relação que ela tem com esse adulto. Ela está tentando colocar limites no adulto através dessas atividades corriqueiras. No fundo, o que essa criança pode estar querendo dizer é: “Você está sendo duro demais comigo. Você não está me escutando o suficiente, você não está me ouvindo o suficiente”.
E, aí, mais uma vez, vemos o adultismo porque se um adulto sempre manda no outro, esse outro vai começar a se opor também. Quer dizer, entre adultos é normal e esperado, mas a criança não, a criança teria que estar ali todo dia comendo tudo, escovando os dentes direitinho, todos os dias tomando banho. A gente não consegue entender que ela está só refletindo o que está recebendo também. E ela vai fazer isso com os recursos que tem porque não tem cérebro desenvolvido, mas está ali do jeito dela, colaborando pra essa relação.
Atualmente, a sociedade já entende que não se deve obrigar uma criança a abraçar ou cumprimentar quem não queira. Entretanto, muitos ainda continuam insistindo nesse hábito. O que você diria para esses pais?
Maya Eigenmann: Para ser bem sincera, eu não concordo que a sociedade já entende que não devemos obrigar criança a abraçar ou cumprimentar quando ela não quer. Na minha opinião, a maioria dos adultos ainda acha que a criança é obrigada, inclusive com o argumento de que se não ensinar agora, vai crescer mal-educado, sem saber falar oi para as pessoas. O que os adultos precisam entender, porém, é que estamos lidando com filhotes da nossa espécie que estão em desenvolvimento. E sabe qual é a maneira dessa criança aprender sobre convívio social? É ter os pais como exemplos. Não é obrigando-a a cumprimentar.
Então, se eu, por exemplo, toda vez que encontro minhas amigas ou meus familiares, vou lá e dou um abraço, naturalmente esse aprendizado vai ser internalizado. O que os adultos não compreendem é que nada se aprende positivo na base da força. É simples assim. Mas já ficamos desesperados quando a criança de dois, três anos não cumprimenta, pensando que vai virar um adulto que não sabe conviver em sociedade. Somos muito precipitados, quer antecipar os processos, mas a criança vai aprendendo no tempo dela.
Precisa confiar. Assim como eu não tenho como apressar uma criança aprender a andar, não tem como eu apressar uma criança aprender a falar, ela tem o seu tempo e, conforme receber esse aprendizado pelo meu exemplo, inevitavelmente vai aprender também esses convívios sociais.
Agora, se o outro adulto não está conseguindo respeitar, aí eu, que sou a responsável pela criança, vou ter que colocar limites: “Só dá um tempinho porque ele ainda está se acostumando, ele não te conhece tão bem ainda assim”. E aí vem uma outra questão: muitas das vezes, nós estamos mais dispostos em acomodar as necessidades dos adultos, que já tem cérebro maduro, do que olhar pra criança, que é filhote e que ainda não tem cérebro maduro, ou seja, a criança paga o preço por ser criança, porque os adultos têm expectativas irreais sobre a própria criança. Às vezes, eu acabo até sendo, por exemplo, violenta com o meu próprio filho, obrigando-o a cumprimentar porque eu tenho medo da reação do outro adulto, por ficar constrangida, porque aí eu não posso incomodar os outros, né? Então, a criança acaba pagando o preço por algo que nem deveria ser esperado dela, na verdade.
Muitos confundem educação respeitosa com permissividade. Qual é a diferença na prática?
Maya Eigenmann: Permissividade é você terceirizar a sua responsabilidade de adulto para a criança. Então, você coloca nas mãos dela a tarefa de se responsabilizar pelas próprias atitudes dela. Pelo bem-estar dela, pela saúde dela. Ela precisa ser vacinada e não quer? Mas não tem como a criança ser responsabilizada por algo tão importante como uma vacinação. Não tem como, por exemplo, só tomar leite com Toddy, porque não tem como uma criança se responsabilizar pela própria nutrição. Essa responsabilidade é dos adultos. Por isso que a ordem é que o adulto que tem cérebro maduro, que tem experiência de vida, que tem conhecimento, vai cuidar da criança.
Então, educação positiva não tem nada a ver com permissividade, pelo contrário, na educação positiva o adulto se responsabiliza o tempo todo, inclusive dos próprios erros, das próprias explosões, das próprias pisadas na bola. Tem muito a ver com a autorresponsabilidade. Jamais terceirizamos as nossas responsabilidades e, às vezes, as pessoas confundem educação positiva com permissividade porque acham que educação positiva é você ser mole, né? Eu falo até que educação positiva dá um trabalho do caramba, principalmente porque não fomos educados assim. Requer muito comprometimento, muita responsabilidade, muito estudo. Coisa que a permissividade, por exemplo, não requer de forma nenhuma.
Há pessoas que acham que, permitindo tudo, a criança aguça a criatividade. Outras que quando se é permissivo demais, criam-se indivíduos sem limites. Fale sobre isso.
Acredito que essa frase vem um como um subtom do autoritarismo. Na minha opinião, você permitir que a criança aguce a criatividade não é permissividade. Como o adulto responsável, você precisa proporcionar, sim, o maior número de experiências possíveis de muita liberdade, de muita exploração para criança ter esses aprendizados. E isso não é permissividade, mas sim entender que é um processo necessário para o desenvolvimento infantil, tanto quanto ela comer, quanto beber. Então, essa pergunta, quando ela vem com esse ‘permitindo tudo’, eu a acho um pouquinho tendenciosa, porque somos tão castradores com as crianças que acreditamos que, se eu abrir um pouquinho, já estou caindo na permissividade.
Não, você não vai permitir coisas que sejam perigosas, mas, do resto, dificilmente eu consigo imaginar algo que não seja válido de eu permitir a criança fazer para ela ter a liberdade de explorar. Aqui é muito uma questão de avaliar o motivo de estar falando para a minha criança que ela não pode fazer tal coisa. Isso coloca ela em perigo? Estou terceirizando a minha responsabilidade? Então, vem muito de uma autorreflexão. Porque, sim, eu preciso permitir muitas experiências para essa criança poder explorar sua criatividade e conhecer sobre o mundo.
Agora, outras pessoas dizem que ser permissivo demais cria um indivíduo sem limites. Sim, isso é o que acontece com a permissividade, quando deixo a criança realmente sem uma noção de limites, mas não estou falando agora de limite em termos do autoritarismo, que vem muito desse lugar da criança não poder fazer nada, de sufocamento. Falo muito de limites no contexto de respeitar o limite pessoal e o de outras pessoas. Por exemplo, se nós temos duas crianças ali e elas estão brincando e aí uma criança pega o brinquedo que estava à disposição, aí a outra criança vai lá e quer arrancar o brinquedo da mão dessa primeira criança. Permissividade seria eu olhar pra essa cena e falar assim: ‘deixa que elas se resolvam’. O que é uma ilusão, porque crianças não têm habilidade cognitiva pra resolver problemas sozinhas.
É preciso ajudar a mediar essa relação, pois não existe esse negócio de deixar a criança resolver o problema sozinho.
Neste contexto, vou mediar essa relação sustentando, por exemplo, o limite individual dessa primeira criança que pegou o brinquedo. Não posso deixar que a segunda criança arranque o brinquedo da mão dela, certo? Não é justo. E aí eu vou precisar sustentar o direito da primeira criança usar o brinquedo. É tipo assim: se uma criança está no balanço, a outra não pode chegar lá e empurrar essa criança pra usar o balanço. Ela tem que esperar sua vez. Só que é difícil para as crianças esperarem a sua vez. É difícil para as crianças entenderem que a outra criança deseja a mesma coisa. É complicado pra criança entender isso.
Justamente aí que entra o adulto, que precisa ter o pensamento de entender que essas crianças não tenham maturidade pra compreender ainda sobre limites individuais, eu entendo que essas crianças desejam o mesmo brinquedo, e elas não são obrigadas, a saberem respeitar uma à outra ainda, porque são seres em desenvolvimento; então, eu vou precisar sustentar esse limite. Isso significa que vou precisar garantir que essa primeira criança use esse brinquedo até ela não querer mais, ajudando a segunda criança a esperar sua vez. Sim, ela vai chorar, ficando chateada e frustrada, então serei o adulto que vai acolher essa criança. Na educação positiva, limite é nesse sentido, de eu ensinar os meus filhos, as minhas crianças a respeitarem os limites dos outros desse lugar de muito respeito, justamente pela individualidade, não pelo egoísmo. Para cada criança entender que cada uma tem seu espaço, o meu trabalho é ensinar isso pra ela.
Por um lado, você fala sobre o problema do adultismo, mas por outro sobre o senso de responsabilidade. Como ensinar senso de responsabilidade para crianças sem que, de alguma forma, não coloquemos esse “peso” do adultismo neles? Fale sobre isso.
Maya Eigenmann: Obediência é quando um adulto está dirigindo, vê uma placa com um limite de velocidade de cinquenta quilômetros por hora. Aí, o adulto, que aprendeu a ser obediente, vai ter duas reações: ou continuar andando na velocidade que ele estava porque não tem polícia observando, ou, então, ele vai olhar se tem algum radar e pensar assim: “se tiver um radar, eu vou levar uma multa. Então, é melhor eu desacelerar”. Criado no adultismo, a criança obediente que se tornou adulto obediente porque ou tem um fiscal ali vigiando ou vai ter uma consequência. Agora, a responsabilidade funciona diferente.
Quando esse adulto vê essa placa, ele entende que talvez, logo aqui na frente, tenha alguma curva, alguma obra, sendo mais seguro andar a cinquenta por hora. Ele não precisa de uma consequência e nem de um fiscal para respeitar essa lei. Aí está a diferença entre respeitar a lei e obedecer a lei. E como que a gente desenvolve esse senso de responsabilidade, né? Uma coisa simples é explicar os motivos das nossas tomadas de decisão com as crianças. Então, o que precisa ser feito? Por que precisa ser feito? Qual o motivo da nossa decisão?
Exemplo: a criança precisa escovar os dentes. Por que precisa escovar os dentes? Porque eu estou mandando. Não, não é porque eu estou mandando. É porque é uma questão de higiene pessoal.
Quando eu cuido dos meus dentes, garanto que eles fiquem saudáveis por muito tempo. Então, melhor sempre explicar para a criança internalizar esses motivos e se tornar autônoma quanto a isso. Se eu sempre sou a pessoa que manda, essa criança vai estar sempre esperando que eu a mande fazer. Mas quando desenvolvo o senso de responsabilidade conforme for amadurecendo, ela vai conseguir tomar decisões que são justas, e quando não forem justas, vai questionar. Isso é impagável.
Hoje, há locais em que crianças não são permitidas, por buscarem silêncio ou tranquilidade para casais, pessoas sem filhos etc. Mas, muitos pais se sentem ofendidos e chateados por perderem oportunidades de frequentar espaços que gostariam. Qual é o ponto de equilíbrio nesses casos?
Existem locais que não são mesmo adequados pra crianças, como boate e lugares noturnos. Do resto, porém, acho um grande problema os adultos impedirem o acesso, pois impede o acesso da família, porque muitas mães não têm rede de apoio. Assim, quando excluímos a criança, excluímos essa mãe também, o que é muito complicado. O certo seria esses lugares, por exemplo, colocarem uma brinquedoteca para as crianças poderem ficar lá brincando e as famílias ficarem sentadas perto.
Um exemplo são as pessoas que fumam, que têm um espaço do lado de fora, apesar de nenhum lugar falar que fumantes não são bem-vindos. E fumar é muito mais perigoso. Não acho que crianças sejam ruins, e pra essas pessoas têm coisas muito piores que elas toleram, mas aí a criança não é permitida de entrar nos lugares. É muito sério esse assunto e é o cúmulo do adultismo. Que direito que os adultos acham que tem de excluir o membro mais vulnerável da sociedade? De onde vem essa arrogância de acharem que podem excluir pessoas da sociedade? Então, isso é um discurso muito tóxico e muito perigoso.
Rompantes de raiva são comuns nas mães e pais na hora de educar. Como não perder a cabeça quando o filho “não colabora” e as crises de birra se estendem?
Maya Eigenmann: O que a gente precisa entender nessa questão de rompante de raiva dos adultos é que, quando estou escasso emocionalmente, acabo descontando nos meus filhos ou nas pessoas que estão perto de mim. Então, o antídoto disso é eu estar abundante emocionalmente, o que significa que eu preciso cuidar do meu autocuidado. E quando falo de autocuidado não é de autocarinho. O autocuidado é eu cuidar para que eu esteja abundante emocionalmente o máximo possível dentro da minha realidade, né? Só que o problema é que a gente vê muito essa questão de autocuidado como um luxo. O autocuidado significa você estar alimentado emocionalmente, é a mesma coisa de você comer comida e tomar água para seu corpo. É impossível que você fique dias sem comer comida. Não existe isso.
E a mesma coisa em relação às emoções. Estamos sobrevivendo, descarregando a raiva e nossas frustrações nos nossos filhos, porque não estamos alimentando de alto autocuidado. Se nós, adultos, não entendermos que os nossos excessos de raiva vêm desse lugar de escassez emocional, continuaremos descarregando nas nossas crianças. E como é que a gente cuida disso? São vários caminhos. Terapia, ter grupos de amizade que me preencham com quem eu sinto, pessoas de confiança pra eu desabafar, uma rotina, contato com a natureza, qualquer atividade que envolva ritmo, que tenha música, treinos. Precisamos ter a seguinte mentalidade em relação ao autocuidado: se eu não nutro, se eu não me alimento das minhas emoções, eu vou estar escassa, e não vou ter o que dar para os meus filhos.
Como, na prática, uma mãe que chegou ao seu limite consegue se transformar em uma mãe mais próxima dos seus filhos? Fale sobre isso.
Eu só consigo me aproximar dos meus filhos quando estou abundante dentro. Se eu estou escassa, drenada, e seca por dentro, não vou conseguir dar. Eu não tenho nada pra dar, preciso cuidar do meu autocuidado, né? Eu preciso encontrar amigas, desabafar com elas, preciso ter esse olhar pro meu autocuidado, porque, sem ele, não vou conseguir realmente me tornar “uma mãe mais próxima”, porque não vou querer. Se eu estou no meu limite, eu quero ficar sozinha. Não vou conseguir transbordar pro outro.
Em linhas gerais, como as redes sociais atrapalham o maternar e a educação positiva? Celebridades que falam de um maternar impossível? Mulheres que ainda colocam toda a responsabilidade em cima de mães? Fale sobre isso.
Maya Eigenmann: Na minha opinião, quanto mais a pessoa se aprofunda na educação positiva, menos se deixa levar pelos discursos enganados, seja sobre a impossibilidade do maternar, seja dessa história de ‘tudo é a mãe”. Quanto mais nos aprofundamos, menos esses discursos existem, sabe? Menos nos deixamos levar, porque isso daí tudo é discurso enganado, é cada um falando da própria dor sem olhar para o contexto da criança, sem olhar para o que a gente não cuida do autocuidado, sabe? Sem olhar pra todas as questões que a gente precisa cuidar. Não que não seja importante falar sobre cansaço e tudo, mas, novamente, quando você tem todo o embasamento da educação positiva, se aprofunda também no que está causando o que está acontecendo na nossa vida. Não nos deixamos mais levar. E tudo bem, é difícil, mas eu não preciso ser perfeita. Então, acredito que esses discursos vão muito se desfazendo. Eles vão se afastando porque não fazem mais sentido.
Você fala sobre a questão dos pais pedirem desculpas. Como equilibrar o fato de ter errado e o medo do filho “se aproveitar” disso (muitos adultos de hoje entendiam que eram superiores a seus pais, quando estes assumiam seus erros)?
Maya Eigenmann: Eu amo essa pergunta, pois gosto de trazer uma reflexão a respeito dos adultos acharem que a criança vai se aproveitar do pedido de desculpas. Se nossos pais ligassem agora e falasse: “Filho, te peço desculpas por todas as vezes em que bati em você, por todas as vezes em que achei que tinha o direito de te machucar, pois achava que assim te ensinaria alguma coisa. Eu te peço desculpas por todas as vezes em que gritei com você, não confiei, não te escutei e mandei em você. Por todas as vezes em que te ignorei e castiguei. Você não merecia isso. Te amo e peço desculpas”. Ao ouvir isso, a gente gostaria de se aproveitar dos nossos pais ou se sentiria aliviado e com mais vontade de se conectar?
Essa ideia de se aproveitar das desculpas vem muito da nossa própria infância, né? Não está no nosso DNA acreditar que, quando a gente pede desculpas, alguém vai se aproveitar disso. Assim, essa ideia do “meu filho vai ficar se achando”, tem muito a ver com o jeito como nossos pais lidavam com os próprios erros e com os nossos pedidos de desculpas. O pedido de desculpa para nós, filhos,não era sinônimo de alívio, porque a gente continuava pagando o preço. A projeção nos nossos filhos vem da nossa própria experiência com os nossos pais.
É possível ser amiga dos filhos sem que eles confundam a relação? Por exemplo: a criança achar que por sermos parceiros e amigos, tem a mesma intimidade que há com o coleguinha e, por isso, não respeitar mais, gritar mais…
Maya Eigenmann: Essa ideia de que com muita liberdade vão se aproveitar vem das nossas experiências na nossa infância. De ver eles jogando na nossa cara algo que contamos para ele. Por isso que, hoje em dia, os adultos acham que precisam ser superiores aos filhos porque, se não, estarão colocando em risco essa hierarquia. Essa é uma projeção que a gente tem da nossa própria história. E, outra coisa: às vezes as pessoas ficam com esse discurso que não pode ser amigo, porque os pais não serão levados à sério. Se acho que eu preciso ser duro com os meus filhos para me respeitarem, então não entendi nada. Quem está confuso são os adultos. As crianças não confundem nada.
Muitos pais entendem que hierarquia é fundamental para que as crianças entendam que precisam obedecer regras sociais. Isso é mesmo fundamental?
Maya Eigenmann: Os pais que ainda acham que precisam ter hierarquia foram crianças muito feridas, que acreditam que precisam deter o poder para as coisas funcionarem. São adultos que funcionaram assim na própria infância e têm medo de abrir mão desse lugar, né? Quem sou eu se não tiver detendo o poder? ‘Nossa, mas meus filhos vão se aproveitar de mim’. Olha que criança ferida é essa dentro desses adultos, que precisa que os filhos estejam subordinados.
O índice ne natalidade em todo o mundo está descendo. Você acredita que isso aconteça porque as pessoas estão realmente pensando se podem ser pais (quando digo pais, me refiro a estar pronto para educar um filho)?
Maya Eigenmann: Não estou tão por dentro das estatísticas, mas vi um artigo falando sobre uma diminuição. Toda vez que leio algo assim, sempre relaciono ao fato de que as mulheres estão decidindo ser mães mais velhas. Talvez um filho somente. Não tenho certeza se é um fato e não acho que seja porque as pessoas estejam pensando se podem ser pais, não chegamos a esse nível de maturidade na nossa sociedade. Eu acho que ainda é um discurso em construção. Agora sobre a segunda parte da pergunta, eu não acho que todo mundo dá conta de ter filhos não.
Na minha opinião, a maioria dá conta de ter dois ou nenhum filho. Essa é a verdade e não só em termos de competência. E quando falo de competência é por causa de traumas mesmo, nós somos tão machucados, tão feridos, que estamos escassos emocionalmente. Não penso que todo mundo tem condições de provar para uma criança o que ela precisa, de fato, mas o que eu acho que precisa acontecer é ter mais políticas públicas, mais conversa sobre isso, dand maior liberdade para a pessoa se sentir confortável em não ter filhos, porque tem uma cobrança muito grande na sociedade, né? Também acho que é muito importante que nós, como pais, tenhamos a consciência de nunca cobrar netos dos nossos filhos, porque essa é uma escolha 100% deles.
Você acha que qualquer mulher e homem podem ser bons pais? Explique.
Maya Eigenmann: É um uma ilusão nossa achar que seremos a mesma pessoa depois dos filhos, pois é um renascimento. O livro da Clarissa Picola, que se chama ‘Mulheres que Correm com os Lobos’, fala sobre o processo de vida e morte da maternidade, que perdura a nossa vida inteira. Um ciclo que se encerra e depois começa um ciclo novo, que se encerra depois e começa um novo, e por aí em diante. O que a gente poderia dizer para mães que pensam em ter filhos ou as que estão gestando ou as que estão na fila de espera de uma adoção? Não insista em ser a mesma pessoa de antes da maternidade. Eu sou uma pessoa diferente e posso ser uma pessoa maravilhosa sendo essa pessoa nova.
É uma pergunta batida, mas necessária: como não abandonar nossa essência quando nos tornamos mães?
Maya Eigenmann: A gente conversa com o nosso parceiro sobre ter filhos ou a gente fica só na romantização. A gente prepara a nossa família para receber uma criança nesse sentido, a gente prepara uma rede de apoio. Eu sei que eu estou falando de uma coisa que quase não acontece, que a maioria de nós, mães, vamos nos atentar para isso depois que a gente se torna mãe. Como foi o meu caso também. Mas não acho que devemos deixar de trazer esse assunto de preparação consciente da maternidade, ou da paternidade, só porque a maioria não pensou. Para as futuras gerações, é muito importante que aconteça esse diálogo, inclusive sobre o estilo parental se o parceiro ou a parceira fala não que tem que bater, isso é um é um sinal vermelho.
Como é que vou insistir numa relação com alguém que fica falando que vai bater no filho? Essa pergunta é difícil, porque ela começa antes mesmo de ter filhos. O que foi a concordado? E discordado? O que que foi elaborado? O que que foi preparado? Enfim, precisa primeiro olhar para o antes, primeiramente. Tanto é que, no meu perfil, 98% das pessoas que me seguem são mulheres e não homens. Dentro da realidade que eu tenho, sempre trago essa questão que não dá para criar a realidade ideal, dá para criar a realidade possível dentro do que tenho aqui à disposição dentro da minha realidade.
O que eu quero trazer também é o seguinte: por que que a gente tem tanta dificuldade em criar uma rede de apoio? É possível achar que não existam pessoas na nossa proximidade que sejam boas suficientes para estarem conosco numa rede de apoio ou então não nos achamos bons o suficiente para estar com outras pessoas? Por que que a gente não se abre para novas relações para grupos de mães? Às vezes, nos apegamos muito na ideia de que rede de apoio tem que ser mãe, pai avô e irmão nossos. E tem amizades que são muito mais íntimas do que o relacionamento que temos com os nossos familiares. Mas a gente também tem medo de se abrir, eu acho que essa é uma questão importante porque não consigo vislumbrar a possibilidade de me conectar, de fazer novas amizades com outras pessoas.
A rede de apoio não cai do céu, é preciso construir. Eu acho que muitos de nós não temos essa consciência. Não posso achar que vou dar conta de ficar sozinha na maternidade, é preciso encontrar tribos, sim. E essa gente é uma responsabilidade. Enfim, é um assunto muitas vezes desafiador de olharolhar, mas precisa entender também que às vezes a gente também se coloca nesse lugar de ‘Ah, não consigo fazer amizade com ninguém. Não é possível não’.
Como lidar com a necessidade de ter autorresponsabilidade sobre as próprias ações e a relação com os filhos, quando o pai é ausente, não existe rede de apoio e a solidão materna parece um rolo compressor?
Maya Eigenmann: Eu amo essa pergunta. A educação positiva é sobre ser humano com os nossos filhos. Não vai fingir que a gente está sempre bem, sempre feliz, sempre de boas. Não. E o que precisamos fazer quando não estiver bem é explicar para os nossos filhos. Falar ‘eu estou triste porque me desentendi com uma pessoa e preciso chorar para colocar essa tristeza para fora. Naturalizar os nossos processos, e explicar o que está acontecendo é muito importante, porque nós somos humanos e seria muito pior fingir para os nossos que estamos sempre bem. Não é a realidade. Temos que ter muito muito cuidado com isso.
“Eu apanhei e não morri por isso. Que geração mais mimimi”. Como debater esse argumento?
Maya Eigenmann: Apanhei e não morria é como se a finalidade da infância fosse morrer e sobreviver, e não é. A finalidade da infância é ter muita abundância em segurança, proteção, abundância e em intimidade. A pessoa que fala isso é porque precisou aceitar a realidade escassa que teve na infância. Se a pessoa tem esse argumento e se vangloria, isso só significa que está muito machucada emocionalmente, infelizmente. Porque a infância não é feita pra sobreviver de jeito nenhum. Deveria ser a fase mais abundante da nossa vida.