Sair de um relacionamento abusivo é uma decisão que exige coragem. Ainda assim, para muitas mulheres, esse rompimento não encerra a dor — ele inaugura um novo desafio: reconstruir a autoestima, a identidade e a autonomia emocional. Quando a relação termina, o silêncio da casa pode escancarar uma sensação profunda de vazio. Muitas mulheres percebem que deixaram de se reconhecer fora daquele vínculo.
Esse cenário, infelizmente, é comum. Segundo a pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, realizada em 2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 37,5% das mulheres brasileiras — mais de 21 milhões — relataram ter sofrido algum tipo de violência nos últimos 12 meses. Entre os casos mais recorrentes estão insultos, humilhações e outras formas de violência psicológica, que afetam diretamente a autoestima e comprometem a autonomia emocional, mesmo depois do fim da relação.
O abuso psicológico atua de forma silenciosa
O abuso psicológico não deixa marcas visíveis, mas age de maneira profunda e contínua. Aos poucos, ele mina a confiança da mulher em si mesma, distorce sua percepção da realidade e enfraquece sua capacidade de decisão. Estratégias como gaslighting, culpa constante e controle afetivo fazem com que a mulher passe a duvidar de seus sentimentos, memórias e limites.
Segundo a terapeuta e advogada especialista em gênero Mayra Cardozo, esse tipo de violência cria uma falsa ideia de afeto. “O abuso emocional associa amor à obediência e ao silêncio. A mulher aprende que, para ser aceita, precisa se anular”, explica. Como resultado, a autoestima passa a depender do olhar do outro. Quando a relação acaba, o sentimento inicial raramente é de alívio — muitas vezes, surge o medo, a insegurança e a sensação de não saber mais quem se é.
Reconstruir a autoestima é um processo — e ele não acontece em linha reta
Reconstruir-se após um relacionamento abusivo não é um caminho linear. Há dias de avanço e outros de recaída, e isso faz parte do processo. No entanto, compreender que a violência vivida não define quem a mulher é representa um passo fundamental para recuperar a autonomia emocional.
O primeiro movimento é nomear o que aconteceu. Reconhecer que houve abuso rompe o ciclo da culpa e devolve clareza à própria história. “Enquanto a mulher acredita que foi culpada, ela continua presa à lógica do agressor. A cura começa quando a culpa dá lugar à lucidez e à autocompaixão”, afirma Mayra.
Além disso, reconstruir a autoestima envolve reaprender a confiar na própria percepção. O gaslighting rompe a conexão entre sentir e acreditar no que se sente. Por isso, cada vez que a mulher valida uma emoção, reconhece um incômodo ou estabelece um limite, ela fortalece sua autonomia e recupera o controle sobre a própria vida.
Corpo, limites e apoio: pilares da autonomia emocional
O corpo costuma ser o primeiro a adoecer em relações abusivas e o último a ser escutado. Após o rompimento, é comum que a mulher viva em estado de alerta permanente, com sintomas como tensão muscular, ansiedade, insônia e medo constante. Por isso, cuidar do corpo é parte essencial da reconstrução emocional.
Desacelerar, respirar com atenção, caminhar, dançar, descansar e permitir-se sentir prazer sem culpa ajudam a restaurar a sensação de segurança. Reconectar-se com o corpo é também um lembrete poderoso: você está viva, e viver vai além de apenas sobreviver.
Outro ponto central nesse processo é aprender a estabelecer limites. Dizer “não” pode causar culpa, especialmente para mulheres que foram ensinadas a agradar sempre. No entanto, o limite não afasta — ele protege. Cada limite respeitado fortalece a autoestima e reforça a identidade que o abuso tentou apagar.

Além disso, a reconstrução não acontece no isolamento. Conversar com amigas, buscar terapia e participar de grupos de apoio são passos fundamentais. A partilha quebra o silêncio, amplia a consciência e fortalece a autonomia emocional. Redes como o telefone 180, as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) e núcleos de gênero oferecem acolhimento e orientação. Sempre que houver risco, evitar confrontos diretos com o agressor é essencial.
Reconstruir-se após um relacionamento abusivo é, acima de tudo, um ato de liberdade. É um caminho de redescoberta, fortalecimento e reencontro com a própria essência.
Resumo: Reconstruir a autoestima após um relacionamento abusivo exige tempo, acolhimento e apoio. Ao nomear a violência, cuidar do corpo e estabelecer limites, a mulher fortalece sua autonomia emocional. Com redes de apoio, esse processo se torna mais possível e transformador.
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