Empresária, artista da dança, modelo, performer e uma das figuras mais marcantes do Carnaval paulistano, Ivi Mesquita herdou da mãe, Dona Rita — liderança comunitária e referência no samba — o amor pela cultura afro-brasileira, pelo trabalho e pela coletividade.
Iniciou sua trajetória profissional aos 9 anos e, aos 13, já era financeiramente independente. Com quase 30 anos de carreira, Ivi representa a potência da mulher negra brasileira, transitando com autenticidade entre os palcos, a avenida e os bastidores dos negócios.
Nascida no Ipiranga e criada em Itaquera, cresceu na Ala Afro II da Leandro de Itaquera, fundada por sua mãe e hoje liderada por ela, com mais de 35 anos de história. Ali aprendeu a usar a expressão corporal como linguagem e resistência.
Formada em Comunicação e Artes do Corpo pela PUC-SP, Ivi une samba, dança afro, hip hop e outras influências em sua arte plural. Descoberta aos 17 anos, estreou no Vai-Vai em 1997, conquistando reconhecimento pela intensidade de suas performances. Foi eleita Rainha do Carnaval Paulistano (2001) e Rainha de Bateria do Vai-Vai (2008 e 2009), além de brilhar como destaque da Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Hoje, continua rompendo barreiras no samba e enfrentando o etarismo com coragem e propósito. Sua presença é um ato político — de resistência, inspiração e transformação.
À frente da MIM Produções há 26 anos, promove eventos com identidade brasileira, atendendo grandes marcas como Nike e Johnson & Johnson. Também comanda, ao lado do marido, a experiência “Dance samba with a São Paulo Carnival Queen”, em parceria com o Airbnb, conectando turistas à essência do Carnaval.
Criou ainda um projeto que reaproveita fantasias de seu acervo no Vai-Vai para celebrar corpos reais e a força feminina, transformando memória em empoderamento. Como empreendedora da moda, fundou o Bazar Estilo Ivi, incentivando a moda circular com estilo e consciência.
Em 2024, estreou como Mestre de Cerimônias no Réveillon da Paulista e, em 2025, participou da Virada Cultural, apresentando grandes nomes da música no palco de Itaquera. Também foi mediadora no evento Encontro com a Corte do Carnaval de São Paulo, no Sesc, reforçando sua atuação como voz ativa da cultura afro-brasileira.
Confira agora a entrevista exclusiva:
1. Você cresceu dentro do samba e da cultura afro-brasileira. Como essa vivência influenciou quem você é hoje como artista e mulher?
Minha base vem da minha mãe, uma mulher visionária, forte, uma verdadeira liderança comunitária. Foi ela quem plantou as primeiras sementes em mim, ainda nos anos 80, quando criou grupos culturais dentro da Igreja Católica, no ano do centenário da abolição levando arte, música e consciência para dentro da fé, para dentro da comunidade. Cresci vendo isso acontecer bem diante dos meus olhos e me formei ali: entre tambores, danças, reflexões e orações que tinham o som da nossa ancestralidade.
Aos 15 anos, o samba entrou na minha vida como um reencontro, como se eu tivesse descoberto uma parte de mim que sempre esteve ali, só esperando o momento certo para se revelar. O samba me ensinou a viver em grupo, a respeitar o tempo dos outros, a aprender com os mais velhos, disciplina, compromisso e o valor de estar presente.
Muita gente ainda olha o samba com um olhar raso. Mas ele é família. É comunidade. É alegria que acolhe, que cura, que ensina. É ali que você aprende a se defender, a se posicionar, a ser quem é com coragem e depois voltar pra casa com o coração mais leve, pronta pro que vier.
Foi nesse universo que nasceu a artista que habita em mim. E a passarela do samba se tornou meu maior palco, meu templo, meu campo de batalha e minha zona de criação. Até hoje, é ali que me lapido e me transformo.
Com o Grupo Afro II, que surgiu no coração dessa mesma comunidade, aos fins de semana, criamos um espaço onde a potência dos nossos corpos e vozes se manifestava sem pedir licença. Ali, entre os nossos, nos reconhecíamos. Vivíamos numa bolha de autenticidade e beleza, onde, mesmo diante das adversidades, havia alegria, força e arte pulsando. Foi nesse caldeirão de ancestralidade e coletividade que me formei como artista, como mulher preta e como ser político.
2. Sua trajetória no Carnaval é marcada por performance, ousadia e representatividade. O que o Carnaval significa para você hoje?
O samba e o Carnaval são pretos. E isso não é só história: é a minha existência, a minha verdade. É estar inteira, com toda a minha autenticidade, simplesmente existindo e ocupando com o meu corpo, espaços que sempre foram e continuam sendo de resistência e ousadia.
O Carnaval é o lugar onde entrego meu ser mais genuíno. É onde a arte pulsa, onde a ancestralidade se veste de brilho, onde cada passo é memória e cada gesto é política. Ao longo dos anos, vi o Carnaval se transformar, mas também resistir e é nesse movimento que a mulher negra reafirma seu lugar: não apenas como musa ou alegoria, mas como força criadora, liderança e potência.
Para mim, o Carnaval é mais que festa: é ato, é voz, é território. É a avenida onde eu celebro quem sou e, ao mesmo tempo, luto para que os meus sejam sempre vistos, respeitados e lembrados.
3. Você transita entre arte e empreendedorismo com muita autenticidade. Como nasceu a MIM Produções e o Bazzar Estilo Ivi?
A MIM nasceu de um desejo de me incluir e me fortalecer no que faço de melhor: conectar pessoas. Produtores de elenco, grandes agências e diretores sempre me procuravam, pedindo casting com pessoas responsáveis e autênticas, capazes de traduzir a arte de forma escancarada, seja em publicidade, seja em eventos. Eu, sempre atenta e com uma rede enorme de contatos de diferentes perfis, indicava nomes que se encaixavam perfeitamente. Até que, um dia, decidi profissionalizar esse movimento natural e assim nasceu a MIM Produções.
Já o Bazar Estilo Ivi nasceu da minha inquietude.Eu olhava pro meu guarda-roupa e via tanta coisa parada… Peças novas, pouco usadas, lindas, histórias inteiras ali guardadas. Em 2014, juntei cinco amigas e fizemos um troca-troca no salão de festas. Foi um sucesso. O Bazar cresceu, virou evento mensal, virou plataforma de encontro entre mulheres empreendedoras. Passou a incluir não só roupas e calçados, mas também móveis, eletrônicos, experiências. Mas mais do que isso: virou um espaço de troca afetiva, onde cada peça tem história, cada conversa é uma possibilidade de encontro, e cada evento é um lembrete de que consumo pode sim ser consciente, afetivo e coletivo.
4. O etarismo ainda é um desafio em muitos espaços. Como você tem lidado com isso no samba e qual mensagem deixa para outras mulheres?
Estar presente é, por si só, um ato político, de resistência— especialmente para nós, mulheres que desafiamos o etarismo. No samba, minha presença tem esse lugar demarcar território com o meu corpo em movimento, com a minha voz e com minha história. Me manter ativa, no meio do samba, do brilho, da juventude, é também um ato político. É dizer: “eu ainda estou aqui, com toda a minha vivência, beleza e sabedoria”.
Às mulheres que me leem, que se veem em mim, deixo uma mensagem: não deixem de fazer o que amam ou sonham. Procurem meios de estar onde desejam, sem medo de ocupar espaços. Mantenham-se atentas ao novo, abertas a novas linguagens e próximas das novas gerações. Isso renova, traz frescor à forma de se comunicar, mas não significa perder a sua essência.
Resistir também é se adaptar, é dançar entre o passado e o presente, carregando consigo a potência de quem sabe de onde veio e para onde quer ir.
5. Seu trabalho também tem um forte impacto social. Como você enxerga o papel da arte na transformação e valorização das identidades?
A arte salva. É meu norte, sempre foi. Ela te dá esperança, fortalece sua identidade e abre espaço para o lúdico, aquele lugar onde tudo é possível. Ela expande a criatividade, e uma pessoa criativa pensa fora da caixa, ilumina a si mesma e transforma o mundo ao seu redor. O incentivo de quem está por perto é fundamental, porque é assim que formamos artistas e multiplicadores de cultura, arte e beleza.
Eu enxergo infinitas possibilidades de reaproveitar o que muitos chamam de obsoleto para dar nova vida e significado. É o que faço, por exemplo, no projeto Memórias da Alegria, onde fantasias de quase 30 anos de trajetória ganham novos corpos e novas histórias. Vejo hoje meninas, filhas das passistas que sambavam comigo nos anos 90 e 2000 desfilando com as roupas que fizeram mnha história no Carnaval. É um ciclo lindo de afeto, de memória, de continuidade.
Gosto de pensar nesse processo como o Sankofa: um símbolo da cultura Akan, de Gana, que nos lembra que “não é errado voltar para buscar o que se esqueceu”. É entender que o passado não é peso: é raiz e, que aprendemos com ele para construir um futuro mais consciente e próspero, valorizando nossa memória e identidade cultural.
Também mergulhei na moda circular e na sustentabilidade, através do Bazar Estilo Ivi. Nele, roupas, acessórios e objetos ganham novas histórias. Mais do que consumo, é memória coletiva que se veste, que circula, que cria uma egrégora forte. E, nessa roda, formamos indivíduos capazes de amar a si mesmos por quem são e por suas histórias.
Hoje, digo: mantenha-se em movimento. Quando você coloca o pé, os caminhos se abrem. É nesse movimento que estou desbravando novas formas de comunicar samba e Carnaval, levando minhas vivências, minha corporeidade e meu jeito único de ser Ivi Mesquita para o mundo.
Fui convidada pelo Airbnb Experience para ensinar pessoas de diversos países a conhecerem o Carnaval sob o ponto de vista da musa, soltando o corpo e encontrando sua melhor versão de samba e alegria. Não é sobre técnica. É sobre presença. Sobre deixar o corpo falar e com esse projeto levo essas vivências para o mundo.
Mas digo isso tudo, para no fim das contas, dizer que tudo o que faço parte do mesmo lugar: amor pelo que sou, pelos meus e pelo poder transformador da arte em todas as suas formas.