A nova versão da novela Vale Tudo trouxe um momento que escancarou uma ferida antiga da sociedade brasileira: o racismo estrutural. Na cena exibida no capítulo de segunda-feira (19), a vilã Odete Roitman (Débora Bloch) surpreendeu a irmã Celina (Malu Galli) ao apoiar o namoro do filho com Fátima (Bella Campos), uma mulher preta. Mas a justificativa para essa mudança de postura revela que, mesmo quando há aceitação, ela pode vir carregada de preconceito.
“Ela nem é tão preta assim”, afirmou Odete, sem nenhum pudor. A fala impacta porque representa um tipo de comportamento infelizmente comum: o racismo disfarçado de pragmatismo, quando pessoas negras são aceitas em determinados espaços apenas se forem “boas funcionárias” ou “obedientes”. Essa lógica perversa, como mostra a própria personagem, ainda seleciona quem pode ou não pertencer à elite — inclusive na ficção da novela das nove.
Dados da vida real escancaram o impacto do racismo cotidiano
Embora o comentário de Odete Roitman seja ficcional, ele encontra respaldo em dados reais. Uma nova pesquisa nacional da série “Mais Dados Mais Saúde”, conduzida por Vital Strategies e Umane, com apoio do Ministério da Igualdade Racial, revelou que 84% das pessoas pretas no Brasil afirmam já ter sofrido discriminação racial em atividades cotidianas. Ou seja, a fala da personagem representa, de forma simbólica, o que milhares de brasileiros enfrentam diariamente.
Além disso, o estudo mostra que a raça é a principal razão atribuída à discriminação. Pessoas pretas relatam, com mais frequência do que brancos e pardos, situações como ser mal atendidas em lojas e restaurantes, tratadas com menos respeito ou vistas como menos inteligentes.
Na prática, a pele preta ainda define o quanto alguém será respeitado
De acordo com o levantamento, mais da metade da população preta (51,2%) sente que é tratada com menos gentileza no dia a dia. E quando se trata de respeito, os números também chocam: 49,5% relatam que não recebem o mesmo nível de consideração que pessoas brancas. Já o mau atendimento foi apontado por 57% dos entrevistados pretos — um número quase oito vezes maior do que entre os brancos.
Esses dados revelam que o que parece ser “exagero” para alguns é, na verdade, uma realidade persistente. Assim como na novela das nove, onde Odete seleciona quem “pode” entrar em sua família, no mundo real também existe uma hierarquia silenciosa que define quem é visto como digno.
O retrato da interseccionalidade: cor, gênero e classe combinados
Outro dado relevante da pesquisa mostra que mulheres pretas estão no centro dessa desigualdade. Elas relataram, em maior número, mais de uma razão para a discriminação sofrida: além da cor da pele, fatores como gênero, renda e aparência física se somam. Cerca de 72% das mulheres pretas apontaram múltiplas causas para os episódios de preconceito.
Dessa forma, o estudo expõe um problema estrutural, que precisa ser enfrentado com políticas públicas e consciência coletiva. E nesse cenário, a arte — como a novela Vale Tudo — pode cumprir um papel importante, ajudando a expor e debater essas violências invisíveis.
Quando a ficção escancara verdades difíceis de engolir
A escolha da autora Manuela Dias de manter Odete Roitman racista, mas estratégica, foi acertada. Ao contrário de suavizar a vilã, a autora modernizou o discurso de ódio, adaptando-o à sutileza com que o preconceito opera hoje. Afinal, nem sempre o racismo se apresenta de forma explícita — muitas vezes ele surge em forma de “elogio com ressalvas” ou “aceitação condicional”.
É importante lembrar: aceitar alguém negro só quando ele se comporta como esperado ou se aproxima de um ideal branco não é inclusão — é controle. E, infelizmente, essa lógica ainda está presente em muitos lares, empresas e relações afetivas.
Resumo: A nova novela Vale Tudo traz à tona um debate necessário sobre o racismo sutil e estrutural. A fala de Odete Roitman reflete dados reais que mostram o quanto pessoas pretas ainda enfrentam preconceito diariamente. A ficção, mais uma vez, serve de espelho para uma realidade que precisa ser transformada.
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