Segundo a UNESCO, a porcentagem média global de mulheres na ciência é de 33,3%, e apenas 35% de todos os estudantes das áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM, na sigla em inglês), são mulheres. Larissa Santos faz parte de uma pequena fatia de doutoras estudiosas das ciências exatas.
Formada em Física pela Universidade de Brasília (UnB) e doutora pela Universidade de Roma “Tor Vergata”, a astrofísica é professora no Centro de Gravitação e Cosmologia da Universidade de Yangzhou, na China, há 10 anos, onde estuda com profundidade a radiação cósmica, elemento do universo primitivo que estamos imersos.
Mulheres na ciência: o estímulo vem de casa
Larissa é um exemplo bem-sucedido do incentivo à ciência na juventude. Em entrevista exclusiva à AnaMaria, a astrofísica compartilhou detalhes de sua jornada acadêmica e enfatizou a importância do estímulo à educação.
“Eu sempre me interessei pelo universo, desde criança gostava de olhar para o céu”, inicia Larissa.
A cientista descreve como o interesse pelo Universo surgiu ainda na infância: “Ganhei uma luneta dos meus pais quando era mais nova, fazia observações da Lua e ia bem nas matérias exatas da escola, isso também ajudou bastante. Então decidi que queria estudar astronomia. Naquela época, não havia ainda cursos de astronomia no Brasil, então acabei cursando Física na Universidade de Brasília (UnB), que foi onde comecei a minha jornada para estudar o Universo”.
“Fiz a graduação, bacharelado em Física na UNB, e depois me especializei na parte de astronomia, ingressei no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos, em São Paulo. Terminando o mestrado no INPE, fiz doutorado na Universidade de Roma, também no departamento de astronomia. Fiquei na Itália por cinco anos, fiz doutorado, pós-doutorado e, em 2014, fui para a China, para fazer um pós-doutorado na Universidade de Ciência e Tecnologia. O plano inicial era ficar dois anos na China, e estou por lá até hoje”, detalha a astrofísica.
Ao falar das diferenças entre fazer ciência por aqui, no Brasil, e do outro lado do mundo, na China, Larissa pontua o choque cultural e compara a ciência em ambos os países. Para ela, a principal diferença está na valorização do profissional de educação e no investimento destinado às ciências.
“Quando cheguei na China, foi um choque cultural, pelas diferenças, a maneira como as pessoas vivem e se comunicam. Tudo é muito diferente do que estamos acostumados aqui no ocidente. Em relação à ciência, a China investe muito em tecnologia e inovação, e valoriza muito a educação”, destaca.
“Na China existem várias possibilidades de fundos de pesquisa. Há incentivo para realizar viagens, para fazer conferências, para divulgar nossa pesquisa na Universidade. Existem muitas alternativas de fomento na China e também de investimento na carreira dos cientistas”, diz Larissa.
A cientista complementa dizendo que, pelo alto investimento, há também uma cobrança maior do cientista na China em comparação aos outros países: “Temos metas a serem cumpridas na Universidade como pesquisadores. Tanto em aquisição de fomento para pesquisa, quanto em número de artigos publicados, por exemplo, anualmente”.
Eureka — Meninas na Física
O ‘Eureka, meninas na Física’ é constituído por três professoras dentro da UnB: Larissa, Vanessa Andrade e a professora Erondina, coordenadora do projeto. O foco do trabalho é guiar futuras pesquisadoras para a experiência universitária. “A ciência é aberta a todos, então todos podem participar das ações, mas ele é voltado mais para as meninas, levamos elas para dentro da universidade”, explica Larissa.
“A ideia é estimular as meninas do ensino médio, das áreas de vulnerabilidade social do Distrito Federal, para terem a chance de conhecer um curso, por exemplo, de Física e Astronomia. Normalmente elas não teriam essa oportunidade e mostramos para elas que existe a universidade pública, que muitas delas sequer conhecem”, conta.
O Eureka visa também na manutenção das estudantes no curso de Física, elaboramos palestras e discussões sobre mulheres na ciência e provendo bolsas de iniciação científica, para manter essas meninas na universidade.
Apesar disso, Larissa destaca os desafios enfrentados pelas mulheres na ciência. “Tivemos uma melhora significativa de uns anos para cá, hoje as meninas têm acesso à licença maternidade, direito que não existia antes: se você tivesse um filho durante o pós-doutorado ou doutorado, a única possibilidade era trancar a bolsa na época em que você mais precisava do dinheiro, ficando sem nenhum método de sustento”, avalia.
“Atualmente o quadro melhorou, mas acho que temos que incentivar as meninas, nas ciências exatas, não só a entrar na faculdade, mas também a permanecer nela, pois existe uma evasão muito grande nestes cursos entre as meninas”, acrescenta.
“O Instituto Serrapilheira, por exemplo, que é uma agência de fomento privada, já tem alguns editais voltados para as mulheres. Isso é muito importante: editais específicos voltados para as mulheres na ciência, que podem ajudar nesse processo de inserção, principalmente na área da Física, que tem índices mais baixos de mulheres em cargos de chefia e liderança nos departamentos”, conclui.
Ciência é coisa de menina, sim!
A astrofísica destaca as dificuldades da falta de representatividade no meio científico e as adversidades enfrentadas pelas mulheres ao adentrarem o ambiente acadêmico. Segundo Larissa, são muitos os desafios, começando pela graduação, onde a presença feminina é baixa em comparação com o número de rapazes inscritos. “Por exemplo, quando entrei no curso de Física, eram 28 homens e 5 mulheres, em 2001. Esse número não é muito diferente hoje”, pontua.
“As meninas sentem uma pressão maior para se sobressaírem no curso. Elas perguntam menos durante as aulas e são mais tímidas. Isso acontece também na China, mais ainda, por ser uma sociedade bastante patriarcal, as estudantes têm medo de fazer perguntas ruins e serem julgadas pelos rapazes da turma”.
“Durante o mestrado ou doutorado, pelo menos na astronomia, os números começam a ficar mais equilibrados, apesar de se distanciarem novamente quando os cargos começam a aumentar, para cargos de professor titular, por exemplo. Na cosmologia, que é uma área dentro da astronomia, o número de mulheres ainda é muito baixo, em geral, em conferências internacionais costumo ser a única”, relata a astrofísica.
Falta representatividade dentro do meio acadêmico: “Nós, mulheres, tentamos nos enquadrar nesse ambiente masculino. Isso sem contar as dificuldades cotidianas que já conhecemos em todas as profissões: ser silenciada em reunião ou não ter suas ideias e pesquisas muito valorizadas. Esses comportamentos existem dentro da academia”.
Larissa acredita que a diversidade é a chave para a inovação. Quando discutimos novas ideias com pessoas diversas, com culturas e pontos de vista diferentes, os insights, descobertas e inovações são mais produtivas. Um ambiente com mais mulheres é um ambiente mais diverso.
“A ciência ainda é branca e masculina, e uma academia científica mais diversa é boa para todo mundo, se estivermos pensando no progresso científico, uma academia diversa desempenha esse papel muito melhor”, salienta.
“Hoje em dia ninguém mais faz ciência sozinho. Temos essa ideia antiga de Isaac Newton, sentado no pomar dele, tendo inspirações sozinho, mas hoje em dia é muito difícil fazer ciência sozinho, A ciência é muito coletiva, principalmente nessa era, que chamo de ‘Era de ouro da astronomia’, que é uma ciência muito experimental”, destaca.
A astrofísica detalha que grandes experimentos, como os satélites, precisam de muita mão de obra envolvida, como cientistas, engenheiros e gestores. Esse cenário favorece uma inclusão maior das mulheres, por uma questão de números. Temos mais pessoas trabalhando e, consequentemente, mais mulheres na ciência. Essas grandes colaborações internacionais fomentam a diversidade cultural, pois são pessoas de vários países colaborando conjuntamente.
Vamos falar sobre ciência?
“A divulgação científica é extremamente importante e a academia científica ainda não valoriza adequadamente a divulgação científica. Os cientistas têm essa obrigação, na minha opinião, de falar com a sociedade, de expor as pesquisas e mostrar como o empreendimento científico acontece”, declara.
A cientista lembra ainda os problemas enfrentados durante a pandemia de Covid-19, quando houve falta de conhecimento da população com relação ao fazer científico. “Muitas pessoas da área da saúde começaram a fazer esse papel, que felizmente começou a se espalhar por outras áreas”, lembra ela.
“É muito importante que o cientista fale com a sociedade. A divulgação científica pode, sim, estimular e incentivar as pessoas e os jovens cientistas que têm interesse em trabalhar nas diversas áreas. Eu mesma fui bastante influenciada, quando eu era nova, por revistas de divulgação científica, e hoje em dia poucas pessoas leem as revistas. Então a divulgação nas redes sociais talvez seja a nova maneira de comunicar a ciência que antigamente era feita por grandes revistas”, diz.
Para Larissa, a divulgação científica nas redes sociais estimula, incentiva, mostra a importância da ciência para a sociedade, apresenta o que o cientista está fazendo nas pesquisas e colabora também na questão da representatividade. “Ao ver mulheres cientistas trabalhando, aquela menina que tem interesse pensará: ‘Eu também posso!’”, enfatiza. A ciência ainda é muito masculina. No canal de divulgação no YouTube de Larissa, 90% do público é masculino.
“Temos que chegar de alguma forma nestas meninas, elas precisam saber que podem ser cientistas e que ciência também é coisa de menina. Mas, ainda, a realidade que nos apresenta é a de uma ciência feita por homens, para homens”, diz ela.
“No Instagram o público é mais diverso, mas as interações, comentários e perguntas nos stories, ainda são predominantemente masculinas. Temos que fazer esse trabalho de formiguinha, um trabalho constante e difícil, e a gente espera que isso melhore no futuro, devagar e sempre. Não podemos desistir das nossas meninas na ciência, mas é um trabalho árduo”, relata.
Larissa lembra ainda da importância do incentivo dos pais. “Se a criança demonstrar algum interesse por alguma área não tradicional das ciências exatas, é preciso um estímulo dos pais, porque pode parecer uma área diferente. Imagine uma criança de dez anos chegar para os pais e falar ‘Quero estudar astronomia’”, reforça.
“Os pais podem não levar muito a sério a vontade dessa menina ou tentar persuadi-la a outra carreira mais tradicional. O que deve ser feito é estimular. Precisamos de cientistas mulheres. O incentivo dos pais é essencial para que a criança se sinta à vontade para explorar o mundo e suas múltiplas curiosidades e, talvez, se encantar por alguma área da ciência. Nós temos que incentivar dentro de casa, o máximo possível, as nossas futuras meninas cientistas”, finaliza.
De onde surgem as grandes ideias?
Além do trabalho acadêmico, Larissa segue também no campo literário. A astrofísica já publicou dois livros de divulgação científica que visam desmistificar a cosmologia e o empreendimento científico para o público não especializado.
O mais recente, lançado este ano, chama-se ‘De onde surgem as grandes ideais?’, onde explora alguns fatores importantes para que as pessoas possam ter boas ideias, além do tão sonhado e idealizado momento “eureca”, utilizando o que se aprende ao longo da história — principalmente, ao longo da história da ciência. O livro é para todos os públicos, mas pode ser uma ferramenta de incentivo valiosa para jovens estudantes e aspirantes a pesquisadores.
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