A vida fez de tudo para tirar o sorriso de Patrícia Borges, 29. Aos cinco anos de idade, a hoje produtora cultural perdeu a mãe após um aneurisma no cérebro. Sob os cuidados do pai, ela lembra ter sofrido todo tipo de privação, além de muitas agressões.
“Aos seis anos, eu já sabia que queria ser menina. Mas ele colocou uma arma na minha cabeça e disse ‘não, enquanto você estiver debaixo do meu teto, vai ser o que eu quero que seja'”, conta.
O único caminho para essa mulher trans foi seguir para as ruas, o que trouxe para a sua vida todos os tipos de violência moral e física, o que incluiu a perda de alguns dentes, como os da frente, por conta da violência.
Mas Patrícia voltou a sorrir quando teve acesso ao projeto Apolônias do Bem, da ONG ‘Turma do Bem’, que funciona em uma casa na região da Vila Mariana, em São Paulo (SP), desde 2012. No local, ela teve acesso ao tratamento dentário completo: implantes, prótese, limpeza e restaurações.
A dentista Viviane Crespi, coordenadora da ação, explica que a ação nasceu justamente da necessidade de resgatar o sorriso das mulheres que perderam os dentes em situações de violência. Na maioria dos casos, essas agressões são cometidas contra braços, tronco e, principalmente, o rosto. “E todas as vezes que ela se olha no espelho, que sorri, enxerga essas marcas, o que dificulta seguir em frente”, ressalta.
NOME COM SIGNIFICADO
Ela lembra que a rede pública até oferece apoio jurídico e médico para as vítimas, mas ainda não existe um suporte que as ajude a reparar os danos odontológicos. Por isso, desde 2012, já foram atendidas cerca de 1100 mulheres na organização, que está presente em 14 estados do Brasil, mais o Distrito Federal.
“Neste ano, nós expandimos para o México. E o projeto é bem replicável, pois onde existe um dentista que tem a vontade de se tornar voluntário, a gente consegue identificar ali uma beneficiária e fazer o atendimento”, explica.
O nome escolhido, ‘Apolônia’, não foi em vão. Trata-se de uma mulher que foi presa e, como forma de tortura, acabou sendo espancada e teve os seus dentes arrancados.
“Ela é a padroeira dos dentistas, então liga com a questão das nossas apolônias de hoje, que é como a gente chama carinhosamente as beneficiárias do programa”, conta a coordenadora.
PÚBLICO-ALVO
As contempladas pelo tratamento sofreram violência doméstica e tiveram a dentição afetada: “Existe uma agressão crônica, onde a mulher vai perdendo tanto a autoestima que não faz mais nada, não cuida mais de si e vai perdendo todos os dentes. Ou realmente a agressão física por trauma, que gera a fratura, a perda de dentes mesmo”, explica a dentista Luciana Bruzadin, uma das participantes do projeto.
As pacientes da ONG são selecionadas por meio de triagens feitas em casas de apoio às vítimas, além de serem encaminhadas pelos tribunais de justiça dos Estados, principalmente de São Paulo.
A boa notícia para a vítima é que não é necessário pagar nada, pois o tratamento é totalmente custeado pelos dentistas voluntários. “A gente não tem vínculo e nenhum tipo de subsídio público” ressalta a dentista.
Algumas empresas de materiais odontológicos, inclusive, também são parceiras, oferecendo descontos e incentivos. “Eu tenho certeza que o benefício que isso traz é muito maior do que se eu estivesse recebendo por aquele trabalho”, completa.
AGIR NO SOCIAL
Viviane Crespi e Luciana Bruzadin integram o grupo de dentistas que apoiam vítimas de agressão FOTO: Vivian Ortiz
Luciana conta que conheceu o ‘Apolônias’ por meio de amigos que já eram voluntários do programa. “A odontologia brasileira é considerada uma das melhores do mundo, mas vivemos em um país de desdentados, o que é uma discrepância social muito grande”, ressalta, antes de completar: “Temos um potencial de ação que precisa ser maior, tem que agir no social também.”
Segundo ela, apesar do número de atendimentos na ONG ainda ser pequeno perto da demanda existente, os profissionais já se consideram vitoriosos. “Poder, pelo menos dentro daquelas 1100 famílias, já ter um impacto positivo é maravilhoso”, diz.
A especialista ainda ressalta o quanto é reconfortante saber que foi possível dar a dignidade das pacientes de volta e, de certa forma, ajudar aquela pessoa a ter a sua autoestima restabelecida. “Ela volta a sonhar, a fazer planos e a se gostar, o que gera um impacto muito positivo para aquela pessoa, sua família e toda aquela comunidade”, afirma.
“É muito difícil você pensar em quantas mulheres são agredidas e o quanto essas marcas ficam ali estampadas no rosto e no sorriso, que é por onde elas se comunicam, por onde elas se expressam”, completa.
NOVA VIDA
Patrícia, que chegou ao projeto por meio de uma triagem, ainda está em tratamento, mas já comemora as transformações: “Estou com um sorriso melhor, mais largo e esteticamente mais bonito. O sorriso é o cartão postal da pessoa, ele tem o poder de te deixar lá em cima. Além disso, poder voltar a ter dentes e a saborear um alimento corretamente é motivo de muita felicidade”, celebra.
A produtora cultural faz questão de destacar a importância do Apolônias em sua vida e nas de outras mulheres que, como ela, sentiram na pele a violência.
“É maravilhoso existir um projeto como este, ver pessoas lutando pela felicidade de outras tão violentadas e que foram torturadas por seus homens, tanto na questão psicológica quanto na parte física. É algo que me deixa extremamente feliz”, ressalta.
A produtora cultural Patrícia Borges é uma das beneficiárias atendidas pelo ‘Apolônias’ FOTO: Vivian Ortiz
VIRADA
O novo sorriso de algumas beneficiárias do projeto poderão ser vistos em uma exposição fotográfica em breve. É que o ‘Apolônias’ estará presente no evento ‘Sorriso do Bem’, que faz parte do festival de voluntariado ‘Virada da Virada’, e que acontecerá em novembro deste ano, em São Paulo (SP).
Vinte participantes que perderam os dentes por causa de agressões foram retratadas por vinte fotógrafas, todas mulheres, antes e depois do tratamento odontológico. O resultado é tocante e mostra como um sorriso pode transformar uma vida.
Vale lembrar que o evento, que é uma parceria da TdB com o GRAACC e a Prefeitura de São Paulo, tem o objetivo de promover mais engajamento social e proximidade da população com as causas voluntárias.