O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na última quinta-feira (7), proibir a prisão após condenação em segunda instância. A partir daí, as penas só poderão ser realizadas após o ‘trânsito em julgado’, que é quando não há mais recursos.
A decisão afetou vários processos, incluindo o do ex-presidenteLuiz Inácio Lula da Silva, que estava preso desde abril de 2018, em Curitiba (PR)
Lula deixou a prisão na tarde da última sexta-feira (9), passando a responder em liberdade aos processos que ainda é réu. Mesmo assim, ele continuará proibido de se candidatar a cargos públicos.
A soltura do ex-presidente, no entanto, deixou muita gente com dúvidas e dividiu opiniões. Por isso, AnaMaria Digital procurou especialistas em direito para esclarecer o assunto.
QUE DECISÃO É ESSA?
De acordo com a advogada Jacqueline Valles, especialista em Processo Penal e Criminologia, essa decisão nada mais é do que determinar que os juízes parem de descumprir a Constituição Federal ao pedir a antecipação de pena para os condenados em primeira ou segunda instância. Ou seja, para pessoas que ainda não esgotaram todos os recursos tentando provar sua inocência.
“Mas é importante deixar claro que isso não vale para os crimes graves, como os hediondos, pois a lei dispõe de mecanismos para prender, de forma preventiva, acusados que oferecem riscos à sociedade”, ressalta.
Ainda de acordo com Jacqueline, desde 2016, por conta do julgamento de um caso isolado, juízes de todo o Brasil passaram a descumprir a Constituição e determinar a prisão em segunda instância. “O que o STF fez ontem foi dizer que isso não pode mais acontecer”, explica.
MAS PORQUE FOI CONCEDIDA A LIBERDADE AO EX-PRESIDENTE LULA?
A advogada alerta que o julgamento da última quinta-feira (7) não foi sobre o caso específico do ex-presidente.
“Atualmente, quase 5 mil pessoas que estão presas ainda não tiveram o trânsito em julgado. Ou seja, ainda têm possibilidade de recurso. É o que chamamos de presunção de inocência e amplo direito à defesa, que é garantido pela Constituição a todos os brasileiros”, ressalta
Theodoro Balducci de Oliveira, especialista em Direito Penal Econômico, diz que a decisão é benéfica para Lula. “Pois ele está preso em decorrência de decisão condenatória ainda não transitada em julgado”, diz.
Para o advogado criminalista Valmir Moraes, neste caso, a dúvida favorece o réu, que, segundo ele, em nome do bom direito e da democracia, não pode ser condenado enquanto existirem dúvidas sobre sua culpa.
“Assim, é acertada a decisão do Juiz da 12ª Vara Criminal Federal de Curitiba, Dr. Danilo Pereira Júnior, em aceitar o pedido da defesa e autorizar a saída imediata do ex-presidente do República Luiz Inácio Lula da Silva de seu cárcere no Paraná”, afirma.
BANDIDOS NA RUA?
Muitos boatos sobre o assunto acabaram se espalhando rapidamente na web. Um dele diz que criminosos de alta periculosidade serão soltos nas próximas semanas por conta dessa decisão. Os especialistas, contudo, afirmam que isso não é verdade.
Isso porque o Código de Processo Penal prevê que criminosos responsáveis por crimes graves- como estupro, homicídio, feminicídio, entre outros- sejam presos de forma preventiva, mesmo antes de serem condenados, pois oferecem risco para a segurança da sociedade.
“A prisão preventiva pode ser aplicada também nos casos em que o réu oferece risco de fuga ou de atrapalhar o andamento do processo [tentando coagir a vítima a retirar a acusação, por exemplo]. Não há motivo para a população ficar alarmada”, garante Jacqueline.
Além disso, de acordo com a advogada, a decisão do STF não determina a soltura imediata dos réus que estão presos sem o trânsito em julgado: “Cada um tem que solicitar o pedido à defesa e cada caso será analisado separadamente”, diz.
FALTA DE INFORMAÇÃO
Balducci afirma que essa impressão equivocada é fruto de uma campanha de desinformação que ganhou força nas redes sociais.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima que menos de cinco mil presos poderão ser beneficiados, em tese, com a decisão do Supremo Tribunal Federal.
“É uma falácia, portanto, dizer que ‘estupradores, assassinos e sequestradores vão ser libertados nas próximas semanas’ porque, frequentemente, os acusados de tais crimes já estão presos preventivamente. E a decisão do Supremo Tribunal Federal não tem qualquer relação com nenhuma das modalidades de prisão cautelar, que continua em vigor”, completa o advogado.
Além disso, o julgamento de alguns crimes não alcança os pilares do STJ. “No Brasil, há apenas 4.895 casos de apenados que cumprem pena após a sua condenação em segunda instância e que aguardam recursos em 3º e última instância. Para serem beneficiados, sua liberdade terá que ser requerida pela defesa”, afirma Moraes, salientando que muitos terão a decisão rejeitada por não cumprirem os requisitos necessários.
MAS QUAL É A VANTAGEM DESSA DECISÃO?
Jacqueline explica que as leis brasileiras são regidas pela Constituição Federal, a quem todas as outras legislações são subordinadas. Segundo ela, garantir que seja respeitada é assegurar que os direitos dos cidadãos também sejam, assim como a democracia.
“Cumprí-la evita que a lei seja manipulada para prejudicar este ou aquele, seja por motivação política ou vingança. E isso garante uma segurança jurídica para o cidadão, na medida de que ele tem a certeza de que as leis estão sendo cumpridas e de que não está à mercê dos interesses alheios”, diz.
Moraes concorda, afirmando que esta decisão assinala um momento histórico na crise política e institucional instalada no país há vários anos, por conta da pressão popular de movimentos de extrema direita, que inclusive ameaçavam o STF com o seu fechamento pelas forças armadas.
“Políticos nacionais defendiam que o STF votaria por medo da reação das ruas ou do governo. A decisão pelo respeito às normas constitucionais demonstram que o Brasil ainda está sob a proteção da Lei, e não ao arrepio causado pelos movimentos populares ou pelas redes sociais”, diz.
QUAIS OS PROBLEMAS QUE ESSA DECISÃO PODE ACARRETAR?
Aparentemente, nenhum. Isso porque, garantem os especialistas, o erro está na informação errada divulgada, que acaba causando um pânico desnecessário na população.
Ainda de acordo com os profissionais, os ministros do Supremo Tribunal Federal, ao julgarem, não devem e não podem deixar sua vontade pessoal se sobrepor à lei e à Constituição Federal que juraram defender.
Segundo Balducci, o desrespeito ao ordenamento jurídico para atender à voz das ruas sempre levanta a questão do autoritarismo.
“No processo penal, o acusado – que é presumidamente inocente, vale lembrar – é sempre o polo mais frágil, tanto frente ao Estado quanto à sociedade. É ele quem deve ser protegido, nos termos da Constituição Federal e do Código de Processo Penal”, completa.
Por fim, Moraes afirma que não espera a soltura de presos em massa. “Porque a decisão do STF de 08 de novembro de 2019 não irá criar essa realidade. Quando muito impedirá que eventuais injustiças e ilegalidades continuem ocorrendo”, conclui.