A pandemia do novo coronavírus acendeu o sinal de alerta e fez com que muitas pessoas redobrassem os cuidados para evitar a contaminação pela doença, especialmente aqueles que fazem parte dos grupos de risco.
Este é o caso de Melissa Ribeiro, sobrevivente de câncer de laringe e presidente voluntária da ACBG Brasil (Associação de Câncer de Boca e Garganta). “Temos um alvo do coronavírus no pescoço”, ressalta, preocupada.
O Instituto Nacional de Câncer (INCA) estima que para o triênio 2020-2022 haverá, por ano, 6.470 novos casos de câncer de laringe em homens e 1.180 em mulheres. Segundo o INCA, sem considerar os tumores de pele não melanoma, em homens, o câncer de laringe ocupa a oitava posição nas regiões Centro-Oeste e Nordeste; nona posição nas Regiões Sudeste e Norte; e 11ª na Região Sul. Entre as mulheres, ocupa a 16ª posição em todas as Regiões brasileiras, exceto na Sudeste (1,03/100 mil) que fica na 17ª.
E a aflição de Melissa, de fato, faz todo sentido. É que quando um paciente tem um câncer que dificulta a passagem de ar para os pulmões, como um tumor na garganta, por exemplo, muitas vezes é utilizada a traqueostomia: um recurso que facilita a respiração por meio de uma abertura na traqueia. Porém, é aí também que mora o perigo, pois esta pode ser um meio para a contaminação do paciente pelo covid-19.
“Como não respiramos pela boca e nariz, perdemos para sempre a proteção natural do organismo para filtrar, umedecer e permutar a temperatura do ar sujo que entra direto nos pulmões. Temos pneumonias recorrentes, porque além de sermos pacientes oncológicos em tratamento ou seguimento, possuímos imunidade mais baixa”, destaca.
De acordo com o otorrinolaringologista Roberto Campos Meirelles, os problemas relacionados ao coronavírus podem ser bem mais preocupantes para estes pacientes. “Se a gente pensar, a contaminação pelo covid-19 é como uma corrida de 800 metros, enquanto nas pessoas em geral o vírus começa do zero, no paciente traqueostomizado já sai dos 400 metros. O filtro minimiza essa desvantagem do paciente”, exemplifica.
POR QUE ISSO ACONTECE?
O médico explica que isso acontece porque a via de entrada do coronavírus é geralmente a boca ou a fossa nasal, e ele vai colonizar na parte de trás, entre o nariz e a garganta. “Quando entra direto pela traqueia, tem a chance de ir direto para o pulmão. Ainda não há estudos sobre isso, mas deduzimos que pode ser bem mais perigoso, porque tem acesso direto ao órgão”, diz o especialista.
Ainda de acordo com Meirelles, o paciente com traqueostomia não conta com o mecanismo de proteção da função nasal. “Quando a gente faz a respiração normal, inala o ar pelo nariz, que tem função de filtrar, aquecer e umedecer o ar para que chegue ao pulmão em condições propícias. Sem esse mecanismo de filtro, aquecimento e umidificação, o ar entra frio, seco e vai direto da traqueia para os brônquios”, esclarece.
É PREOCUPANTE!
Melissa ainda alerta para um dado preocupante: grande parte dos traqueostomizados têm em média 60 anos, são pacientes oncológicos e têm imunidade mais baixa, o que significa que este é um grupo completamente vulnerável.
“Eles são imunocomprometidos, sem qualquer proteção na estomia que impeça a contaminação direta no pulmão pelo coronavírus. Precisamos da dispensação imediata dos filtros e adesivos”, destaca, lembrando da importância dos insumos que, por enquanto, só são distribuídos gratuitamente em Santa Catarina.
O otorrinolaringologista ainda explica que, com a traqueostomia sem proteção, o vírus pode entrar pela traqueia e ir direto para o pulmão. “Se o paciente está dormindo, até um inseto pode entrar. Tudo isso facilita a infecção da via aérea. É como uma casa com a porta aberta, onde o ladrão vai entrar primeiro”, afirma.
Ou seja, até para dormir o paciente necessita usar filtro, que tem a função de diminuir ou impedir a entrada de vírus e bactérias diretamente na árvore respiratória.
“O filtro ajuda a fazer essa proteção, substituindo em parte a função do nariz. O paciente sem filtro fica mais vulnerável a contrair infecções, não apenas covid-19, mas também H1N1 e outras que também causam problemas pulmonares importantes”, explica.
ACESSO
Para a fonoaudióloga Suzana Areosa, gestora da Rede+Voz da ACBG, neste momento de pandemia, em que o vírus que tem basicamente contágio pelo ar, esses pacientes são mais suscetíveis, pois além de possuírem baixa imunidade devido ao tratamento do câncer, ainda possuem essa alteração da fisiologia respiratória. “Por isso é importantíssimo que tenham acesso aos insumos,que possibilitam uma proteção maior”, ela afirma.
Ainda segundo Areosa, o filtro auxilia no sistema imunológico porque melhora a qualidade da respiração. “O paciente que respira melhor tem defesa maior, melhora o sistema imunológico porque também permite que ele retome a capacidade de fazer expansão pulmonar durante a respiração, além de dificultar a entrada do vírus, por ser um aparelho que fecha a entrada da estomia”,completa.
ORIENTAÇÃO
A orientação para estes pacientes diante da pandemia de coronavírus não é diferente do já orientado à população no geral, que é ficar em casa, só sair em caso de extrema necessidade, além dos cuidados com a higiene. Em relação aos procedimentos eletivos e rotineiros, a maioria está suspenso, por enquanto, prosseguindo apenas com os tratamentos de câncer, como quimioterapia e radioterapia, por exemplo.
Segundo Suzana, as consultas e monitoramento devem ser feitos por telemedicina e, no caso do paciente que precisa ir ao hospital ou centro de saúde, é importante fazer uso de uma máscara sobre a estomia ou protetor da estomia, para evitar exposição.
PEDIDO DE SOCORRO
A fonoaudióloga afirma que, apesar de ainda não ter um número exato, cerca de 15 mil pacientes são traqueostomizados no Brasil e precisam de mais atenção. “Não vamos desistir de lutar por qualidade de vida para essas pessoas, que em sua imensa maioria são idosos de baixo nível socioeconômico e cultural e ainda mudos. Quem vai reclamar por eles?”, ela pergunta.
Roberto também levanta um questionamento sobre o que é preciso priorizar. “Quanto vai se gastar em filtro para os pacientes e quanto vai se economizar em tratamentos de doenças infecciosas pulmonares ou doenças resultantes de entrada de vírus e bactérias?”, ele conclui.