Cada vez mais me convenço de que saudade deveria vir com uma ilha de edição, porque trata-se de uma grande sabotadora, que precisa de regras, precisa de doma. Poderia ser uma espécie de aplicativo ou um programa de computador que tornasse viável lembrar apenas o importante para superar determinado momento. Para mudar de fase e seguir adiante. Um exemplo: que vantagem quem viu morrer alguém querido, de uma doença daquelas que levam a alma antes de definhar o corpo, tem ao recordar desta última etapa? Dos dias sombrios de sofrimento? Nenhuma.
A edição de um filme de saudade destes contemplaria só os tempos bons e leves, o período antecessor, antes de a pessoa ter deixado de ser o que nasceu para ser. Uma forma digna de manter um legado que foi maculado pelo infortúnio daqueles que partem por conta de um roteiro mal escrito, sem direito a escolher o desfecho. Talvez dessa forma conseguíssemos deletar cenas de remédios, de dores e de hospital, que tendem a chamuscar a caixa das lembranças.
Já as memórias de gente que não ficou por vontade própria, essas exigem outro tipo de edição porque aí, a saudade, melindrosa como é, faz o contrário e fixa só a perfeição para que a dor da perda seja mais forte. Saudade sádica, que chega com cara de “boa moça” e, com a desculpa de nos abastecer dos momentos lindos, nos castra a vontade de ir em frente porque, imagine, como conseguir chegar novamente àquele nível de encanto? Tínhamos tudo, experimentamos um pedaço do paraíso e agora o que resta é a fumaça esparsa e inalcançável das recordações felizes.
LENTES COR-DE-ROSA
Foto:Mabel Amber por Pixabay
Mas será? É possível que toda experiência amorosa seja tão irretocável, que não apresente nada negativo, nada que dê uma pista de que o romance estava com os dias contados? Difícil. Mas é isso que a saudade maquiavelicamente faz: ela filtra a realidade com potentes lentes cor-de-rosa para bagunçar nosso coreto e apresenta somente as imagens dignas de Oscar de fotografia.
Depois do fim de um relacionamento, ninguém lembra de brigas e egoísmos. Das palavras tortas engolidas a seco, dos descasos e negligências do dia a dia. E nem daquela pulga atrás da orelha, depois da pequena mentira ou da dor da ausência, quando tudo o que você precisava era de presença. Não. A danada da lembrança joga os dissabores todos no ralo e te oferece um conto de fadas caprichado. A ponto de nos convencermos de que o erro foi nosso. O filme estava impecável: nós é que estragamos o longa-metragem e colocamos tudo a perder.
Para escapar dessas armadilhas, a ilha de edição da saudade deveria trabalhar a todo vapor e buscar nos arquivos ocultos o imperfeito, aquilo que destoava e fazia daquele amor algo mais próximo do real. Só revendo esses capítulos conseguimos montar o quebra-cabeça, que explica o epílogo. E a gente acaba enxergando – mesmo ainda com a névoa dos olhos úmidos – que nenhum fim chega por acaso. E que a memória é bem-vinda para ser aliada e não algoz. A saudade saudável precisa funcionar a nosso favor e não para ajudar a enterrar esperanças de que ainda existe muita beleza para acontecer.
*Wal Reis é jornalista, profissional de comunicação corporativa e escreve sobre comportamento e coisas da vida.
Blog: www.walreisemoutraspalavras.com.br