Um fato ocorrido há alguns dias no ‘Big Brother Brasil 21‘, da TV Globo, gerou discussões dentro e fora do reality. Nas redes sociais, muito se comentou sobre a situação protagonizada pelos participantes João Luiz e Rodolffo, quando o sertanejo comparou a peruca da fantasia do castigo do monstro- que era de um homem pré-histórico- ao cabelo do professor.
“Estou cansado de ouvir isso. Não é só aqui dentro, é lá fora também”, disse o brother, enquanto desabafava, bastante chateado, com Camilla de Lucas.
O fato é que muitas pessoas se identificaram com a fala e a dor de João. O cabelo crespo é, sem dúvidas, um dos principais alvos de racismo que uma pessoa negra enfrenta na sociedade, desde a infância. Inclusive, quando falamos das crianças, é ainda mais difícil, pois os danos refletem até na vida adulta.
Segundo o psicólogo Douglas Félix, do Canto Baobá (espaço especializado em Saúde Mental e diversidade, com ênfase em questões raciais, de gênero, orientação sexual, classe social e violências), esses são traumas que dificilmente conseguiremos explicar de forma absoluta. “Pensando na primeira infância, isso inclui a negação de sua cor, de seu cabelo e de preferências: tudo que é considerado aceito socialmente possui ligações com fenótipos brancos, e o que são características negras, acabam sendo mostrados como ruins”, avalia.
Félix ainda chama a atenção para fatos que costumam ser bem comuns do cotidiano escolar, demonstrando um sistema de branquitude. Quer um exemplo? Quando pensa no cabelo ou na criança mais bonita da sala, quem você lembra?
“Vemos que nunca são pessoas pretas. Então, desde a infância, vai se criando o sentimento de não ser o preferido, não ser o escolhido”, diz ele, antes de ressaltar: “É interessante, que desde pequeno, o negro é a pessoa ideal para ser o melhor amigo, não para ser a preferida e escolhida”, diz.
RESPONSABILIDADE DE TODOS
Quando se vive em uma sociedade em que a pessoa preta não é protagonista, como os pais conseguem reconhecer que os filhos estão sofrendo racismo? Segundo o psicólogo, situações do tipo geralmente só são percebidas quando envolvem termos pejorativos.
Mas e quando o racismo ocorre de forma velada, como preparamos os pais? “A escola precisa ter um olhar antirracista na programação teórica do ensino, e a sociedade precisa falar de forma mais clara sobre o assunto”, afirma Douglas.
Ele lembra que a educação de hoje é diferente daquela de alguns anos atrás.Tanto que, atualmente, existem subsídios e repertório para dialogar sobre racismo com as crianças.
“Mas pensando nos meus ancestrais, quantas violências que minhas avós e mãe passaram e não viam isso? Para educar uma criança antirracista ou mostrar para essa criança preta que ela está sofrendo racismo não vai exigir só dos pais, mas de todo o social. É mover muitas estruturas”, afirma Félix.
As coisas mudaram bastante de uns tempos para cá, mas de forma bem devagar. A psicóloga Ana Albuquerque, também do Canto Baobá, destaca que existe, de fato, maior representatividade e acesso a mais produções de conteúdos antirracistas hoje. Para isso acontecer, porém, foi preciso um longo processo de resgate de autores negros.
“Hoje temos brinquedos, livros e demais produtos que carregam uma maior pluralidade e identificação. Mas, mesmo assim, falamos de poucas opções comparado a bonecas brancas, por exemplo. Estamos em um processo muito lento e difícil, com muitas barreiras”, afirma.
Livros como o “Pequeno Príncipe Preto”, de Rodrigo França, e “Amoras”, de Emicida, são algumas das obras que os psicólogos do Canto Baobá costumam indicar para os pais das crianças que são atendidas no local. “É apropriar desses espaços, ainda muito pequenos, para poder informar os pais que também é sobre a vida deles, não só a dos filhos”, completa a especialista.
REFLEXOS NA JUVENTUDE
Estudar, trabalhar, ter uma vida social agradável… São tantos os planos, né? No entanto, por mais que tentem dizer que as oportunidades são iguais para todos, elas não são! Os jovens negros, com o passar dos anos, sofrem o mesmo tipo de reprodução de racismo que na infância, só que agora em outros ambientes.
Para Ana, a estrutura racista mina o olhar sobre si e é muito violenta. “Já falamos sobre esse sistema baseado em exclusão do plural e padronização em que a criança negra é sujeitada. E é ali que a autoestima começa a ser afetada. Se eu não sou o preferido, se não sou escolhido, se eu sou considerado feio: O feio deve ser cuidado?”, reflete.
“Ou só estamos cada vez mais estruturando esse racismo de forma destrutiva?”, completa Douglas, que ainda explica que o jovem negro vai sentir de uma forma mais intensa o que já vinha sofrendo desde a infância.
“O negro adolescente passa a vivenciar ou ver mais formas de violências, como a policial, do trabalho, cotidiana, dificuldade de se relacionar afetivamente, porque é o estigma que se vai criando”, afirma o psicólogo.
CONSEQUÊNCIAS NA VIDA ADULTA
Falta de autoestima, invisibilidade e a não apropriação do próprio espaço são alguns dos reflexos sentidos pelas pessoas pretas na vida adulta. “Como tudo é muito embranquecido na sociedade, dificilmente ela irá conseguir se apropriar dos espaços que consegue assumir e abrir”, afirma Douglas.
Segundo o psicólogo, as consequências psicológicas podem ser comparadas a uma auto sabotagem: a pessoa chega onde quer, mas não acha que aquele espaço é propriamente dela.
“A estrutura racista é muito bem pensada: não é só tirar um corpo negro dali, mas tirar um corpo negro mentalmente dali. Penso como deve ser difícil para João e Camilla irem se apropriando do Big Brother como pertencentes da edição”, avalia.
No reality, por exemplo, o professor de geografia e a digital influencer logo se identificaram e viraram melhores amigos um do outro dentro da casa. Sobre a relação dos dois, Douglas fez uma observação: ambos conseguem dialogar entre si e se escutar.
“Já quando está na roda das meninas brancas, Camilla é silenciada ou não escolhida para ações de maior prestígio dentro do jogo, como o almoço do anjo, por exemplo. Ela é inviabilizada, mas de forma disfarçada”, diz o profissional.
SE COLOCAR NO LUGAR DO OUTRO
Na edição do ‘BBB21’ da última terça-feira (6), momentos antes da eliminação de Rodolffo, Tiago Leifert falou sobre o ocorrido na casa e explicou para o sertanejo o motivo de suas palavras terem causado dor em João.
A psicóloga, que acompanhava o programa, conta que chegou a fazer um questionamento sobre a situação. Para ela, Rodolffo só escutou e entendeu o apresentador porque foi um diálogo entre dois homens brancos, pois sua atitude já havia sido pontuada de forma exaustiva pelas pessoas que estavam sentindo essa dor.
Na ocasião, João não conteve a emoção ao falar sobre o assunto, resgatando lembranças dolorosas do que passou. O psicólogo explica que toda cicatriz dói e, neste caso, ela é constantemente aberta.
“As emoções do João refletem o quanto ele está cansado de sofrer de diversas formas. Não é só um cabelo ali, não é só a representatividade que esse cabelo traz, mas também é o cansaço de sofrer o racismo. É diariamente ver que essa violência não vai embora”, diz o especialista.
Ana destaca que, se existe uma ferida exposta e sangrando diariamente, é preciso validá-la, pois todo esse sofrimento não pode ser minimizado e invisibilizado: “Essa ferida está aberta e é grande.”
A DOR DO OUTRO NÃO É ‘MIMIMI’
Quem nunca ouviu falar desse termo? Pois é. Não é nada fácil ver que a dor de uma pessoa ser minimizada e chamada de ‘mimimi’, não é? Racismo nunca foi brincadeira, sempre foi violento e sempre machucou.
“Você cresce com piadas sobre seu cabelo e vendo isso ser chamado de brincadeira, mesmo doendo tanto, já começa por aí. Temos que trocar o nome e chamar do que é certo. Sempre foi ofensa, violência. E a luta ainda segue, porque há muito o que fazer”, afirma a psicóloga.
O que acontece agora, segundo Douglas, é que os grupos violentados cansaram de se calar, pois quem decidia que “sempre foi assim” provavelmente era uma pessoa branca. E, não! Não é ‘mimimi’.
“Só tiramos a mordaça que nos foi colocada há muito tempo. E, agora, as vozes saem com força. É preciso ir atrás de equidade e não só falando de raça, mas com as mulheres e com as pessoas LGBTQIA + também. As pessoas brancas precisam sair desse protagonismo e repartir esse lugar com outras pessoas”, afirma.
Por fim, Ana completa, dizendo que ‘mimimi’ é tentar colocar o negro na senzala, os LGBTQIA+ no armário e a mulher na submissão. “Esses três pilares sociais são os que mais sofrem com esse sistema e, parafraseando a Camilla, também estamos bem cansados de continuarmos falando sobre isso”, conclui a psicóloga.