Grazia é uma mulher negra, moradora da cidade de Bradford, na Inglaterra. No início do mês, porém, sua história ultrapassou as fronteiras do pequeno município e viralizou internet afora: em entrevista para a BBC, a jovem contou seu processo de quase 10 anos usando cremes que clareiam a pele.
Entre os depoimentos, a moça, que sempre morou afastada dos parentes, chegou a declarar que o próprio pai não a reconheceu após dois anos sem vê-la. “Quando ele colocou os olhos em mim, ficou chocado, porque eu estava com a cor muito clara. Ele ficou decepcionado, triste e me implorou para parar [de usar os cremes]”, relatou, na ocasião.
Mais do que as consequências físicas – que vão desde dermatite até catarata -, os ‘tratamentos’ clareadores revelam a fuga da própria cor de pele, criada e estimulada por uma sociedade racista, que vê o branco, loiro, magro, com olhos claros e traços europeus como o padrão de beleza ideal. “O auto-ódio é uma reação ao que tanto foi repetido para nós. Pessoas negras escuras que se amam são resistentes, quando o tempo todo dizem que a sua forma de ser é inadequada”, conta a publicitária Emile Brito, gestora de redes sociais e administradora de um perfil no Instagram em que expõe suas vivências como mulher negra.
Para se ter ideia, um cosmético produz o clareamento da pele apenas quando é agressivo o suficiente para inibir ou até matar as células que produzem melanina, chamadas de melanócitos. A hidroquinona, um dos clareadores mais ‘potentes’, pode causar pigmentação das unhas e diminuição da capacidade de cicatrização da pele.
Apesar da venda de produtos clareadores não ser tão comum no Brasil – diferentemente de países como o Senegal e a África do Sul – engana-se quem pensa que esta pressão para ser mais ‘clara’ não impacta a vida das mulheres negras. “Quando eu tinha 13 anos, dormia e pedia a Deus para acordar branca, pra ter outro cabelo e outra pele. Era muito confuso, porque ao mesmo tempo que eu me defendia e ficava revoltada com o racismo praticado pelas ‘amiguinhas’, queria ser como elas, que eram aceitas, ‘bonitas’, mereciam carinho e eram ouvidas”, desabafa a publicitária.
PRESSÃO ESTÉTICA
Uma pesquisa realizada pela empresa Sophia Mind, voltada para a inteligência de mercado feminino, aponta que 56% das mulheres estão insatisfeitas com a própria aparência. O número alarmante mostra o quanto elas tentam mudar para se sentirem mais próximas de uma aceitação social, mesmo que inconscientemente. As pessoas negras, porém, são as maiores vítimas deste padrão, já que possuem características físicas bem diferentes das consideradas ‘ideais’.
De acordo com Giovana Xavier, doutora em História e autora do livro ‘História Social da Beleza Negra’**, é preciso entender a estrutura de poder de uma sociedade pós-escravista como o Brasil. Assim como vários outros conceitos, a definição dominante do que é beleza é feita por grupos de poder que controlam a produção em meios de comunicação, instituições educativas e editoras. “Uma vez que em todos estes espaços a população negra permanece minoritária, os nossos valores e referenciais estéticos também permanecem desconhecidos”, completa.
“A colonização nos colocou em um lugar de pessoas desprovidas de humanidade. Apenas as pessoas brancas estariam nesse lugar do bom e glorioso”, explica a psicóloga clínica Lóren-Lis Araújo, que também é analista de comportamento. No campo de estudo da psicologia, o princípio da alteridade afirma que a personalidade de cada um é construída também com base na relação com outras pessoas, no entendimento das suas semelhanças e diferenças com quem convive. Durante esse processo, porém, discursos racistas (sejam escancarados ou velados) afirmam que o cabelo crespo é ruim, que a pele escura é feia e que a boa aparência é sinônimo de brancura.
Não só a beleza, mas a música, cultura, religião e história negra foram – e ainda são – subjugados em espaços majoritariamente brancos. Foi o caso do samba, que, criado em terreiros das ‘tias’ baianas negras, era visto como ‘vagabundagem’ e ‘prática de feitiçaria’. Ainda é o caso das religiões de matrizes africanas, como a umbanda e o candomblé, que são chamadas ofensivamente de ‘macumba’ e cobertas de preconceitos. Neste sentido, como afirma Lóren-Lis, o auto-ódio faz com que os negros busquem se distanciar de tudo o que são – e o ‘embranquecimento’ da pele auxiliaria nesta fuga.
“A busca incansável para se alcançar o padrão estético ideal nos coloca em uma posição em que nossa felicidade está condicionada a sermos de determinada forma. Não conseguir isso pode nos acarretar uma série de inseguranças”, declara a psicóloga. E as consequências são muitas: ansiedade, depressão, baixa autoestima, sentimento de incapacidade e, em casos específicos, distúrbios alimentares.
Como espaços da mídia são majoritariamente ocupados por pessoas brancas, referenciais de beleza negra permanecem desconhecidos (Crédito: Nayara Bardin/AnaMaria Digital)
BELEZA NEGRA COMO OLHAR DE PARTIDA
Felizmente, debates em contestação a este padrão estético estão sendo levantados nas redes sociais, nas mídias e por algumas marcas nos últimos anos. Com isso, pessoas negras que ainda não tinham contato com o assunto puderam mudar a visão sobre como alguns temas foram tratados até então, entendendo a potência de sua própria comunidade. Emile menciona sua visão sobre os próprios antepassados: mais nova, ela foi condicionada a vê-los como escravizados; hoje, ressalta a posição da África como berço da humanidade.
“Antes dessa ocupação nas mídias tradicionais e digitais, eu era outra pessoa. Insegura, escondia o meu rosto, meu sorriso, meu cabelo (…) Comecei a trabalhar a minha confiança e a respeitar os meus processos quando me deparei com pessoas parecidas comigo”, reforça a publicitária. Daí, entende-se a importância da presença de pessoas negras em todos os espaços.
Para a gestora de redes sociais, como forma de reparação, a beleza negra é seu centro de entendimento do conceito. “É um trabalho que faço há 10 anos, porque em 20 anos de vida eu tive o padrão imposto como um ideal que me violentou, assim como a maioria das pessoas negras”, explica. Não é só isso: o trabalho de Emile também busca dar maior visibilidade para livros, filmes, músicas e outras formas de cultura criadas por e para pessoas negras, especialmente as retintas. Afinal, “quanto mais escuro, mais longe do ideal branco, mais sofrimento, discriminação e traumas”.
Vale lembrar que, sim, estudos sobre o ‘colorismo’ afirmam haver diferenças no tratamento de pessoas mais ou menos retintas. Nesse sentido, vale lembrar das políticas eugenistas do início do século 20. O antropólogo Edgard Roquette-Pinto acreditava que, ao longo das gerações, a miscigenação seria positiva ao “apagar” qualquer traço genético de negros, pretos e indígenas — ’embranquecendo’ o povo brasileiro. “Costumo dizer que o Brasil é um país que aplaude a miscigenação quando clareia, não quando escurece”, afirma a publicitária.
Conforme a autora do livro ‘História Social da Beleza Negra’, mulheres negras que trabalham com beleza – seja em um salão nos fundos de casa, seja em bairros ricos – produzem e sustentam que o cabelo crespo e a pele escura são traços distintivos negros e merecem ser cuidados e valorizados com tecnologias negras.
DECIDIR SOBRE O PRÓPRIO DESTINO
No caso de Grazia, a britânica que usou produtos clareadores, iniciativas inglesas pela saúde de pessoas negras levantaram a discussão que algumas optam por esses procedimentos por acreditarem que precisam de uma determinada aparência para evoluir na carreira. No Brasil, o panorama não é muito diferente: de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 14,7% da população negra estava desempregada em 2018, contra 10% dos brancos. Para piorar, apenas 30% de posições de liderança nas empresas são ocupados por negros.
Assim como muitos, Emile sentiu o racismo durante sua busca por um estágio, quando ainda cursava moda. “Era estranho, diziam que eu era muito boa, mas não me encaixava, provavelmente, não no ideal deles. Desisti da área. Depois cursei e me formei em Publicidade e Propaganda, me deparando ainda mais com a falta de representatividade”, afirma. Após realizar uma série de trabalhos acadêmicos com temática racial, a publicitária recebeu o convite para ser Social Media na AFRO.TV.
A psicóloga Lóren-Lis atenta para toda a estrutura que impede a ascensão social. “Este sonho pode ser podado ainda na infância. Uma criança preta pode deixar de estudar para ir trabalhar, pois não tem alimento em casa. Se ela não estudou, não consegue adentrar ao mercado de trabalho. A falha está no Estado”, explica.
Mesmo quem alcança posições altas na hierarquia social sofre do racismo institucional. Alexandra Burke, estrela do The X Factor (reality show musical) do Reino Unido, contou, em entrevista ao ‘The Guardian’, que uma pessoa que trabalhava com ela na equipe criativa pediu que ela clareasse a pele para fazer sucesso. Em outra ocasião, sua gravadora pediu para que ela mudasse de penteado minutos antes de sua apresentação em um show tributo a Bruce Forsuth.
“Meu cabelo estava preso em um coque com alguns baby hairs [fios curtos e finos de cabelo que nascem na linha da testa, penteados como “ondas” ou cachos. É um penteado que teve origem na cultura negra]. Meia hora antes de subir no palco, meu cabeleireiro veio até mim e disse: ‘acabaram de me dizer que você parece agressiva com esse penteado. Precisamos mudá-lo’. Eu falei: ‘O que?’. E ele disse: ‘Sua gravadora acabou de falar que você parece agressiva, então precisamos mudar’. Eu disse: ‘Que parte de mim parece agressiva?’. Ele falou que era o baby hair na minha testa”, confessou a cantora.
Há uma dinâmica ainda mais grave neste processo: a “cor padrão”. Na maior parte das vezes, quando pensamos em um médico, não imaginamos uma pessoa negra. Por outro lado, a cor do suspeito de algum crime é negra – o que fica evidenciado em dados presentes no Atlas da Violência (2019), que destaca que pretos e pardos representam 78% das pessoas mortas por ações policiais no Brasil. Vale lembrar do episódio em que pessoas brancas do Leblon acusaram um jovem negro inocente de roubar sua bicicleta elétrica.
Dinâmica de “cor padrão” revela racismo institucional brasileiro (Crédito: Nayara Bardin/AnaMaria Digital)
Tudo isso interfere na decisão de ‘fugir’ dos traços negros: a atitude de mudar a aparência, embora arriscada, pode ser lida como uma possibilidade para ‘melhorar’ a condição de vida, como afirma Giovana Xavier: “a cor da pele define destinos na sociedade brasileira e é legítimo que tenhamos o direito de definir nossos próprios destinos. Este, a meu ver, é o debate central, para além de um julgamento moral sobre usar ou não clareadores de pele.”
CONSEQUÊNCIAS FÍSICAS
De fato, os riscos destes produtos são muitos. Segundo a dermatologista Fernanda Nichelle, que atua especificamente na área estética, o uso de um dos mais potentes clareadores conhecidos, a hidroquinona, tem relatos na literatura de pigmentação da esclera e unhas, diminuição da capacidade de cicatrização da pele e catarata. Também são comuns a sensibilidade da pele e a ocronose exógena (‘manchas’ em coloração azul-escura nas áreas que ficam expostas ao sol).
Grazia usava um medicamento para eczema, mesmo sem ser diagnosticada com a doença. E o corticoesteroide possui o efeito colateral do clareamento de pele apenas em casos raríssimos. Para isso, porém, é preciso usá-lo em longos períodos e em altas concentrações, que não são indicadas pelos médicos nem no tratamento da própria doença.
Este uso indiscriminado possui uma série de outras consequências, conforme explica a dermatologista com ênfase em beleza vegana Monalisa Nunes, CEO da Clínica Dermavegan e palestrante TEDx: “diminuição da produção de colágeno, estrias vermelhas grossas, adelgaçamento da pele, mudanças na coloração da pele, surgimento de acne e aparecimento de pequenos vasos sanguíneos, chamados de teleangiectasias, são alguns dos efeitos colaterais.”
SOLUÇÕES?
Além de maior representatividade e aumento dos discursos sobre racismo, pressão estética e a beleza negra, passando por políticas públicas que visem combater a desigualdade racial nas estruturas do país (como garantir que necessidades básicas das famílias mais pobres sejam atendidas, para que crianças negras tenham a possibilidade de frequentar as escolas), há um processo mais individual de autoconhecimento que pode ser realizado durante a psicoterapia.
O problema é que, de acordo com Lóren-Lis, a psicologia ainda é uma profissão feita por e para as elites brancas. Um dos poucos meios disponíveis para se alcançar as comunidades, por exemplo, é pelas escolas – voltando ao problema da estrutura que corrobora o racismo estrutural. Por outro lado, como já mencionado, estes debates estão alcançando as mídias e despertando a consciência racial das pessoas.
A medicina também precisa fazer seu papel. Katleen da Cruz Conceição, famosa dermatologista referência em pele negra (hoje, ela atende até mesmo as globais Glória Maria e Taís Araújo), conta que, quando entrou na área, não havia nenhum estudo sobre a aplicação de laser na pele negra, quanto mais debates sobre métodos prejudiciais de clareamento. Um dos motivos, para ela, é que muitos profissionais ainda acreditam que pessoas com este tom de pele não têm condições de investir em tratamentos estéticos.
Nesse sentido, faz pouco tempo que a ciência começou a estudar e entender as suas particularidades – afinal, a pele com maior quantidade de melanina costuma ter mais manchas escuras ou brancas, alopecias, foliculite e queloides. ”Ainda falta muito para termos uma equidade de acesso e possibilidades de tratamentos para a pele negra na dermatologia, mas definitivamente vejo avanços”, finaliza Monalisa.
*Apoio do psicólogo especialista em direitos humanos Matheus Asmassallan
**O livro ‘História Social da Beleza Negra’, de Giovana Xavier, pode ser encontrado na Amazon