“É tempo de transformar conhecimento em ação.” É justamente com essa frase que as APAES de todo o Brasil estão, ao longo desta semana, buscando atenção para um tema urgente: a inclusão. A Campanha Nacional de Conscientização dos Direitos da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla, que este ano acontecerá até este sábado (28), foi introduzida no calendário nacional com o objetivo de divulgar conhecimento sobre as condições sociais das pessoas em situação de deficiência intelectual e múltipla para diminuir – ou melhor, acabar de uma vez – as barreiras que impedem esses indivíduos, sejam crianças ou adultos, de participar coletivamente em igualdade de condições com as demais pessoas.
Em 2021, o tema escolhido aponta para o fato de que hoje o Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo no que se refere à garantia de direitos das pessoas em situação de deficiência. Na prática, porém, a maior parte do que se assegura na lei não é acessível a todos. Ou seja, em um país com dimensões continentais como o nosso, as desigualdades de condições de vida de diferentes grupos são tão evidentes, que por sua condição de vulnerabilidade necessitam de apoios especializados para a superação das barreiras que impedem o exercício pleno da sua cidadania.
E para ampliar ainda mais a discussão, conversamos com pessoas que vivem essa realidade da exclusão no dia a dia, além de profissionais que lutam diariamente para informar e conquistar os direitos de todos.
UMA BATALHA DIÁRIA DIÁRIA
Na última semana o ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse em entrevista que “alunos com deficiência atrapalham o aprendizado de outros estudantes” e ainda criticou a antiga norma da PNEE (Política Nacional de Educação Especial), defendendo a criação de turmas e escolas especializadas, que atendam apenas estudantes com deficiência, ou seja, exclusivas. A indignação coletiva diante de uma fala vinda da maior autoridade da Educação do País abriu discussões em diversos setores da sociedade.
“Esse discurso é muito prejudicial e coloca a responsabilidade pela dificuldade da inclusão na criança com deficiência, como se ela não se adequasse, atrapalhasse e não conseguisse produzir naquele ambiente. O que a gente precisa repensar são as responsabilidades de cada parte da sociedade: Governo Federal, Estado, Prefeitura, escola, professores, família e da pessoa com deficiência. Se cada um buscar realmente o seu melhor dentro de suas responsabilidades, eu tenho certeza que a gente consegue uma inclusão de verdade”, destaca a neuropsicóloga Bárbara Calmeto, diretora do Autonomia Instituto.
Renata e Gabriel. (Crédito: Arquivo Pessoal)
Renata Dourado, mãe de Gabriel, de 9 anos, que tem Síndrome de Down, comenta que a fala do Ministro é, além de absurda, já que parte de uma autoridade que deveria proteger os direitos de todos, um desserviço. Exatamente por isso, é preciso falar, mais do que nunca, sobre o assunto. “É inadmissível que se pense em segregar determinados indivíduos. Estamos falando sobre direitos e isso jamais deveria ser questionado. Primeiro porque estar inserido na sociedade é importante para o desenvolvimento de todas as crianças; e segundo porque conviver com a diversidade educa, ensina a respeitar as diferenças. A inclusão de pessoas com deficiência em turmas regulares nas escolas é fundamental e urgente. Não podemos reduzir as pessoas pela sua deficiência”, pontua.
A modelo e influenciadora Rebeca Costa, que nasceu com nanismo e hidrocefalia, e compartilha em seu instagram @looklittle informações para combater o preconceito, explica que o convívio social beneficia a todos, pois constrói reconhecimento da realidade. “Não consigo acreditar que, em 2021, estamos com um líder, em um cargo de tamanha importância, com uma fala tão rasa. Um desconhecimento que é proposital de todo e qualquer avanço que tivemos em termos de educação”, enfatiza.
Modelo e ativista, Rebeca Costa usa o Instagram para combater o preconceito contra pessoas com nanismo. (Crédito: Arquivo Pessoal)
Rebeca diz, ainda, porque é importante para o desenvolvimento de crianças com nanismo ter uma interação diária com outras crianças. “Justamente por ser integrante da sociedade como qualquer outro. É um avanço significativo a criação de uma escola em que pessoas com e sem deficiência possam conviver e estudar em ambientes onde os indivíduos aprendam a lidar com a diversidade e com a diferença”, completa.
CAPACITISMO, PRECONCEITO E EXCLUSÃO
Uma das principais dificuldades para a inclusão é o preconceito. “E a gente só diminui a discriminação com a educação. Então, é preciso educar as pessoas ao redor para que se consiga, cada vez mais, caminhar para uma inclusão real”, explica a neuropsicóloga Bárbara Calmeto, que lembra ainda que a interação entre crianças típicas e com deficiência amplia as habilidades de ambas, por meio da percepção do outro. “E mais: a conexão social estimula o desenvolvimento motor, afetivo, cognitivo e, principalmente, da comunicação. Então, esse elo com outras pessoas que não têm essas necessidades específicas, ajuda numa amplitude da percepção do “eu posso”, “eu consigo”. É dar voz para as pessoas com deficiência”, complementa.
E é desta forma que a estudante de engenharia de bioprocessos e biotecnologia na UFPR (Universidade Federal do Paraná), Polyana Sá, 20 anos, desmistifica o autismo e dissemina informações para a sociedade, o que tem ajudado muitas pessoas que são diagnosticadas a lidarem com o transtorno. Diagnosticada aos 16 anos, ela usa as mídias sociais para para que as pessoas aprendam a não generalizar o TEA (Transtorno de Espectro Autista), a partir dos estereótipos. “Por exemplo, o autista homem e branco ou exige uma grande necessidade de apoio substancial ou se enquadra no quesito de altas habilidades. E toda vez que você tem uma pessoa que sai dessa linha e não segue a conformação dessa ‘caixinha’, a sociedade dá uma travada, para e pensa: mas essa pessoa é autista mesmo?”, ressalta ela.
Nesse questionamento, em vez das pessoas procurarem se informar mais a respeito e saber que existem vários indivíduos autistas, Polyana diz que continuam propagando mitos e absurdos que ouviram para os outros. “É justamente assim que o capacitismo se constrói, aumenta e ganha dimensões que são fora do normal. Coisas simples e comportamentos que podem ser desfeitos pela informação. Por isso, procuro estudar sobre, me conhecer mais e divulgar para as pessoas”, conta.
Polyana Sá é ativista da causa autista e influenciadora digital. (Crédito: Arquivo Pessoal)
O termo “capacitismo”, descrito por Polyana, tem sido disseminado e utilizado nos meios de comunicação, assim como nas redes sociais, para falar sobre a discriminação e preconceito social em relação às pessoas com deficiência. Em sociedades capacitistas, a ausência de qualquer deficiência é visto como “o normal”, e pessoas com alguma deficiência são entendidas como exceções; a deficiência é vista como algo a ser superado ou corrigido, se possível por intervenção médica.
“Todos os dias existe uma estrutura social que faz com que pessoas como nós não queiram existir ou sintam vergonha disso. Então, quando você tem uma mulher, preta, com deficiência, empoderada, e que fala sobre o assunto, é uma vitória, é você ir justamente ao contrário do que te ensinam desde que você nasceu. E dizer às pessoas que mulheres, autistas, pretas existem, e que somos várias, mas que muitas vezes não somos notadas. Nós, autistas, temos muitas caras e jeitos. Então, é muito complicado lidar com a questão do capacitismo, tanto em pessoas que se encontram com grande necessidade de apoio substancial, quanto naquelas com pouca(como é o meu caso), mas todos estamos ali, no mesmo espectro”, finaliza a estudante.
PAPEL DA ESCOLA
E se informação é o grande trunfo para promover inclusão e o anticapacitismo, é na escola que se dá o primeiro passo. Para Beatriz Leite, mãe de Tomás, 6 anos, conviver em uma escola inclusiva é formar uma sociedade mais democrática, pois crianças reproduzem o que aprendem. “Saber que existe um amiguinho diferente de você, que alguns têm dificuldade em alguma coisa e você poderá ter em outras, mostrar essa diversidade, ensinar a ajudar o próximo, entender limitações, conviver e aprender com o outro. Tudo isso, com certeza, formará um cidadão mais consciente, empático, justo”, comenta. Além disso, ela lembra que um estabelecimento de ensino inclusivo deve dar conta das necessidades específicas de todas as crianças em suas pluralidade.
Beatriz Leite é mãe de Tomás, que foi diagnosticado com o Espectro Autista. (Crédito: Arquivo Pessoal)
“A escola deve abordar o tema inclusão e ensinar os pequenos a conviverem com as crianças com deficiência, valorizando o potencial que elas têm e não as limitações”. Quem diz isso é a neuropsicopedagoga Sandra Valéria de Souza, que trabalha com atendimento educacional especializado e educação especial em uma escola pública de Rondônia, mas que percebe que, embora o colégio deva ser o maior responsável pelo desenvolvimento pleno dos alunos com ou sem alguma deficiência, muitas vezes a impossibilidade dessa tarefa acontece por não existir um professor de apoio ou cuidador para ajudar o professor titular na condução das aulas no dia a dia. “Isso acaba por ferir os direitos constantes na Legislação Berenice Piana, do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Afinal, se a escola não tem esses profissionais, não consegue oferecer uma educação inclusiva como deveria e como de fato gostaria de ensinar. Muitas vezes, o problema não está na escola, mas em uma solução que deve ser apresentada pela Secretaria de Educação, em contratar esses profissionais de apoio”, ressalta.
Para Wania Emerich Burmester, psicopedagoga do Sistema Positivo de Ensino e mestre em psicologia da Educação, o primeiro passo para a inserção de crianças com necessidades especiais, é ter clareza que o papel da escola é ensinar – não apenas apresentando conteúdos, mas garantindo que os alunos aprendam, cada qual do seu jeito. O segundo passo é quebrar o preconceito, compreender que toda criança é capaz de aprender, mesmo que para isso precise de adaptações. Ela lembra, ainda, um detalhe importantíssimo: as crianças não nascem com preconceito. Ou seja, tudo vai depender da condução dos professores e das famílias.
“Na prática, costuma ser muito mais fácil do que as pessoas imaginam. Promover conversas sobre as diferenças é fundamental para esse processo. Explicar para crianças e adolescentes que todos somos diferentes, que cada um tem seus pontos fortes e fracos e que devemos respeitar essas diferenças, contribuindo com os colegas para que todos tenham a possibilidade de aprender e se relacionar”, diz. Mais importante, porém, do que conversar a esse respeito, é dar o exemplo. “Quando um professor diz para a turma que neste momento precisa dar uma atenção especial para determinada criança, para ajudá-la em algo que os demais já conseguem, ou pede para que uma criança colabore com o colega que está com dificuldade, ele está ensinando a turma a lidar com diferenças e a terem empatia. Quando uma criança ajuda um colega a entender determinada atividade ou conteúdo, ambos se beneficiam. Quem recebe a ajuda do colega se sente acolhido e escuta a explicação com uma linguagem muito próxima da sua, pois tem a mesma idade. O aluno que colabora com o colega, explicando algo, acomoda o conhecimento para poder explicar e assim, sua aprendizagem é muito mais significativa e duradoura”, exemplifica.
A professora Sandra Valeria construiu uma sala de Aprendizado Especial na escola onde trabalha, com a ajuda da população. (Crédito: Arquivo Pessoal)
“Se ensinarmos cedo, a aprendizagem vai ser para a vida toda. Porém, se houver alguma situação de preconceito, cabe à escola orientar as crianças e mostrar para elas que todos ganham com a inclusão”, complementa Sandra Valéria.
Esse último ponto, inclusive, deve ser de extrema atenção entre os docentes, pois apesar do esforço da maioria dos profissionais para ensinar sobre inclusão, casos de preconceito podem acontecer dentro das salas de aula. “A escola deve abordar essa questão demaneira firme. Porém, sempre no sentido formativo. Aprendemos e nos desenvolvemos por meio de nossas experiências e na infância elas serão vividas dentro do ambiente escolar. A equipe docente deve oferecer suporte aos alunos envolvidos em certos conflitos e levá-los à reflexão e esclarecimento, envolvendo, em alguns casos, as famílias dos alunos”, exemplifica Natália Fernandes, gestora pedagógica da Maple Bear Vila Madalena. Além disso, é importantíssimo que os pais também reforcem esses valores em casa.
DIREITO DAS CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA
Embora os pais busquem a inclusão para seus filhos e as escolas levem o tema para o dia a dia das salas de aula, casos de preconceito, inclusive na hora de matricular a criança na escola, não são raros. No entanto, existem leis que protegem esses indivíduos.
As advogadas Marília Golfieri Angella, especialista em direito de família, gênero e infância e juventude, e Flávia Albaine, Defensora Pública de Rondônia, criadora do projeto ‘Juntos Pela Inclusão Social’ e membro do Conselho Estadual da ONDA-Autismo, explicam abaixo pontos importantes sobre o direito das crianças com deficiência:
- Crianças com deficiência possuem todos e quaisquer direitos inerentes a qualquer criança, considerando-se como pessoa em desenvolvimento físico e psíquico, que merece atenção especial do Estado, da família e da sociedade para proteção de seus direitos fundamentais, entre eles a educação. “O acesso à educação se dá de maneira especial e regular, garantindo-se o pleno desenvolvimento e a possibilidade de convivência igualitária, até mesmo com o fim de combater o preconceito. A Lei Brasileira de Inclusão prevê, em seu art. 8º, a garantia de tais direitos com prioridade, tais como vida, sexualidade, maternidade, paternidade, previdência, habitação, informação, entre outros”, pontua Marília.
- Crianças com deficiência podem estudar em qualquer escola e estas instituições não podem rejeitá-las e nem cobrar taxas a mais para esta inclusão – se a escola impedir a matrícula da criança com necessidades especiais, além da denúncia através do Disque 100, é possível que a família procure a Secretaria de Educação para buscar a melhor estratégia, o Conselho Tutelar ou mesmo acionar diretamente o Ministério Público, a fim de que sejam adotadas, se o caso, até mesmo medidas judiciais a fim de exigir o cumprimento das obrigações escolares em relação à educação especial. “A interpretação sistemática das normativas específicas para PCD, entre elas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a própria Lei Brasileira de Inclusão, é que garantem tal direito, até mesmo o direito de que pessoas com e sem deficiência convivam umas com as outras”, esclarece Marília.
- De acordo com o já decidido pelo STF na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 5357, é dever da escola a eliminação de barreiras de forma a possibilitar o ensino inclusivo, sem que isso implique em qualquer tipo de oneração para os alunos e suas famílias. “Ou seja, a escola precisa ofertar medidas de inclusão escolar e se adaptar para receber todos os alunos, independentemente de sua condição. Da mesma forma, os pais, no exercício do poder familiar, têm o dever de prestar toda e qualquer assistência que os filhos venham a precisar, devendo tomar todas as medidas necessárias para a efetividade da educação inclusiva”, enfatiza Flávia.
- Para alunos surdos, por exemplo, é preciso que haja educação bilíngue, com Libras como primeira língua. Para as cadeirantes e com nanismo, é preciso acessibilidade física, tais como rampas e outras tecnologias assistivas nesse sentido. “Essas mesmas crianças e outras com Síndrome de Down, geralmente, precisam de um cuidador para auxiliar em suas necessidades individuais, tais como ir no banheiro, alimentação e outros. Também podem precisar de um professor mediador para adaptar o conteúdo curricular às possibilidades da criança através do PEI (Plano Educacional Individualizado). Também deve haver oferta do Atendimento Educacional Especializado no contraturno da escola regular por meio das Salas de Recursos Multifuncionais para todos os alunos que dela precisarem. Outras medidas também podem ser adotadas de acordo com o caso concreto sempre no sentido de eliminar barreiras de forma a permitir a educação inclusiva em sua plenitude”, conclui Flávia.
(Colaboração :Alessandra Ceroy)
*PRISCILA CORREIA é jornalista, especializada no segmento materno-infantil. Entusiasta do empreendedorismo materno e da parentalidade positiva, é criadora do Aventuras Maternas, com conteúdo sobre educação infantil, responsabilidade social, saúde na infância, entre outros temas. Instagram:@aventurasmaternas